Leia mais sobre
Samuel Wainer
___________
Leia também os
depoimentos de:


- Barreto Leite Filho
- Raimundo Magalhães
- Paulo Mota Lima
- Paulo Duarte
- Joel Silveira
- Hermínio Sacchetta
- Odylo Costa, filho
- Edmundo Moniz
- Breno Caldas
 
 

São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 1979

Jornalistas contam a História - 10

POR QUE CAFÉ FILHO TRAIU GETÚLIO

Depoimento de SAMUEL WAINER
ao repórter Wianey Pinheiro


Falar com Samuel Wainer é aprender jornalismo e História do Brasil. A intimidade dele com ambos os assuntos é profunda na dimensão dos 40 anos em que ele lida com as duas coisas. E este conhecimento ele relata com a segurança de quem viu e criou, em determinados momentos, os próprios fatos.

A crônica de sua vida no jornalismo brasileiro é a crônica da nossa imprensa nas últimas décadas. Durante esse tempo ele fez nascer alguns dos mais importantes órgãos da imprensa brasileira e criou, também, muitos dos mais brilhantes homens do jornalismo. No aspecto político, Samuel Wainer teve importância na mesma proporção, a partir de sua participação, como jornalista e intérprete do segundo governo Getúlio Vargas. Seu talento e sua capacidade são demonstrados mais uma vez aqui neste depoimento, que torna desnecessária e quase impossível qualquer apresentação.

*

Samuel Wainer -
A imprensa no Brasil é uma fonte para a História do País, das mais importantes. Talvez não exista em outros países, ou em poucos outros países existirá uma fonte com essa riqueza. Porque em verdade ao povo brasileiro sempre faltou acesso a outras fontes de informação. Faltou-lhe escolas, bibliotecas, livrarias, livros culturais. Então, o jornal no Brasil passou a ser até instrumento de cultura, o que nos outros países está há muito tempo superado. O jornal é um instrumento de informação e de orientação. Por isso mesmo vou relatar um episódio que me parece que a imprensa brasileira não registrou com a devida importância e que poderá servir como subsídio para a história do trágico e agitado período do retorno de Getúlio Vargas à cena política do País. História essa na qual tive, acidentalmente, como repórter, uma participação notoriamente larga e profunda. É um episódio que, embora não seja inédito, é produto final de uma série de reportagens que realizei na ocasião.

Folha Imagem
 
 
João Café Filho
 

É a história condensada com mínimos detalhes possíveis do que representou a traição de Café Filho, de João Café Filho, o vice-presidente de Getúlio Vargas, nas eleições de 1945. A atitude de Café Filho, durante os dias que precederam o suicídio de Getúlio, em 1954, em agosto de 54, contribuiu decisivamente para quebrar a sua possibilidade de resistência e possivelmente levá-lo à sua trágica decisão: o suicídio. Mais grave ainda, ao assumir o lugar, ainda manchado pelo sangue de Vargas, no Palácio do Catete, Café Filho repudiou o programa comum que os havia eleito presidente e vice-presidente da República e convocou para seu lado, como membro do seu Ministério, alguns dos inimigos mais figadais não só de Vargas como do processo democrático brasileiro.

Ao lado de Café Filho tomaram assento no Ministério o velho Raul Fernandes, o protótipo da UDN mais reacionária, advogado das grandes empresas internacionais. Ao lado de Café Filho tomou assento a figura, embora simpática, mas notoriamente ultraconservadora de Juarez Távora, inimigo tradicional de Getúlio Vargas. Ao lado de Café Filho sentou o sr. Clemente Mariano, representante dos setores mercantilistas, mais notoriamente ligado à finança internacional no País. O fato de Café haver entregue o seu governo aos adversários diretos de Getúlio e do que Getúlio politicamente representava, ainda mais acentuado pela circunstância do seu ministro da Justiça, o bravo cearense, Seabra Fagundes, não haver resistido à pressão do Ministério mais de uma semana e ter renunciado num dia em que o próprio sr. Carlos Lacerda, que não ocupava função oficial nenhuma, abriu as portas da presidência, do gabinete presidencial, e interveio numa reunião ministerial e participou da mesma. Seabra Fagundes, que hoje é uma das expressões mais altas do movimento judiciário do País, relatou isso publicamente, e, em consequência, pediu demissão do governo para o qual havia sido convocado.

