Divulgação
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Jamelão
"Pensava que seria sempre operário"
Jamelão
O moleque Saruê primeiro foi engraxate, depois vendedor
de jornal, e, finalmente, tocador de tamborim e cavaquinho
nos subúrbios cariocas.
Virou Jamelão por invencionice talvez de um apresentador
de programas de rádio, ou então de um gerente de gafieira.
Isso não se sabe ao certo. Seu nome em cartório é José
Bispo, nascido a 12 de maio de 1913, no bairro de São
Cristóvão, mas é por Jamelão -árvore de fruto escuro e
dulcíssimo- que o mundo o conhece.
Aos 15 anos, Saruê, cavaquinista e ritmista de certo prestígio
em alguns poucos bairros da periferia carioca, conheceu
o sambista Lauro Santos, o Gradim, que o levou à Escola
Estação Primeira de Mangueira.
Na Mangueira, Jamelão começou na bateria, depois foi se
enturmando com o pessoal do samba. Nessa época, ele não
tinha quaisquer pretensões artísticas. Ia para a avenida
para tocar tamborim e paquerar as meninas. Com o passar
do tempo, começou a participar das rodas que ocorriam
após o desfile, na Praça Onze.
Segundo ele, lá "paravam os batuqueiros", para fazer um
"samba pesado. Samba duro, de roda". Essas rodas de samba,
vez por outra, acabavam com a chegada da polícia. A explicação
de Jamelão é que nessas rodas sempre aparecia um "Zé Mané
querendo fazer o nome. A rapaziada, então, pegava ele
na pernada. O sujeito guardava a raiva e voltava no ano
seguinte, querendo vingança. Já vinha armado e aconteciam
brigas sérias. A polícia sempre intervinha".
Depois das rodas de samba da Praça Onze, Jamelão, em 1945,
participou, sem sucesso, de um programa de calouros na
Rádio Ipanema. Talvez tenha sido nesse programa que ele
ganhou seu apelido. Segundo o próprio Jamelão, quando
ele saiu dos estúdios, ouviu o apresentador "anunciar
determinada música a ser interpretada por Jamelão". Quando
ouviu isso, ainda se perguntou: "quem seria esse tal de
Jamelão?" Para sua surpresa o Jamelão era ele, pois o
contínuo da Rádio Ipanema veio afobado e, segundo contou
o próprio cantor em depoimento no Museu da Imagem e do
Som, no Rio, "ele me chamou, dizendo que era hora de eu
entrar em cena para defender a música. E o apelido pegou."
O apelido pegou, mas o canto não. Jamelão foi gongado
nesse concurso "quando esticava a última nota, um agudo
respeitável", gaba-se ainda hoje.
Mas há uma outra versão para essa mesma história da qual
fonte é também o próprio Jamelão. Ao ser perguntado a
respeito do apelido, em uma entrevista concedida em 1998
ao "Jornal do Brasil", Jamelão disse: "É coisa de garoto.
Minha mãe era doméstica e trabalhava no Colégio Independência,
na rua Bela Vista, no Engenho Novo. A gente morava nos
fundos do colégio, num barraco. Quando comecei a jogar
futebol no Piedade Futebol Clube, a turma costumava sair
e ir jantar num restaurante. Um dia me levaram para a
gafieira e lá surgiu o nome Jamelão. O pessoal na brincadeira
falou para o gerente que eu gostava de cantar. Não é que
eu gostasse, eu sabia as músicas da época, a gente cantava
junto. O cara não sabia meu nome e foi para o microfone
e anunciou Jamelão. Ficou. Quando fui para a Rádio Tupi,
nos anos 40, o Almirante, que era diretor, não queria
que eu cantasse com o apelido. Queria me tirar da programação".
Mesmo não sabendo se o nome Jamelão surgiu numa gafieira
ou numa rádio, uma coisa é certa: ele veio junto com a
música e a poderosa voz que José Bispo tinha em si. Dois
anos depois do gongo, ele venceu o concurso de calouros
promovido pela Rádio Clube do Brasil e assinou, como prêmio
pela vitória, um contrato de um ano com a gravadora Continental.
Em 1948, com o final do contrato com a Continental, passou
para a Rádio Tupi, onde se apresentava nos "dancings"
Brasil e Farolito. No ano seguinte, 1949, Jamelão começou
a sua carreira como intérprete da Mangueira. Nesse mesmo
ano, substituiu o cantor Francisco Alves em um show no
Teatro João Caetano, no Rio.
