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São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 1979
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Jornalistas
contam a História - 10
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POR QUE CAFÉ FILHO TRAIU GETÚLIO
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Depoimento
de SAMUEL WAINER
ao repórter
Wianey Pinheiro
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Falar com Samuel Wainer
é aprender jornalismo e História do Brasil.
A intimidade dele com ambos os assuntos é profunda
na dimensão dos 40 anos em que ele lida com as duas
coisas. E este conhecimento ele relata com a segurança
de quem viu e criou, em determinados momentos, os próprios
fatos.
A crônica de sua vida no jornalismo brasileiro é
a crônica da nossa imprensa nas últimas décadas.
Durante esse tempo ele fez nascer alguns dos mais importantes
órgãos da imprensa brasileira e criou, também,
muitos dos mais brilhantes homens do jornalismo. No aspecto
político, Samuel Wainer teve importância na mesma
proporção, a partir de sua participação,
como jornalista e intérprete do segundo governo Getúlio
Vargas. Seu talento e sua capacidade são demonstrados
mais uma vez aqui neste depoimento, que torna desnecessária
e quase impossível qualquer apresentação.
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Samuel Wainer - A imprensa no Brasil é uma fonte
para a História do País, das mais importantes.
Talvez não exista em outros países, ou em poucos
outros países existirá uma fonte com essa riqueza.
Porque em verdade ao povo brasileiro sempre faltou acesso
a outras fontes de informação. Faltou-lhe escolas,
bibliotecas, livrarias, livros culturais. Então, o
jornal no Brasil passou a ser até instrumento de cultura,
o que nos outros países está há muito
tempo superado. O jornal é um instrumento de informação
e de orientação. Por isso mesmo vou relatar
um episódio que me parece que a imprensa brasileira
não registrou com a devida importância e que
poderá servir como subsídio para a história
do trágico e agitado período do retorno de Getúlio
Vargas à cena política do País. História
essa na qual tive, acidentalmente, como repórter, uma
participação notoriamente larga e profunda.
É um episódio que, embora não seja inédito,
é produto final de uma série de reportagens
que realizei na ocasião.
Folha
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João
Café Filho
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É a história condensada com mínimos detalhes
possíveis do que representou a traição
de Café Filho, de João Café Filho, o
vice-presidente de Getúlio Vargas, nas eleições
de 1945. A atitude de Café Filho, durante os dias que
precederam o suicídio de Getúlio, em 1954, em
agosto de 54, contribuiu decisivamente para quebrar a sua
possibilidade de resistência e possivelmente levá-lo
à sua trágica decisão: o suicídio.
Mais grave ainda, ao assumir o lugar, ainda manchado pelo
sangue de Vargas, no Palácio do Catete, Café
Filho repudiou o programa comum que os havia eleito presidente
e vice-presidente da República e convocou para seu
lado, como membro do seu Ministério, alguns dos inimigos
mais figadais não só de Vargas como do processo
democrático brasileiro.
Ao lado de Café Filho tomaram assento no Ministério
o velho Raul Fernandes, o protótipo da UDN mais reacionária,
advogado das grandes empresas internacionais. Ao lado de Café
Filho tomou assento a figura, embora simpática, mas
notoriamente ultraconservadora de Juarez Távora, inimigo
tradicional de Getúlio Vargas. Ao lado de Café
Filho sentou o sr. Clemente Mariano, representante dos setores
mercantilistas, mais notoriamente ligado à finança
internacional no País. O fato de Café haver
entregue o seu governo aos adversários diretos de Getúlio
e do que Getúlio politicamente representava, ainda
mais acentuado pela circunstância do seu ministro da
Justiça, o bravo cearense, Seabra Fagundes, não
haver resistido à pressão do Ministério
mais de uma semana e ter renunciado num dia em que o próprio
sr. Carlos Lacerda, que não ocupava função
oficial nenhuma, abriu as portas da presidência, do
gabinete presidencial, e interveio numa reunião ministerial
e participou da mesma. Seabra Fagundes, que hoje é
uma das expressões mais altas do movimento judiciário
do País, relatou isso publicamente, e, em consequência,
pediu demissão do governo para o qual havia sido convocado.