Em verdade a reportagem do chamado "caso Café Filho" começa num dia tranquilo e claro de março de 1950, quando um Douglas DC-3 descia às portas da fazenda de Itu, no Rio Grande do Sul. Os pampas eram um aeroporto natural. Os aviões podiam descer e sair da fazenda em que Getúlio havia se expatriado já há mais de dois anos, sem que ninguém tomasse conhecimento. Como repórter próximo a esse setor, a essa cobertura...

Na época, Samuel Wainer, você trabalhava para que jornal?

Samuel -
Eu era repórter dos "Diários Associados". Depois de haver ocupado outras funções nos "Diários Associados", como editor, retornei à reportagem. E a época a que me refiro é precisamente a de princípios de março de 1950. Poucas semanas antes da chamada data da desincompatibilização. Naquele tempo, qualquer político que ocupasse um posto executivo tinha que se desincompatibilizar três meses antes para se tornar candidato a presidente da República. E Adhemar de Barros era candidato a presidente da República.

 
Folha Imagem
 
 
Adhemar de Barros
Naquele avião ele fora discutir, debater e tentar com Getúlio um acordo. Mas ele teria que se desincompatibilizar em abril, um mês depois, e teria que saber se poderia ou não contar com o apoio de Getúlio para sua candidatura a presidente da República - uma das aspirações mais profundas de Adhemar. Tive a oportunidade de ser o único repórter presente a este encontro histórico. Do avião de Adhemar, saiu o acompanhando até a sala em que Getúlio os esperava para o almoço já marcado de véspera, o seu principal conselheiro, Erlindo Salzano, figura muito conhecida na história política de São Paulo, um homem de profundas convicções espiritistas, que exercia sobre Adhemar uma grande influência pessoal. Desceu também um senhor, com uma roupa assim muito desajeitada, chapéu marrom mal colocado sobre a cabeça, que se apresentou como sr. Esteves. Ele era, nada mais nada menos, que o famoso general Stilac Leal, então comandante da região em São Paulo, e o mais popular dos líderes militares do Exército brasileiro na época, e que vinha testemunhar o acordo entre Getúlio e Adhemar. Vinham outros personagens da "entourage" do Adhemar. Vinha também um famoso político gaúcho, que deixou a história pelo seu romantismo, chamado Danton Coelho, aquele que Getúlio chamava "do amigo certo das horas incertas".

Nesse pacto popular Adhemar de Barros renunciava, secretamente, à sua candidatura em 1950, em troca do compromisso solene de Getúlio em apoiá-lo na sua sucessão em 1955. E como um dos elementos de segurança do compromisso a ser firmado, ficou concordado que Adhemar indicaria o vice-presidente à chapa de Getúlio. Houve outros detalhes de que não me recordo no momento. Salvo o de que, ao que me parece, no ato de assinatura do pacto, Getúlio, num gesto tipicamente seu, bem humorado e tranquilo, ofereceu a caneta a Danton Coelho para que assinasse o pacto, em seu nome, dada a participação histórica que ele, Danton, tinha tido na preparação desse acordo político que iria mudar os destinos do Brasil. Adhemar percebeu perfeitamente a malícia, mas, velho político, soltou um dos seus conhecidos e bem audíveis palavrões e engoliu em seco a manobra, porque sabia que, no fundo, quem iria ditar o destino dos dois era muito mais os fatos do que a simples assinatura de um papel, que não tinha outra força, senão a liderança popular que eles representavam.

Era um pacote onde ninguém concordava com ninguém.