Em 1952, já gozando de certa fama, Jamelão viajou para
a França como "crooner" da Orquestra Tabajara do maestro
Severino Araújo, para cantar em uma festa promovida por
Assis Chateaubriand e pelo estilista francês Jacques Fath,
no castelo de Coberville, nos arredores de Paris. A festa
marcou a apresentação do algodão brasileiro para a alta-costura
européia, e, segundo reza a lenda, dela participaram celebridades
como Orson Wells e Jean-Louis Barrault.
Foi também como "crooner" da Orquestra Tabajara que Jamelão
protagonizou o memorável banho na big band americana de
Tommy Dorsey, em um duelo ocorrido no auditório da antiga
rádio Tupy. Esse duelo, de repercussão internacional,
deu à voz de Jamelão e à orquestra de Severino Araújo
passaporte para as várias apresentações pela Europa.
Em 1954, ele se transferiu para a gravadora Continental,
onde obteve grande êxito com as músicas "Leviana" (Zé
Keti e Armando Reis), "Folha Morta" (Ari Barroso) e "Deixa
de Moda" (Padeirinho). Dois anos depois, ele fez muito
sucesso com a gravação da música "Exaltação à Mangueira"
(Enéias Brito e Aluísio Augusto da Costa), feita para
o desfile daquele ano. Em 1959, ele gravou "Ela Me Disse
Assim" de Lupicínio Rodrigues e fez enorme sucesso.
Nove anos depois, em 1968, Jamelão entrou para a ala de
compositores da Mangueira. Em 1972, gravou o LP "Jamelão
Interpreta Lupicínio Rodrigues", totalmente dedicado à
obra do compositor gaúcho. Nele o cantor é acompanhado
pela Orquestra Tabajara. Daí pra frente sua fama correu
o país. Tanto que alguns anos mais tarde, a Câmara Municipal
de São Paulo deu a Jamelão o título de Cidadão Paulistano.
Em 1979, ele lançou o LP "Jamelão", no qual há faixas
repletas de desgraças de amor. Coisas como "Coquetel de
Sofrimento", "Castigo e Molambo". Mas a melhor de todas
é "Imantação", na qual Jamelão, com sua voz metálica e
poderosíssima, interpreta versos como o que se segue:
"O impacto dos corpos sem amor é psicose
Quando a gente não define as pretensões".
Em 1987, ele grava outro LP dedicado a Lupicínio Rodrigues
intitulado "Recantando Mágoas - A Dor e Eu". Este LP também
está recheado de músicas a respeito de amores incompreendidos
e lancinantes saudades. Com ele, Jamelão sedimentou sua
carreira de cantor de amores sofridos e de infelicidades.
Para muitos críticos, essa faceta de Jamelão o coloca
como um dos maiores cantores de músicas de "dor de cotovelo",
enquanto que para o próprio Jamelão elas são todas músicas
de "cantor romântico".
No carnaval de 1990, Jamelão anunciou o fim da sua carreira
de intérprete de escola de samba. Durante o que seria
seu último desfile, Jamelão -que havia chegado ao sambódromo
com febre alta- passa mal, mas consegue terminar o desfile.
Na praça da apoteose, ele anunciou, pelo microfone do
carro de som, sua decisão de parar de cantar em desfiles,
dizendo: "Queria agradecer a toda a escola, à bateria,
maravilhosa. Estou encerrando aqui meu trabalho como intérprete
de samba-enredo."
Nessa época, Jamelão começava a enfrentar problemas com
a pressão e, segundo sua mulher, Delice, "estava cansado".
Mas, no ano seguinte, ele voltou a ativa e não para mais.
Continua, até hoje, sendo o intérprete dos samba-enredo
da verde e rosa. Aliás, Jamelão não é puxador de samba.
Segundo ele, "puxador é quem fuma maconha ou rouba carro".
Ele é intérprete.
De personalidade forte e sem papas na língua, Jamelão
é, também, um homem de muitas manias. Uma
delas é o costume de andar com uma caixa cheia
de elásticos no bolso e alguns deles nas mãos. Conforme
diz, carrega os elásticos para utilizá-los no dia em que
ganhar bastante dinheiro. Porém, sabe-se que ele adquiriu
essa mania do elástico depois de trabalhar muitos anos
na polícia do Rio, chegando a aposentar-se naquela instituição.
A sobriedade de suas interpretações mesclada
com sua personalidade e suas já folclóricas
manias o tornaram uma das mais importantes figuras da
música popular brasileira.