Em verdade a reportagem do chamado "caso Café
Filho" começa num dia tranquilo e claro de março
de 1950, quando um Douglas DC-3 descia às portas da
fazenda de Itu, no Rio Grande do Sul. Os pampas eram um aeroporto
natural. Os aviões podiam descer e sair da fazenda
em que Getúlio havia se expatriado já há
mais de dois anos, sem que ninguém tomasse conhecimento.
Como repórter próximo a esse setor, a essa cobertura...
Na época, Samuel Wainer, você trabalhava para
que jornal?
Samuel - Eu era repórter dos "Diários
Associados". Depois de haver ocupado outras funções
nos "Diários Associados", como editor, retornei
à reportagem. E a época a que me refiro é
precisamente a de princípios de março de 1950.
Poucas semanas antes da chamada data da desincompatibilização.
Naquele tempo, qualquer político que ocupasse um posto
executivo tinha que se desincompatibilizar três meses
antes para se tornar candidato a presidente da República.
E Adhemar de Barros era candidato a presidente da República.
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Folha
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Adhemar
de Barros
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Naquele avião ele fora
discutir, debater e tentar com Getúlio um acordo. Mas
ele teria que se desincompatibilizar em abril, um mês
depois, e teria que saber se poderia ou não contar
com o apoio de Getúlio para sua candidatura a presidente
da República - uma das aspirações mais
profundas de Adhemar. Tive a oportunidade de ser o único
repórter presente a este encontro histórico.
Do avião de Adhemar, saiu o acompanhando até
a sala em que Getúlio os esperava para o almoço
já marcado de véspera, o seu principal conselheiro,
Erlindo Salzano, figura muito conhecida na história
política de São Paulo, um homem de profundas
convicções espiritistas, que exercia sobre Adhemar
uma grande influência pessoal. Desceu também
um senhor, com uma roupa assim muito desajeitada, chapéu
marrom mal colocado sobre a cabeça, que se apresentou
como sr. Esteves. Ele era, nada mais nada menos, que o famoso
general Stilac Leal, então comandante da região
em São Paulo, e o mais popular dos líderes militares
do Exército brasileiro na época, e que vinha
testemunhar o acordo entre Getúlio e Adhemar. Vinham
outros personagens da "entourage" do Adhemar. Vinha
também um famoso político gaúcho, que
deixou a história pelo seu romantismo, chamado Danton
Coelho, aquele que Getúlio chamava "do amigo certo
das horas incertas".
Nesse pacto popular Adhemar de Barros renunciava, secretamente,
à sua candidatura em 1950, em troca do compromisso
solene de Getúlio em apoiá-lo na sua sucessão
em 1955. E como um dos elementos de segurança do compromisso
a ser firmado, ficou concordado que Adhemar indicaria o vice-presidente
à chapa de Getúlio. Houve outros detalhes de
que não me recordo no momento. Salvo o de que, ao que
me parece, no ato de assinatura do pacto, Getúlio,
num gesto tipicamente seu, bem humorado e tranquilo, ofereceu
a caneta a Danton Coelho para que assinasse o pacto, em seu
nome, dada a participação histórica que
ele, Danton, tinha tido na preparação desse
acordo político que iria mudar os destinos do Brasil.
Adhemar percebeu perfeitamente a malícia, mas, velho
político, soltou um dos seus conhecidos e bem audíveis
palavrões e engoliu em seco a manobra, porque sabia
que, no fundo, quem iria ditar o destino dos dois era muito
mais os fatos do que a simples assinatura de um papel, que
não tinha outra força, senão a liderança
popular que eles representavam.
Era um pacote onde ninguém concordava com ninguém.
Samuel - Era um pacto onde ninguém concordava com
ninguém, mas todos aceitavam as condições
inevitáveis que o momento político impunha.
Adhemar não podia ser candidato à Presidência
da República, não podia deixar o governo de
São Paulo, porque ele já tinha na sua ilharga
um vice-governador posto especialmente para trai-lo no momento
em que ele deixasse o governo para ser candidato à
presidência da República.