Samuel -
Era um pacto onde ninguém concordava com ninguém, mas todos aceitavam as condições inevitáveis que o momento político impunha. Adhemar não podia ser candidato à Presidência da República, não podia deixar o governo de São Paulo, porque ele já tinha na sua ilharga um vice-governador posto especialmente para trai-lo no momento em que ele deixasse o governo para ser candidato à presidência da República.

Quem era esse vice-governador?

Samuel -
Era o sr. Novelli Júnior, precisamente genro do presidente Eurico Gaspar Dutra. E era notório que se Adhemar saisse do governo, se se desincompatibilizasse para se candidatar a presidente da República, o vice-governador desencadearia uma tal perseguição sobre Adhemar, que possivelmente terminaria em processos, eventualmente prisões ou até exílios. Adhemar era prisioneiro de seu próprio governo. Foi só por isso que ele aceitou Getúlio. E ele o aceitou jogando com as eventualidades. Sua única imposição foi indicar o candidato a vice, que Getúlio aceitou porque o vice-presidente da República, na ocasião, não tinha a menor importância.

Quem foi esse vice indicado por Adhemar?

Samuel -
Não me lembro precisamente se o vice indicado por Adhemar o foi naquele famoso encontro secreto do chamado Pacto de Itu ou se foi pouco depois. Mas, o nome se tornou público algum tempo depois. Era João Café Filho. Um típico político da época, medíocre, de naturais raízes populares - homem do Rio Grande - onde havia ocupado uma vaga chefia de Polícia na revolução de 30, com tendência populista, com vagas tintas esquerdistas por ser um intelectual. E mais ainda, pesava contra Café Filho uma dramática oposição da Igreja, porque ele não era católico, ele era de origem presbiteriana - daquelas famílias nordestinas pobres. Então sua candidatura fora condenada pela Liga Eleitoral Católica, o que está no caráter um pouco agnostico do povo brasileiro, até aumentou seu prestígio eleitoral. Ele era realmente desconhecido, porque na época, quando a Liga Eleitoral Católica condenava um político, ele era eleito. Isso deu a Café Filho ares de oposição, a posição que a Igreja tomou contra ele. Lembro-me que Getúlio, sem qualquer referência direta à personalidade de Café Filho, teria dito que era o contrário, que a popularidade dele Getúlio bastava para ganhar, que ele precisava de um candidato a vice que lhe garantisse a posse, mais do que os votos.

Se não tivesse sido Café Filho, quem Getúlio teria escolhido para vice, esse homem que lhe daria o respaldo para tomar posse e não os votos que ele por si só conseguiria?

Samuel -
Aí entra uma das histórias, um dos episódios mais importantes da História do Brasil e que eu tenho a impressão que, realmente, é conhecido por muito pouca gente, ou talvez até praticamente não mencionado até agora. Passam-se os meses e uma noite eu estou com Getúlio Vargas em Vitória, no Espírito Santo, de volta da campanha no Nordeste. Campanha que começou no Rio em 12 de julho de 50 e quando voltávamos para o final da campanha, Getúlio me chamou para um canto para me pedir um favor pessoal, porque eu era o único repórter que, o acompanhara, além de um repórter oficial da Agência Nacional. Com ar relativamente preocupado, depois de um imenso comício em Vitória, ele me pediu que eu me aproximasse mais do Café Filho, com quem eu tinha relações pessoais, e criasse um clima de maior cordialidade com Café. Pois, em verdade, desde o momento em que nós saímos para a campanha, o Café comparecia ao lado de Getúlio em numerosos palanques, e o Getúlio não lhe fazia a menor referência, não trocava palavras com ele uma vez, salvo as cordiais. Demonstrava abertamente a sua hostilidade e a sua antipatia pessoal pela figura de Café.

