DISCO TRAZ CINCO MÚSICAS INÉDITAS DE CARTOLA

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 30 de abril de 1999.

da Reportagem Local

Ainda que relegado à margem da grande indústria, o samba de outros Carnavais resiste. "Só Cartola" reúne dois sambistas históricos, Elton Medeiros, 68, e Nelson Sargento, 74, mais o acompanhamento instrumental do grupo Galo Preto _que tocava com Cartola_, para homenagear o patriarca. Gravado ao vivo, sem grandes recursos, sai pela pequena gravadora Rob Digital. O repertório inclui cinco canções citadas como inéditas de Cartola (1908-80) _"A Mangueira É Muito Grande" (parceria com Ataliba), a instrumental "Sol e Chuva", "Velho Estácio", "Ciúme Doentio" e "Deixa". As três últimas, inacabadas por Cartola, foram resgatadas por Nelson Sargento. "Eu as conhecia de primeira parte. Foram encontradas da minha memória", resume. Seu ineditismo é parcial. É a velha ladainha: semi-esquecido no Brasil, Nelson Sargento lançou, entre 1991 e 1995, quatro discos no Japão. Num deles, gravou as "novas" de Cartola que o Brasil até agora desconhecia. O cantor e compositor explica o caso: "É mais fácil gravar no Japão. Lá estão preocupados com o samba de raiz. Aqui, não. Se bem que lá já começaram a importar pagode". Por que não aqui? "Acham que a gente não é marketing, que não estamos na mídia. Não tenho nada contra nem a favor do pagode. É um período da música brasileira, como foram bossa nova, lambada. A música brasileira sofre períodos de modificação, só o samba não se modifica. É sempre o mesmo." Elton Medeiros, que há pouco lançou, com a cantora Márcia, sob patrocínio do Sesc paulistano e sem grande gravadora por trás, outro disco dedicado à obra de Cartola, reflete sobre as dificuldades em emplacar sambas "da antiga": "Acho que basta a gente parar um pouco, ligar o rádio e ficar ouvindo para encontrar a resposta a isso. As gravadoras estão interessadas no imediatismo e até na mediocridade. Música descartável está na moda". Ele vai mais longe: "A música popular está decadente em todo país, porque o próprio país está. Conheço vários jovens que fazem música de excelente qualidade, que não vai ser gravada nem veiculada". Nelson Sargento tem notícia para relativizar o desinteresse nacional pelo samba "clássico": diz que está negociando, com a gravadora paulista Trama, um disco comemorativo a seus 75 anos.

CD está perdido no tempo

Se Cartola fosse vivo, talvez dissesse que são "tempos idos". "Só Cartola", que revisa a obra do compositor nas vozes de quem tem autoridade para fazê-lo, é produto perdido no tempo num Brasil em que o culto à industrialização da arte conduz irracionalidade e mediocrização a termos de totalitarismo. Não dá para Cartola, Elton Medeiros, Nelson Sargento e Galo Preto competirem com a música sambaneja e derivados, e nem eles se prestariam a isso, mas acontece que hoje como nunca a totalitarização estrangula ao roxo a possibilidade de existência do que não seguir parâmetros definidos de dentro para fora. Estrangula, mas não mata. "Só Cartola" é disco pobre, gravado ao vivo e produzido com o menos possível. Vem ao mundo, por isso, como exemplo residual do que talentos enjeitados sabem e podem fazer pela música brasileira. O exemplar em questão faz muito, aliás. O Galo Preto dá cama fina e discreta às melodias indestrutíveis de "Alvorada", "Tempos Idos", "Acontece", "As Rosas Não Falam" e a outras bem menos conhecidas, mas não menos impotentes _"Fiz por Você o Que Pude", as "inéditas"... Sobre a cama, Nelson e Elton se deitam e se esfalfam. Se fazem tanto à míngua, imagine se dispusessem do aparato _grana, gravadora, maquiagem, televisão, massificação_ de que os Só pra Contrariar dispõem para, a duras penas, emplacar um sambinha chocho no meio de dezenas de baladas melosas disfarçadas de sambinhas. Que o Só pra Contrariar merece existir, não resta dúvida. Mas que fora da indústria fonográfica só reste o abismo negro Cartola, seus companheiros e seus herdeiros (onde estarão seus herdeiros?) não desistirão de desmentir.

Disco: Só Cartola Artistas: Elton Medeiros, Nelson Sargento e Galo Preto
Gravadora: Rob Digital .

(Pedro Alexandre Sanches)

 


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