Quem era esse vice-governador?
Samuel - Era o sr. Novelli Júnior, precisamente
genro do presidente Eurico Gaspar Dutra. E era notório
que se Adhemar saisse do governo, se se desincompatibilizasse
para se candidatar a presidente da República, o vice-governador
desencadearia uma tal perseguição sobre Adhemar,
que possivelmente terminaria em processos, eventualmente prisões
ou até exílios. Adhemar era prisioneiro de seu
próprio governo. Foi só por isso que ele aceitou
Getúlio. E ele o aceitou jogando com as eventualidades.
Sua única imposição foi indicar o candidato
a vice, que Getúlio aceitou porque o vice-presidente
da República, na ocasião, não tinha a
menor importância.
Quem foi esse vice indicado por Adhemar?
Samuel - Não me lembro precisamente se o vice indicado
por Adhemar o foi naquele famoso encontro secreto do chamado
Pacto de Itu ou se foi pouco depois. Mas, o nome se tornou
público algum tempo depois. Era João Café
Filho. Um típico político da época, medíocre,
de naturais raízes populares - homem do Rio Grande
- onde havia ocupado uma vaga chefia de Polícia na
revolução de 30, com tendência populista,
com vagas tintas esquerdistas por ser um intelectual. E mais
ainda, pesava contra Café Filho uma dramática
oposição da Igreja, porque ele não era
católico, ele era de origem presbiteriana - daquelas
famílias nordestinas pobres. Então sua candidatura
fora condenada pela Liga Eleitoral Católica, o que
está no caráter um pouco agnostico do povo brasileiro,
até aumentou seu prestígio eleitoral. Ele era
realmente desconhecido, porque na época, quando a Liga
Eleitoral Católica condenava um político, ele
era eleito. Isso deu a Café Filho ares de oposição,
a posição que a Igreja tomou contra ele. Lembro-me
que Getúlio, sem qualquer referência direta à
personalidade de Café Filho, teria dito que era o contrário,
que a popularidade dele Getúlio bastava para ganhar,
que ele precisava de um candidato a vice que lhe garantisse
a posse, mais do que os votos.
Se não tivesse sido Café Filho, quem Getúlio
teria escolhido para vice, esse homem que lhe daria o respaldo
para tomar posse e não os votos que ele por si só
conseguiria?
Samuel - Aí entra uma das histórias, um
dos episódios mais importantes da História do
Brasil e que eu tenho a impressão que, realmente, é
conhecido por muito pouca gente, ou talvez até praticamente
não mencionado até agora. Passam-se os meses
e uma noite eu estou com Getúlio Vargas em Vitória,
no Espírito Santo, de volta da campanha no Nordeste.
Campanha que começou no Rio em 12 de julho de 50 e
quando voltávamos para o final da campanha, Getúlio
me chamou para um canto para me pedir um favor pessoal, porque
eu era o único repórter que, o acompanhara,
além de um repórter oficial da Agência
Nacional. Com ar relativamente preocupado, depois de um imenso
comício em Vitória, ele me pediu que eu me aproximasse
mais do Café Filho, com quem eu tinha relações
pessoais, e criasse um clima de maior cordialidade com Café.
Pois, em verdade, desde o momento em que nós saímos
para a campanha, o Café comparecia ao lado de Getúlio
em numerosos palanques, e o Getúlio não lhe
fazia a menor referência, não trocava palavras
com ele uma vez, salvo as cordiais. Demonstrava abertamente
a sua hostilidade e a sua antipatia pessoal pela figura de
Café.
A solução, ao que parece, teria sido um candidato
militar à vice-presidência, que ele Getúlio
desejava. Porque o que ele realmente mais temia e o que praticamente
quase ocorreu, era que a sua eleição fosse considerada
um ato de revanchismo contra o Exército, que o havia
deposto em 45. Um vice-militar lhe daria a estabilidade necessária
para um novo diálogo. Nessa noite Getúlio me
revelou quem seria o seu vice-presidente. Seria o general
Góis Monteiro, uma figura mitológica do Exército
brasileiro. Foi o Chefe militar da Revolução
de 30 ao lado de Getúlio. Foi o militar que maior influência
exerceu na vida do Exército brasileiro e na vida política
brasileira até 1945. Conhecido por sua loquacidade,
conhecido por seu temperamento extrovertido, um militar de
formação - da clássica formação
francesa do Exército Brasileiro - altamente culto.