A solução, ao que parece, teria sido um candidato militar à vice-presidência, que ele Getúlio desejava. Porque o que ele realmente mais temia e o que praticamente quase ocorreu, era que a sua eleição fosse considerada um ato de revanchismo contra o Exército, que o havia deposto em 45. Um vice-militar lhe daria a estabilidade necessária para um novo diálogo. Nessa noite Getúlio me revelou quem seria o seu vice-presidente. Seria o general Góis Monteiro, uma figura mitológica do Exército brasileiro. Foi o Chefe militar da Revolução de 30 ao lado de Getúlio. Foi o militar que maior influência exerceu na vida do Exército brasileiro e na vida política brasileira até 1945. Conhecido por sua loquacidade, conhecido por seu temperamento extrovertido, um militar de formação - da clássica formação francesa do Exército Brasileiro - altamente culto. Góis Monteiro é uma figura realmente mitológica do Exército brasileiro.

Samuel, mas, nesse episódio, fica estranho entender o Getúlio preferir para seu vice um homem que o havia derrubado em 45.

Samuel -
O Getúlio se caracterizava principalmente por aquela famosa frase da filosofia política getulista: esquecer e não perdoar. Getúlio não guardava ressentimentos políticos de espécie alguma. Além do mais, Góis foi realmente um grande amigo dele, fizeram juntos a Revolução de 30. Góis foi um dos fatores chaves, talvez o principal, do golpe de Estado de 37. Porque o general Dutra não era um homem que se distinguisse nem pela sua inteligência nem pela sua cultura. O Góis era o líder intelectual do Exército brasileiro. E o Getúlio conhecia as suas ambições. O Getúlio conhecia e sabia que se Góis viesse a ser vice, possivelmente procuraria tomar o seu lugar. Mas ele o conhecia, ele sabia como manobrar com ele e buscava a cobertura militar, que deveria ter sido produto de longas conversas no curso da campanha, de conspirações, as quais Adhemar de Barros terminantemente cortava de todas as formas, insistindo que se Getúlio não aceitasse Café ele o deixaria.

Foi um gesto de habilidade do Adhemar, que possivelmente teria influído junto ao Góis para não aceitar. Porque também o Adhemar sabia que se Góis Monteiro aceitasse, ele (Adhemar) jamais seria presidente em 55. O presidente seria certamente o Góis Monteiro. Era todo um jogo de sutilezas, de emissários no meio de uma campanha que incendiara o País e na qual eu estava envolvido como repórter e já um pouco como confidente. Fatos que na ocasião não podiam ser noticiados, a pedido de Getúlio - o que também ocorre muitas vezes com um grande repórter (e eu recomendo muito que jamais o repórter falhe à confiança da sua fonte).

Samuel, agora eu quero que você me fale do jornalismo brasileiro.

Samuel -
Na minha participação no jornalismo brasileiro, eu a considero importante por ter feito da minha profissão, o essencial, o fundamental, a base da minha vida. Por ter sido realmente um puro jornalista. Por ter procurado no jornalismo a satisfação de um talento natural que eu tinha, e não sei de onde vinha, porque eu sou um autodidata, sou da família de imigrantes pobres. Um jornalista, além de talento precisa de muito trabalho, em primeiro lugar. O talento só não basta. Ele precisa de muita vivência, ele tem que mergulhar realmente na vida, para poder transmiti-la, porque o jornalista não é um criador de fatos, ele é um transmissor e precisa saber ver. E saber ver é só vivendo. Muitas vezes no mesmo lugar em que há três pessoas, acontece algo, só o jornalista vê. Além do seu talento natural, é preciso ter a paixão pela profissão. É fundamental em jornalismo. Tem que ser uma paixão como é a de um "boxeur" que entra no ringue, mesmo sabendo que vai apanhar e gosta do seu "metier"; você pode entender isso? Pode-se entender um "boxeur" que gosta de ser "boxeado"?

Mas Samuel, onde é que começa esse namoro seu com jornalismo, porque a gente sabe, que começa com você muito jovem. Esse namoro que depois se transforma num romance eterno.

