Nelson Ascher
Da equipe de articulistas
Modernismo e modernidade estão intimamente interligados.
Mas de que maneira? Muitos dos maiores modernistas eram reacionários
no sentido não só de desprezarem a proverbial vulgaridade
da sociedade de massas, mas também de detestarem, quando
não combatiam ativamente, instituições como
a democracia representativa e os direitos humanos.
T. S. Eliot declarava-se politicamente conservador; Erza Pound admirava
Mussollini, cujo rol de fãs incluía Marinetti e Ungaretti,
entre outros; Gottfried Benn apoiou o "fuehrer", pelo
menos no começo de seu reinado; a esquerda tampouco morria
de amores pelos "famigerados" hábitos políticos
burgueses, aplaudindo de pé o genocídio chamado de
coletivização na URSS e o massacre apelidado de processos
de Moscou. (A queda de um Fernando Pessoa ou de um W. B. Yeats por
algum tipo de misticismo também não parece muito afinada
com as exigências do raciocínio lógico-dedutivo
contemporâneo).
Para cada admirador da sociedade moderna e da arte modernista como
Walter Benjamin, há dez Theodors Adornos que rejeitam a sociedade
em questão mas não conseguem resistir à sedução
de sua arte, e milhares de Georgs Lukács que abominam a ambas,
preferindo, à vigência destas, a extinção
da humanidade.
Ezra Pound escreveu seu famoso "Canto 45", contra a usura,
numa máquina de escrever, segundo técnicas de composição
desenvolvidas no convívio com a referida máquina,
produto de uma forma de organização econômica
denominada capitalista, cuja dinâmica envolve o lucro, ou
seja, aquilo que, sob o anátema de usura, o catolicismo medieval
proscrevia.
Tal contradição só aparentemente é superficial
- e deveria ser, em primeiro lugar, apontada pelos marxistas que,
paradoxalmente, optam pelos níveis mais "sutilmente"
abstratos da crítica, descartando, com o rótulo de
"formalista", qualquer preocupação com a
concretude linguística ou material da escrita.
Caso se tente atribuir essa contradição ao reacionarismo
de Pound, basta verificar como ela se repete idêntica à
esquerda, quando se troca a expressão "usura" pelo
seu sinônimo mais elegante, a "mais-valia". Prova
disto é a determinação da elite dirigente cubana
de matar de fome seu súditos através de um coletivismo
rural cujo patrono não é Marx, mas São Francisco
de Assis, só para não admitir que, em termos puramente
econômicos, a organização de seus vizinhos,
fundada sobre a usura-mais-valia, continua sendo superior à
utopia regressiva que ela consegue defender apenas com a tirada
moralista de que foi um sucesso transformar um bordel de luxo numa
favela faminta.
Será menos enigmática essa contradição
quando se constatar que ela é a mola-mestra de arte moderna,
pois esta, aparentemente regida pela fatuidade do novo ou da moda
(que talvez não sejam tão fátuos assim), move-se
de acordo não com as leis da harmonia universal, mas sim
com as antileis da dissonância, da cacofonia e da insatisfação,
ou seja, trata-se da arte dinâmica de uma sociedade idem,
que, ao invés de convergir para um centro estático,
auto-suficiente e autocomplacente, como ocorria outrora, foge, excêntrica,
para o passado e para o futuro, como acontece simultaneamente, por
exemplo, em telas de Picasso onde, à luz de uma geometria
pós-euclidiana, surgem os touros ancestrais da caverna paleolítica
de Altamira.
Assim como é modernista voltar-se contra a modernidade, é
igualmente moderno rejeitar o modernismo. Em outras palavras, nada
é mais inescapavelmente moderno do que o pós-moderno.
Modernizar, afinal, corresponde a combinar ininterruptamente a iconoclastia
com a reciclagem da tradição. E tanto no Brasil quanto
no ambiente internacional, poucos casos foram tão exemplares
dessas contradições e de sua consciência como
o de Oswald de Andrade.
Entre todos os modernistas foi, socialmente, o mais progressista,
entrando no PC e saindo dele, ao mesmo tempo que, egresso da elite,
não buscava integrar-se a ela. No prefácio a "Serafim
Ponte Grande" ele lembra que, antes de aderir ao marxismo,
acreditava que o contrário do burguês não era
o proletário, mas o boêmio, afirmação
paralela, à constatação contemporânea
de Benjamin acerca do papel contestador do "flâneur"
e da muito posterior, de Roland Barthes, sobre a superior eficácia
revolucionária, nas artes, do lumpesinato anárquico.
Além disso, como testemunham seus contemporâneos, Oswald
encerrava em sua própria personalidade o conflito arcaico-moderno,
declamando seu "Cântico dos Cânticos" com
uma entonação de bacharel em direito ou voltando,
ao que consta, nas vésperas da morte, à carolice da
primeira juventude.
Apesar da centralidade da contradição no modernismo,
internacional ou brasileiro, talvez não seja tanto em Mário
de Andrade que se deva procurar o contrário de Oswald. Por
várias razões: primeiro, porque o Mário pretensamente
erudito de sua confusa crítica e psicologizante de seus contos
tem pouco de modernista; depois, porque o Mário dos melhores
poemas e, sobretudo, do "Macunaíma" foi, mesmo
que a contragosto, parceiro de Oswald numa contradição
maior: aquela estabelecida em face dessa instituição
tipicamente moderna, os cursos de letras que, até os anos
60/70, rejeitavam os dois Andrades em conjunto.
Cabe, contudo, estabelecer pelo menos uma diferença: quem
critica a modernidade, se for modernista, trabalha, mesmo sem sabê-lo,
por ela; quem rejeita o modernismo, por sua vez, conspira secretamente
contra a modernidade e em prol de todas as consequências implícitas
nessa rejeição.
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