ANDRADE A DOIS


Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 1º de março de 1992

Oswald e Mário são parceiros diante da rejeição aos dois que predominou na universidade até os anos 70


Nelson Ascher
Da equipe de articulistas

Modernismo e modernidade estão intimamente interligados. Mas de que maneira? Muitos dos maiores modernistas eram reacionários no sentido não só de desprezarem a proverbial vulgaridade da sociedade de massas, mas também de detestarem, quando não combatiam ativamente, instituições como a democracia representativa e os direitos humanos.

T. S. Eliot declarava-se politicamente conservador; Erza Pound admirava Mussollini, cujo rol de fãs incluía Marinetti e Ungaretti, entre outros; Gottfried Benn apoiou o "fuehrer", pelo menos no começo de seu reinado; a esquerda tampouco morria de amores pelos "famigerados" hábitos políticos burgueses, aplaudindo de pé o genocídio chamado de coletivização na URSS e o massacre apelidado de processos de Moscou. (A queda de um Fernando Pessoa ou de um W. B. Yeats por algum tipo de misticismo também não parece muito afinada com as exigências do raciocínio lógico-dedutivo contemporâneo).

Para cada admirador da sociedade moderna e da arte modernista como Walter Benjamin, há dez Theodors Adornos que rejeitam a sociedade em questão mas não conseguem resistir à sedução de sua arte, e milhares de Georgs Lukács que abominam a ambas, preferindo, à vigência destas, a extinção da humanidade.

Ezra Pound escreveu seu famoso "Canto 45", contra a usura, numa máquina de escrever, segundo técnicas de composição desenvolvidas no convívio com a referida máquina, produto de uma forma de organização econômica denominada capitalista, cuja dinâmica envolve o lucro, ou seja, aquilo que, sob o anátema de usura, o catolicismo medieval proscrevia.

Tal contradição só aparentemente é superficial - e deveria ser, em primeiro lugar, apontada pelos marxistas que, paradoxalmente, optam pelos níveis mais "sutilmente" abstratos da crítica, descartando, com o rótulo de "formalista", qualquer preocupação com a concretude linguística ou material da escrita.

Caso se tente atribuir essa contradição ao reacionarismo de Pound, basta verificar como ela se repete idêntica à esquerda, quando se troca a expressão "usura" pelo seu sinônimo mais elegante, a "mais-valia". Prova disto é a determinação da elite dirigente cubana de matar de fome seu súditos através de um coletivismo rural cujo patrono não é Marx, mas São Francisco de Assis, só para não admitir que, em termos puramente econômicos, a organização de seus vizinhos, fundada sobre a usura-mais-valia, continua sendo superior à utopia regressiva que ela consegue defender apenas com a tirada moralista de que foi um sucesso transformar um bordel de luxo numa favela faminta.

Será menos enigmática essa contradição quando se constatar que ela é a mola-mestra de arte moderna, pois esta, aparentemente regida pela fatuidade do novo ou da moda (que talvez não sejam tão fátuos assim), move-se de acordo não com as leis da harmonia universal, mas sim com as antileis da dissonância, da cacofonia e da insatisfação, ou seja, trata-se da arte dinâmica de uma sociedade idem, que, ao invés de convergir para um centro estático, auto-suficiente e autocomplacente, como ocorria outrora, foge, excêntrica, para o passado e para o futuro, como acontece simultaneamente, por exemplo, em telas de Picasso onde, à luz de uma geometria pós-euclidiana, surgem os touros ancestrais da caverna paleolítica de Altamira.

Assim como é modernista voltar-se contra a modernidade, é igualmente moderno rejeitar o modernismo. Em outras palavras, nada é mais inescapavelmente moderno do que o pós-moderno. Modernizar, afinal, corresponde a combinar ininterruptamente a iconoclastia com a reciclagem da tradição. E tanto no Brasil quanto no ambiente internacional, poucos casos foram tão exemplares dessas contradições e de sua consciência como o de Oswald de Andrade.

Entre todos os modernistas foi, socialmente, o mais progressista, entrando no PC e saindo dele, ao mesmo tempo que, egresso da elite, não buscava integrar-se a ela. No prefácio a "Serafim Ponte Grande" ele lembra que, antes de aderir ao marxismo, acreditava que o contrário do burguês não era o proletário, mas o boêmio, afirmação paralela, à constatação contemporânea de Benjamin acerca do papel contestador do "flâneur" e da muito posterior, de Roland Barthes, sobre a superior eficácia revolucionária, nas artes, do lumpesinato anárquico.

Além disso, como testemunham seus contemporâneos, Oswald encerrava em sua própria personalidade o conflito arcaico-moderno, declamando seu "Cântico dos Cânticos" com uma entonação de bacharel em direito ou voltando, ao que consta, nas vésperas da morte, à carolice da primeira juventude.

Apesar da centralidade da contradição no modernismo, internacional ou brasileiro, talvez não seja tanto em Mário de Andrade que se deva procurar o contrário de Oswald. Por várias razões: primeiro, porque o Mário pretensamente erudito de sua confusa crítica e psicologizante de seus contos tem pouco de modernista; depois, porque o Mário dos melhores poemas e, sobretudo, do "Macunaíma" foi, mesmo que a contragosto, parceiro de Oswald numa contradição maior: aquela estabelecida em face dessa instituição tipicamente moderna, os cursos de letras que, até os anos 60/70, rejeitavam os dois Andrades em conjunto.

Cabe, contudo, estabelecer pelo menos uma diferença: quem critica a modernidade, se for modernista, trabalha, mesmo sem sabê-lo, por ela; quem rejeita o modernismo, por sua vez, conspira secretamente contra a modernidade e em prol de todas as consequências implícitas nessa rejeição.


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