Samuel -
É, não foi um amor às cegas, não, foi uma vinculação. Bom, começa na escola, na tentativa de fazer o primeiro jornal estudantil. Acho também que na minha raça há uma certa tendência, uma certa coisa no judeu que o leva ao jornalismo. Talvez venha da dispersão, sabe? Das histórias que ouvi em criança, das fugas, dos "pogroms" há qualquer coisa, que torna a presença do judeu no jornalismo no mundo inteiro um fato impressionante. Uma vez só, porque não dava pra viver, tentei ser comerciante, não consegui, sou um péssimo comerciante e voltei ao jornalismo. Eu tinha a vocação de um grande repórter pela formação da minha vida. E editor por ter viajado muito, por ter depois, compreendido que era muito importante pro jornalista viajar. Compreendi a tal ponto que, várias vezes, interrompi a minha carreira pra viajar e aprender.

E o que eu aconselho às pessoas com quem eu tenho mais estima: "Não confie apenas no seu talento de escrever, este é um dom divino você pode ser um grande escritor e um mau jornalista. Porque o autor recria a realidade. Jorge Amado, que é um dos maravilhosos escritores é um dos piores repórteres que conheci. Minha verdadeira vida profissional começa com a revista chamada "Diretrizes" que fundei em março de 1938. O primeiro semanário brasileiro, de tendência política com vinculação popular. Daí saíram repórteres que hoje fazem parte da história do Brasil: Justino Martins foi lançado em "Diretrizes" numa grande reportagem chamada "Como Era Verde o Meu Brasil", mandada pelo correio. Joel Silveira foi lançado em "Diretrizes" com outra sensacional reportagem, chamada "Os grã-finos de São Paulo". Na realidade eu considerava a reportagem a essência do jornalismo. "Diretrizes", conseguiu viver sete anos, de 38 a 44, dentro de uma ditadura fazendo uma revista antiditatorial.

Portanto, também está provado que quando você quer, quando você sabe escrever, quando você sabe exprimir as suas idéias, você consegue vencer a censura. Era uma censura prévia. Em 45, após um exílio de um ano nos Estados Unidos, voltei ao Brasil. E daqui parti para cobrir os últimos meses da guerra para "Diretrizes", que tinha ressurgido como jornal diário. Fui o único repórter brasileiro a cobrir o Tribunal de Nuremberg. Quando retornei da Europa o Assis Chateaubriand me convidou para os "Associados", em julho de 1947. Aceitei. Primeiro porque eu queria conhecer por dentro uma grande empresa, o ventre de uma grande empresa. Porque ele me pagou um salário excelente pra época. Eram 20 contos, equivalia hoje a 200 mil cruzeiros, quebrou todos os padrões. Ele sabia, ele tinha um instinto, ele já tinha lido coisas minhas. Aí entrei nos "Diários Associados" onde eu vi por dentro o chamado grande jornalismo. Fui editor nos "Diários Associados", fui secretário de redação, redator, colunista, mas principalmente repórter. Foi quando descobri Getúlio.

Ele era o líder popular mais querido, mais amado do Brasil, então era facílimo. Como ele só recebia a mim, prá mim o Getúlio era uma boa matéria prima jornalística. Eu o tinha combatido a vida inteira, mas nada tinha a ver com aquele outro Getúlio que voltava - como ele mesmo declarou - como líder de massas e não mais como líder de partido. Prá mim o Getúlio era um grande assunto, porque o fundamental na vida do jornalista é o assunto. A vida do jornalista se compõe do assunto. Se ele tem o assunto e o assunto se entrega a ele, ele deve tirar desse assunto as últimas consequências. O jornalista que mata ou que trai a confiança de seu assunto é um médico que mata o seu paciente. Dessa amizade com Getúlio nasceu a "Última Hora".

O jornal cumpriu o seu papel inicial que foi o de provocar a competição pela notícia. Nós tínhamos um repórter ao lado do presidente o dia inteiro, mas prá humanizar as notícias dele, porque as notícias vinham oficiais, era um resto de censura, era o hábito da censura. A coluna se tornou tão importante que deu um editorial no "Correio da Manhã", o que na época era uma consagração, chamava-se "O Dia do Presidente". Essa Nova Instituição da Imprensa Brasileira. Os jornais estrangeiros preferiam tirar a notícia do "Dia do Presidente" e não da Agência Nacional.