Em 1994, pela primeira vez na história da Mangueira, Jamelão
dividiu a interpretação de um samba-enredo, ao gravar
com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia
a música de sua Escola no disco com os sambas das escolas
do Grupo Especial daquele carnaval. A idéia de juntar
Jamelão e os baianos homenageados pela escola foi de Ivo
Meirelles, então vice-presidente da Mangueira. O samba
gravado é "Atrás da Verde e Rosa Só Não Vai Quem Já Morreu",
de Davi Corrêa, Carlinhos Sena, Bira do Ponto e Paulinho
Carvalho.
Em 1997, a gravadora Continental lançou a coletânea "Jamelão
- A Voz do Samba", em 3 CDs, com a compilação de 33 anos
de sua carreira do cantor. Nesse ano Jamelão também participou
junto com Alcione, Carlinhos Vergueiro, Chico Buarque,
Christina, João Nogueira, Lecy Brandão, Nelson Sargento
e Velha Guarda da Mangueira da gravação do CD "Chico Buarque
da Mangueira".
No carnaval de 98, Jamelão conquistou seu sexto estandarte
de ouro como intérprete de samba enredo no carnaval carioca.
Em 1999, foi eleito o intérprete do século do carnaval
carioca por 80 jurados do Rio e de São Paulo, em um prêmio
oferecido a
Lula
Marques/Folha Imagem
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Jamelão
recebendo a Medalha da Ordem do Mérito Cultural
de FHC, depois dormindo placidamente durante a cerimônia
no Palácio do Planalto, em Brasília
(DF)
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profissionais,
enredos e sambas. No dia 20 de fevereiro de 2001, foi
internado, na Policlínica Geral do Rio de Janeiro, no
Centro do Rio, com quadro de patologia vascular nas pernas.
Em janeiro desse ano, foi eleito presidente de honra da
Mangueira -cargo máximo da escola. Em novembro deste mesmo
ano, recebeu a medalha da Ordem do Mérito Cultural pelas
mãos do presidente Fernando Henrique Cardoso e dormiu
durante a cerimônia.
Para esse premiado mestre do carnaval carioca, os sambas-enredo
não são mais os mesmos. Segundo ele, "hoje é difícil um
samba-enredo com melodia inédita, as melodias são sequências
umas das outras". Afirma que, antigamente, se fazia um
samba mais cadenciado, hoje, "a bateria sai tuc-tuc-tuc.
Parece até uma parada militar. Todo mundo marchando: desfile
militar de samba". Essa militarização do samba, para ele,
é culpa da televisão, pois hoje o tempo para acabar o
desfile é determinado pela televisão. De acordo com o
que fala o dono da voz da Mangueira nos carnavais cariocas,
"a televisão é que manda e desmanda no samba".
Jamelão é assim: direto, sem rodeios. Certa vez, ao ser
perguntado, por Antonio Chrysostomo, em entrevista para
a Folha de S.Paulo, o que o levava a ter o semblante sempre
carrancudo e nunca rir, respondeu: "Rir de quê?".
Essa gênio forte, que para muitos é fruto apenas
de um mau humor crônico, talvez venha da vida dura de
garoto pobre nos subúrbios do Rio, ou dos problemas enfrentados
por Jamelão em sua carreira, tais como o preconceito racial,
pois o p´roprio cantor já disse que "o artista
negro sempre encontra uma barra mais pesada. No meio musical
todo mundo quer o crioulo, mas para fazer figuração, para
tocar pandeiro e agogô e as mulatas para sambar. Para
ser estrela não serve, tem de ser branco e de preferência
boa pinta. Não grito contra isso porque sei que as pessoas
que hoje me desprezam amanhã vão me amar. Mas já fui deixado
de lado em função de outros caras só porque eles eram
brancos".
Porém uma coisa é certa: Jamelão conquistou por
força própria todo o direito de ter o humor que bem quiser.
Sua arte lhe deu liberdade suficiente para dormir no Palácio
do Planalto, de ter as opiniões que bem enteder. É perito
do samba. Sabe o que diz, e diz sempre assim, direto.
Hoje, José Bispo não é mais o moleque Saruê. Hoje ele
é o Jamelão, a voz da verde e rosa na avenida e fora dela.
Presidente de honra da Estação Primeira de Mangueira e
porta-voz da sabedoria dos mestres do samba.
Renato
Roschel
do
Banco
de Dados