da
Reportagem Local
Ainda que relegado à margem da grande indústria, o samba
de outros Carnavais resiste. "Só Cartola" reúne dois sambistas
históricos, Elton Medeiros, 68, e Nelson Sargento, 74,
mais o acompanhamento instrumental do grupo Galo Preto
_que tocava com Cartola_, para homenagear o patriarca.
Gravado ao vivo, sem grandes recursos, sai pela pequena
gravadora Rob Digital. O repertório inclui cinco canções
citadas como inéditas de Cartola (1908-80) _"A Mangueira
É Muito Grande" (parceria com Ataliba), a instrumental
"Sol e Chuva", "Velho Estácio", "Ciúme Doentio" e "Deixa".
As três últimas, inacabadas por Cartola, foram resgatadas
por Nelson Sargento. "Eu as conhecia de primeira parte.
Foram encontradas da minha memória", resume. Seu ineditismo
é parcial. É a velha ladainha: semi-esquecido no Brasil,
Nelson Sargento lançou, entre 1991 e 1995, quatro discos
no Japão. Num deles, gravou as "novas" de Cartola que
o Brasil até agora desconhecia. O cantor e compositor
explica o caso: "É mais fácil gravar no Japão. Lá estão
preocupados com o samba de raiz. Aqui, não. Se bem que
lá já começaram a importar pagode". Por que não aqui?
"Acham que a gente não é marketing, que não estamos na
mídia. Não tenho nada contra nem a favor do pagode. É
um período da música brasileira, como foram bossa nova,
lambada. A música brasileira sofre períodos de modificação,
só o samba não se modifica. É sempre o mesmo." Elton Medeiros,
que há pouco lançou, com a cantora Márcia, sob patrocínio
do Sesc paulistano e sem grande gravadora por trás, outro
disco dedicado à obra de Cartola, reflete sobre as dificuldades
em emplacar sambas "da antiga": "Acho que basta a gente
parar um pouco, ligar o rádio e ficar ouvindo para encontrar
a resposta a isso. As gravadoras estão interessadas no
imediatismo e até na mediocridade. Música descartável
está na moda". Ele vai mais longe: "A música popular está
decadente em todo país, porque o próprio país está. Conheço
vários jovens que fazem música de excelente qualidade,
que não vai ser gravada nem veiculada". Nelson Sargento
tem notícia para relativizar o desinteresse nacional pelo
samba "clássico": diz que está negociando, com a gravadora
paulista Trama, um disco comemorativo a seus 75 anos.
CD
está perdido no tempo
Se
Cartola fosse vivo, talvez dissesse que são "tempos idos".
"Só Cartola", que revisa a obra do compositor nas vozes
de quem tem autoridade para fazê-lo, é produto perdido
no tempo num Brasil em que o culto à industrialização
da arte conduz irracionalidade e mediocrização a termos
de totalitarismo. Não dá para Cartola, Elton Medeiros,
Nelson Sargento e Galo Preto competirem com a música sambaneja
e derivados, e nem eles se prestariam a isso, mas acontece
que hoje como nunca a totalitarização estrangula ao roxo
a possibilidade de existência do que não seguir parâmetros
definidos de dentro para fora. Estrangula, mas não mata.
"Só Cartola" é disco pobre, gravado ao vivo e produzido
com o menos possível. Vem ao mundo, por isso, como exemplo
residual do que talentos enjeitados sabem e podem fazer
pela música brasileira. O exemplar em questão faz muito,
aliás. O Galo Preto dá cama fina e discreta às melodias
indestrutíveis de "Alvorada", "Tempos Idos", "Acontece",
"As Rosas Não Falam" e a outras bem menos conhecidas,
mas não menos impotentes _"Fiz por Você o Que Pude", as
"inéditas"... Sobre a cama, Nelson e Elton se deitam e
se esfalfam. Se fazem tanto à míngua, imagine se dispusessem
do aparato _grana, gravadora, maquiagem, televisão, massificação_
de que os Só pra Contrariar dispõem para, a duras penas,
emplacar um sambinha chocho no meio de dezenas de baladas
melosas disfarçadas de sambinhas. Que o Só pra Contrariar
merece existir, não resta dúvida. Mas que fora da indústria
fonográfica só reste o abismo negro Cartola, seus companheiros
e seus herdeiros (onde estarão seus herdeiros?) não desistirão
de desmentir.
Disco:
Só Cartola Artistas: Elton Medeiros, Nelson Sargento e
Galo Preto
Gravadora:
Rob Digital .
(Pedro
Alexandre Sanches)