Góis Monteiro é uma figura realmente mitológica
do Exército brasileiro.
Samuel, mas, nesse episódio, fica estranho entender
o Getúlio preferir para seu vice um homem que o havia
derrubado em 45.
Samuel - O Getúlio se caracterizava principalmente
por aquela famosa frase da filosofia política getulista:
esquecer e não perdoar. Getúlio não guardava
ressentimentos políticos de espécie alguma.
Além do mais, Góis foi realmente um grande amigo
dele, fizeram juntos a Revolução de 30. Góis
foi um dos fatores chaves, talvez o principal, do golpe de
Estado de 37. Porque o general Dutra não era um homem
que se distinguisse nem pela sua inteligência nem pela
sua cultura. O Góis era o líder intelectual
do Exército brasileiro. E o Getúlio conhecia
as suas ambições. O Getúlio conhecia
e sabia que se Góis viesse a ser vice, possivelmente
procuraria tomar o seu lugar. Mas ele o conhecia, ele sabia
como manobrar com ele e buscava a cobertura militar, que deveria
ter sido produto de longas conversas no curso da campanha,
de conspirações, as quais Adhemar de Barros
terminantemente cortava de todas as formas, insistindo que
se Getúlio não aceitasse Café ele o deixaria.
Foi um gesto de habilidade do Adhemar, que possivelmente teria
influído junto ao Góis para não aceitar.
Porque também o Adhemar sabia que se Góis Monteiro
aceitasse, ele (Adhemar) jamais seria presidente em 55. O
presidente seria certamente o Góis Monteiro. Era todo
um jogo de sutilezas, de emissários no meio de uma
campanha que incendiara o País e na qual eu estava
envolvido como repórter e já um pouco como confidente.
Fatos que na ocasião não podiam ser noticiados,
a pedido de Getúlio - o que também ocorre muitas
vezes com um grande repórter (e eu recomendo muito
que jamais o repórter falhe à confiança
da sua fonte).
Samuel, agora eu quero que você me fale do jornalismo
brasileiro.
Samuel - Na minha participação no jornalismo
brasileiro, eu a considero importante por ter feito da minha
profissão, o essencial, o fundamental, a base da minha
vida. Por ter sido realmente um puro jornalista. Por ter procurado
no jornalismo a satisfação de um talento natural
que eu tinha, e não sei de onde vinha, porque eu sou
um autodidata, sou da família de imigrantes pobres.
Um jornalista, além de talento precisa de muito trabalho,
em primeiro lugar. O talento só não basta. Ele
precisa de muita vivência, ele tem que mergulhar realmente
na vida, para poder transmiti-la, porque o jornalista não
é um criador de fatos, ele é um transmissor
e precisa saber ver. E saber ver é só vivendo.
Muitas vezes no mesmo lugar em que há três pessoas,
acontece algo, só o jornalista vê. Além
do seu talento natural, é preciso ter a paixão
pela profissão. É fundamental em jornalismo.
Tem que ser uma paixão como é a de um "boxeur"
que entra no ringue, mesmo sabendo que vai apanhar e gosta
do seu "metier"; você pode entender isso?
Pode-se entender um "boxeur" que gosta de ser "boxeado"?
Mas Samuel, onde é que começa esse namoro
seu com jornalismo, porque a gente sabe, que começa
com você muito jovem. Esse namoro que depois se transforma
num romance eterno.
Samuel - É, não foi um amor às cegas,
não, foi uma vinculação. Bom, começa
na escola, na tentativa de fazer o primeiro jornal estudantil.
