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O compositor Cartola em sua casa em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro (RJ), durante a comemoração do seu aniversário de setenta anos

Cartola

"O rapaz foi lá e disse: 'Cartola, vem cá. O Mário Reis tá aí, queria comprar um samba teu'. 'O quê? Comprar samba? Você tá maluco, rapaz? (...) Eu não vou vender coisa nenhuma.' (...) Ele disse: 'Quanto é que você quer pelo samba?'. Eu virei pro cara, no cantinho, disse assim: 'Vou pedir 50 mil réis'. 'O quê, rapaz? Pede 500.' (...) Com muito medo, pedi 500 contos. 'Não, dou 300. Tá bom?' Eu disse assim: 'Bom, me dá esses 300 mesmo'. Mas com muito medo (...) Mas botou meu nome direitinho, legal (...). Ele comprou, mas não deu para a voz dele. Então gravou Chico, Francisco Alves."
(Folha de S. Paulo, 21.jun.2000)

Dono de uma obra ímpar na música popular brasileira e tendo sido gravado por gente de peso, ele teve que exercer outros ofícios para sobreviver. Foi tipógrafo, contínuo do Ministério da Indústria e Comércio, gráfico e pedreiro. O hábito de usar chapéu para proteger a cabeça do cimento lhe rendeu o apelido: Cartola.

Com esse nome, Angenor de Oliveira se tornaria conhecido e respeitado como um dos grandes da MPB. Seria o mestre Cartola.

Nascido a 11 de outubro de 1908, no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, Angenor foi o terceiro filho de Sebastião de Oliveira e Aída Gomes de Oliveira.

Tomou gosto pela música e pelo samba ainda moleque. Aprendeu com o pai a tocar cavaquinho e violão.

Aos 8 anos, foi morar em Laranjeiras, zona sul carioca. Já nessa época, saía nos desfiles do Dia de Reis e no rancho do Arrepiado, um tipo de grupo carnavalesco posterior ao bloco e anterior a escola de samba.

Com 11 anos, devido a problemas financeiros, sua família mudou-se para o morro da Mangueira —na época com cerca de 50 barracos. Com 15 anos, após a morte de sua mãe, Cartola abandonou os estudos, tendo terminado apenas o primário. Junto com seu amigo e principal parceiro de composições, Carlos Cachaça, criou o bloco dos Arengueiros.

Em 28 de abril de 1928, fundou, ao lado de Saturnino Gonçalves, Marcelino José Claudino, Francisco Ribeiro e Pedro Caymmi, entre outros, o G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira, segunda escola de samba do Rio de Janeiro. Foi Cartola quem compôs o primeiro samba da escola, "Chega de Demanda", lançado em 1974, no disco "História das Escolas de Samba: Mangueira".

Em 1931, o compositor se tornou conhecido fora do morro por intermédio do cantor e compositor carioca Mário Reis, quando este foi à Mangueira para comprar músicas e voltou com os direitos de gravação do samba "Que Infeliz Sorte", lançado em 1932, por Francisco Alves, que mais tarde se tornaria um de seus maiores intérpretes.

Nos anos 30, suas composições ganharam fama na interpretação de gente como Carmem Miranda que gravou, em 1932, "Tenho um Novo Amor", e Araci de Almeida com o samba "Não Quero Mais", de 1937. Este último, feito em parceria com Carlos Cachaça e Zé da Zilda, foi premiado no desfile da Mangueira de 1936 e regravado por Paulinho da Viola, em 1973, com o título de "Não Quero Mais Amar Ninguém". Seu maior sucesso dessa fase, porém, foi o samba "Divina Dama", gravado por Francisco Alves, e que, segundo o próprio Cartola, foi composto numa Quarta-feira de Cinzas em homenagem a uma mulher por quem ele tinha se apaixonado.

Em 1940, criou ao lado de Paulo da Portela o programa "A Voz do Morro" na Rádio Cruzeiro do Sul, no qual apresentavam composições ainda sem título para que o público pudesse nomeá-las.

Também com Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres formou, em 1941, o Conjunto Carioca que apesar da vida curta chegou a se apresentar em São Paulo, na Rádio Cosmos, durante um mês. Com o samba "Vale do São Francisco", último criado por ele para a Mangueira, a escola sagrou-se campeã em 1948.

Músicas que falavam de amor sempre foram as preferidas do compositor, "gosto de fazer samba de dor de cotovelo, falando de mulher, de amor, de Deus, porque é isso que acho importante e acaba se tornando uma coisa importante", declarou certa vez.