Portanto a "Última Hora" não foi criada acidentalmente, ela ia sendo criada à medida que a gente criava novos quadros e novas idéias. Eu senti que a popularidade de Getúlio me dava uma comunicação com todas as camadas sociais e a linha nacionalista me dava comunicação com a camada dirigente do novo empresariado brasileiro. Então, a "Última Hora" foi, realmente, um produto de uma imensa vivência jornalística e política. A prova é a seguinte: Stanislaw Ponte Preta, que é um dos maiores humoristas da história do nosso País, que é o símbolo do grande humorismo da criação brasileira, é lembrado mais pelas suas piadas políticas. A partir do momento em que a "Última Hora" teve esse êxito, fatalmente criou-se o conflito com a oligarquia tradicional e eu fui liquidado, mas levou muito tempo. Foi uma longa luta. Ninguém percebe que levou mais de 20 anos.

Juscelino assume e eu sou o único jornal a apoiar Juscelino inicialmente, com as loucuras que representou o começo do governo Juscelino. Com os golpes da Aeronáutica em Aragarças, com o Lacerda lançando nas ruas as massas contra Juscelino e nós apoiando Brasília, sobrevivemos a Juscelino. Não apoiamos Café Filho, nem o Jânio. Eu não apoiei o Jânio, nunca acreditei no Jânio como dirigente. Podia ter-nos liquidado.

Quem fez a "Última Hora" resistir tanto?

Samuel -
A conclusão que eu tirei era uma só: o instrumento que eu havia criado era melhor que a mensagem. Ele era mais forte que a mensagem. Então, um jornal, antes de mais nada, deve ser um bom jornal. O instrumento deve ser tecnicamente perfeito. Eu trouxe o diagramador, criei a valorização do repórter, individualizei a função do fotógrafo, estruturei a cobertura de massa, enfim, uma série de coisas - que representam toda a criação de uma equipe, porque ninguém cria nada sozinho em jornal.

Em jornal a equipe é a base de tudo. E a minha conclusão é essa. O fator fundamental e importante de um jornal é antes de mais nada ser um excelente jornal, bem feito tecnicamente. Não importa o tipo da técnica. O "Le Monde" é um jornal feio, mas é uma nova técnica. E a técnica "Le Monde" mudou a imprensa européia. Por isso é que instintivamente mandei para a valorização da equipe. Na época predominava uma mentalidade um pouco ainda, muito, vamos dizer, mercantilista, a valorização do jornalista representava a valorização do salário. Então, era preciso desvalorizar o jornalista, prá não valorizar o salário. Por isso ninguém assinava matérias. "Última Hora" rompeu com isso tudo.

Finalmente, para dar a medida da importância que "Última Hora" havia assumido, acho que esse episódio basta. Getúlio já estava com um milhão de votos na frente, jornalistas de toda a parte correram para a fazenda São Pedro, no Sul, aonde Getúlio se instalara. Todos queriam as primeiras declarações do presidente-eleito. Atendendo a um pedido de Alzira Vargas e João Neves da Fontoura, levei uma carta deles para Getúlio. A carta informava que crescia a conspiração da UDN contra a sua posse. Alzira e Fontoura tinham pedido a mim que conseguisse com Getúlio algumas declarações que amortecessem os riscos da sua posse.

Eu então montei, com os conhecimentos que eu tinha das posições de Getúlio, uma entrevista de 20 laudas. Mostrei a ele e ao terminar a leitura ele deitou-se na cama. Então eu lhe disse: Bem presidente, vou ter que embarcar amanhã, o senhor tem mais alguma coisa a acrescentar? E ele, muito sorridente, respondeu: "Bom, a entrevista está boa. Ela está boa por dois motivos: 1º porque tu botaste nela tudo o que eu disse e 2º porque botaste tudo o que eu não disse." E eu dei uma grande risada de satisfação".


© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.