Acho também que na minha raça há uma
certa tendência, uma certa coisa no judeu que o leva
ao jornalismo. Talvez venha da dispersão, sabe? Das
histórias que ouvi em criança, das fugas, dos
"pogroms" há qualquer coisa, que torna a
presença do judeu no jornalismo no mundo inteiro um
fato impressionante. Uma vez só, porque não
dava pra viver, tentei ser comerciante, não consegui,
sou um péssimo comerciante e voltei ao jornalismo.
Eu tinha a vocação de um grande repórter
pela formação da minha vida. E editor por ter
viajado muito, por ter depois, compreendido que era muito
importante pro jornalista viajar. Compreendi a tal ponto que,
várias vezes, interrompi a minha carreira pra viajar
e aprender.
E o que eu aconselho às pessoas com quem eu tenho mais
estima: "Não confie apenas no seu talento de escrever,
este é um dom divino você pode ser um grande
escritor e um mau jornalista. Porque o autor recria a realidade.
Jorge Amado, que é um dos maravilhosos escritores é
um dos piores repórteres que conheci. Minha verdadeira
vida profissional começa com a revista chamada "Diretrizes"
que fundei em março de 1938. O primeiro semanário
brasileiro, de tendência política com vinculação
popular. Daí saíram repórteres que hoje
fazem parte da história do Brasil: Justino Martins
foi lançado em "Diretrizes" numa grande reportagem
chamada "Como Era Verde o Meu Brasil", mandada pelo
correio. Joel Silveira foi lançado em "Diretrizes"
com outra sensacional reportagem, chamada "Os grã-finos
de São Paulo". Na realidade eu considerava a reportagem
a essência do jornalismo. "Diretrizes", conseguiu
viver sete anos, de 38 a 44, dentro de uma ditadura fazendo
uma revista antiditatorial.
Portanto, também está provado que quando você
quer, quando você sabe escrever, quando você sabe
exprimir as suas idéias, você consegue vencer
a censura. Era uma censura prévia. Em 45, após
um exílio de um ano nos Estados Unidos, voltei ao Brasil.
E daqui parti para cobrir os últimos meses da guerra
para "Diretrizes", que tinha ressurgido como jornal
diário. Fui o único repórter brasileiro
a cobrir o Tribunal de Nuremberg. Quando retornei da Europa
o Assis Chateaubriand me convidou para os "Associados",
em julho de 1947. Aceitei. Primeiro porque eu queria conhecer
por dentro uma grande empresa, o ventre de uma grande empresa.
Porque ele me pagou um salário excelente pra época.
Eram 20 contos, equivalia hoje a 200 mil cruzeiros, quebrou
todos os padrões. Ele sabia, ele tinha um instinto,
ele já tinha lido coisas minhas. Aí entrei nos
"Diários Associados" onde eu vi por dentro
o chamado grande jornalismo. Fui editor nos "Diários
Associados", fui secretário de redação,
redator, colunista, mas principalmente repórter. Foi
quando descobri Getúlio.
Ele era o líder popular mais querido, mais amado do
Brasil, então era facílimo. Como ele só
recebia a mim, prá mim o Getúlio era uma boa
matéria prima jornalística. Eu o tinha combatido
a vida inteira, mas nada tinha a ver com aquele outro Getúlio
que voltava - como ele mesmo declarou - como líder
de massas e não mais como líder de partido.
Prá mim o Getúlio era um grande assunto, porque
o fundamental na vida do jornalista é o assunto. A
vida do jornalista se compõe do assunto. Se ele tem
o assunto e o assunto se entrega a ele, ele deve tirar desse
assunto as últimas consequências. O jornalista
que mata ou que trai a confiança de seu assunto é
um médico que mata o seu paciente. Dessa amizade com
Getúlio nasceu a "Última Hora".
O jornal cumpriu o seu papel inicial que foi o de provocar
a competição pela notícia. Nós
tínhamos um repórter ao lado do presidente o
dia inteiro, mas prá humanizar as notícias dele,
porque as notícias vinham oficiais, era um resto de
censura, era o hábito da censura. A coluna se tornou
tão importante que deu um editorial no "Correio
da Manhã", o que na época era uma consagração,
chamava-se "O Dia do Presidente". Essa Nova Instituição
da Imprensa Brasileira. Os jornais estrangeiros preferiam
tirar a notícia do "Dia do Presidente" e
não da Agência Nacional.