Com essa simplicidade Cartola agradava não só ao gosto popular como também à elite cultural do Rio de Janeiro. Era admirado por intelectuais, como o maestro Villa Lobos que, em 1942, o apresentou a Leopoldo Stokowsky —famoso maestro norte-americano interessado em conhecer música popular brasileira. Nesse encontro foi gravada a música "Quem me vê Sorrindo", feita em parceria com Carlos Cachaça. Mas a simplicidade não implicava em composições fáceis. Músico que praticamente aprendera a tocar de ouvido, Cartola não era óbvio em suas criações. Letras que falavam de amor sem, no entanto, ser vulgares ou melodramáticas e melodias que fugiam ao lugar comum, rendiam elogios e admiração de sambistas como Nelson Sargento, que declarou nunca ter se atrevido a sugerir uma parceria com o amigo por considerá-lo "um compositor finíssimo".

Cartola teve inúmeros parceiros em suas composições. Gente como Silvio Caldas, em "Na Floresta", e Noel Rosa, com quem compôs "Não Faz Amor". Mas foi com seu compadre, Carlos Cachaça, que Cartola dividiu o maior número de criações. Da primeira parceria entre eles saiu o samba "Pudesse Meu Ideal", de 1932.

Aos 38 anos, após a morte de sua primeira mulher, e acometido de uma grave doença, provavelmente meningite, deixou o morro por alguns anos e foi morar em Caxias. Chegou a ser dado como morto e sumiu do cenário musical.

Em 1956, foi encontrado por Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, lavando carros em Ipanema. Graças a ele, Cartola voltou a cantar, agora na Rádio Mayrink Veiga. A partir daí, o compositor é redescoberto por uma nova safra de intérpretes.

Em 1964, casou-se com Eusébia Silva do Nascimento, a Dona Zica da Mangueira. No mesmo ano, eles abriram o restaurante Zicartola, na Rua da Carioca, no centro do Rio.

O local logo se tornaria ponto de encontro de sambistas tradicionais e músicos da geração bossa nova como Paulinho da Viola -apontado pelo próprio Cartola como seu sucessor.

Dessa nova geração de músicos, Nara Leão foi uma das primeiras a gravá-lo quando incluiu em seu primeiro LP a música "O Sol Nascerá", composta por ele e Elton Medeiros. Mas o primeiro registro da voz de Cartola só seria feito em 1966 com uma participação sua no disco de Elizeth Cardoso, no qual canta a música "A Enluarada Elizeth". No disco "Fala Mangueira" produzido em 1968 por Hermínio Belo de Carvalho, Cartola volta a aparecer ao lado de Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça, Clementina de Jesus e Odete Amaral.

Só em 1974, aos 65 anos, o compositor gravaria, numa iniciativa do pesquisador musical, produtor de discos e publicitário Marcus Pereira, um disco inteiro com suas composições sob o título "Cartola".

Em 1976, lança o seu segundo disco também com o titulo de "Cartola". É nele que podemos encontrar uma de suas mais famosas composições: "As Rosas não Falam".

Em 1977, sai "Cartola - Verde que te Quero Verde" e, encerrando sua curta discografia, em 1979, chega às lojas seu LP "Cartola - 70 Anos". "Acontece", seu primeiro show individual, foi realizado em 1978. Antes, já tinha participado ao lado de João Nogueira do projeto Pixinguinha. O sucesso do espetáculo rendeu a eles uma turnê por São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. Neste mesmo ano, Cartola mudou-se para Jacarepaguá (zona oeste do Rio), por considerar o bairro mais tranquilo.

Um ano depois, descobre que está com câncer. Cartola sabia que sua doença era grave mas manteve segredo sobre ela todo o tempo. Para todos dizia que tinha uma úlcera.

Uma semana antes de sua morte, manifestou à sua família um desejo: "quando for enterrado quero que Waldemiro toque o bumbo". Mestre Cartola morreu em 30 de novembro de 1980. Atendendo a seu pedido, no dia 1º de dezembro, data de seu funeral, Waldemiro, ritmista da Mangueira, que havia aprendido com ele a encourar seu instrumento, marcou o ritmo para o coro de "As Rosas não Falam", cantada por uma pequena multidão de sambistas, amigos, políticos e intelectuais, presentes em sua despedida. Em seu caixão a bandeira do Fluminense, time do seu coração.

Douglas Cometti
do Banco de Dados


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