Portanto a "Última Hora" não foi criada
acidentalmente, ela ia sendo criada à medida que a
gente criava novos quadros e novas idéias. Eu senti
que a popularidade de Getúlio me dava uma comunicação
com todas as camadas sociais e a linha nacionalista me dava
comunicação com a camada dirigente do novo empresariado
brasileiro. Então, a "Última Hora"
foi, realmente, um produto de uma imensa vivência jornalística
e política. A prova é a seguinte: Stanislaw
Ponte Preta, que é um dos maiores humoristas da história
do nosso País, que é o símbolo do grande
humorismo da criação brasileira, é lembrado
mais pelas suas piadas políticas. A partir do momento
em que a "Última Hora" teve esse êxito,
fatalmente criou-se o conflito com a oligarquia tradicional
e eu fui liquidado, mas levou muito tempo. Foi uma longa luta.
Ninguém percebe que levou mais de 20 anos.
Juscelino assume e eu sou o único jornal a apoiar Juscelino
inicialmente, com as loucuras que representou o começo
do governo Juscelino. Com os golpes da Aeronáutica
em Aragarças, com o Lacerda lançando nas ruas
as massas contra Juscelino e nós apoiando Brasília,
sobrevivemos a Juscelino. Não apoiamos Café
Filho, nem o Jânio. Eu não apoiei o Jânio,
nunca acreditei no Jânio como dirigente. Podia ter-nos
liquidado.
Quem fez a "Última Hora" resistir tanto?
Samuel - A conclusão que eu tirei era uma só:
o instrumento que eu havia criado era melhor que a mensagem.
Ele era mais forte que a mensagem. Então, um jornal,
antes de mais nada, deve ser um bom jornal. O instrumento
deve ser tecnicamente perfeito. Eu trouxe o diagramador, criei
a valorização do repórter, individualizei
a função do fotógrafo, estruturei a cobertura
de massa, enfim, uma série de coisas - que representam
toda a criação de uma equipe, porque ninguém
cria nada sozinho em jornal.
Em jornal a equipe é a base de tudo. E a minha conclusão
é essa. O fator fundamental e importante de um jornal
é antes de mais nada ser um excelente jornal, bem feito
tecnicamente. Não importa o tipo da técnica.
O "Le Monde" é um jornal feio, mas é
uma nova técnica. E a técnica "Le Monde"
mudou a imprensa européia. Por isso é que instintivamente
mandei para a valorização da equipe. Na época
predominava uma mentalidade um pouco ainda, muito, vamos dizer,
mercantilista, a valorização do jornalista representava
a valorização do salário. Então,
era preciso desvalorizar o jornalista, prá não
valorizar o salário. Por isso ninguém assinava
matérias. "Última Hora" rompeu com
isso tudo.
Finalmente, para dar a medida da importância que "Última
Hora" havia assumido, acho que esse episódio basta.
Getúlio já estava com um milhão de votos
na frente, jornalistas de toda a parte correram para a fazenda
São Pedro, no Sul, aonde Getúlio se instalara.
Todos queriam as primeiras declarações do presidente-eleito.
Atendendo a um pedido de Alzira Vargas e João Neves
da Fontoura, levei uma carta deles para Getúlio. A
carta informava que crescia a conspiração da
UDN contra a sua posse. Alzira e Fontoura tinham pedido a
mim que conseguisse com Getúlio algumas declarações
que amortecessem os riscos da sua posse.
Eu então montei, com os conhecimentos que eu tinha
das posições de Getúlio, uma entrevista
de 20 laudas. Mostrei a ele e ao terminar a leitura ele deitou-se
na cama. Então eu lhe disse: Bem presidente, vou ter
que embarcar amanhã, o senhor tem mais alguma coisa
a acrescentar? E ele, muito sorridente, respondeu: "Bom,
a entrevista está boa. Ela está boa por dois
motivos: 1º porque tu botaste nela tudo o que eu disse
e 2º porque botaste tudo o que eu não disse."
E eu dei uma grande risada de satisfação".
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