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São
Paulo, domingo, 6 de agosto de 1978
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A DELINQUÊNCIA ACADÊMICA
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Entrevista
com Maurício Tragtenberg |
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Folhetim - Professor Maurício, que universidade é
essa?
Maurício Tragtenberg - A universidade está em
crise e isso ocorre porque a sociedade está em crise. O tema
é amplo, abrangendo a relação entre dominação
e saber, a relação entre o intelectual e a universidade
como instituição ligada à dominação,
ou seja, a universidade anti-povo. A universidade não é
uma instituição neutra, é uma instituição
de classe onde as contradições de classe aparecem.
Para obscurecer esses fatores ela desenvolve uma ideologia, um saber
neutro, científico, quer dizer, a neutralidade cultural e
o mito de um saber "objetivo" acima das contradições
sociais. Isso se acirrou a partir de 1964, quando a Universidade
foi praticamente apartada da realidade, se encastelou. Nesse momento
surgiu a figura do intelectual burocrata, do funcionário
intelectual, que mais reproduz do que produz conhecimento próprio.
Folhetim - Aparentemente ela distribui o saber "objetivo".
Mas qual deveria ser a função real da universidade?
Maurício - Hoje a universidade forma a mão-de-obra
destinada a manter nas fábricas o despotismo do capital.
Nos institutos de pesquisa cria aqueles que deformam dados econômicos
em detrimento dos assalariados. Nas escolas de Direito forma os
aplicadores de legislação de exceção.
Nas escolas de Medicina aqueles que irão convertê-la
numa medicina do capital ou utilizá-la repressivamente contra
os deserdados do sistema. Em suma, trata-se de um "complô
de belas almas" recheadas de títulos acadêmicos,
de doutorismo substituindo o bacharelismo, de uma nova pedantocracia,
da produção de um serviço do saber.
Folhetim - Existe gente na Universidade preocupada com a reforma
universitária. Mesmo assim...
Maurício - A coisa é feita às cegas. Existe
a figura do planejador tecnocrata formado pelas faculdades de educação
a quem importa discutir os meios sem discutir os fins da educação,
confeccionar reformas educacionais que são verdadeiras "restaurações".
Formam o professor-policial, aquele que supervaloriza o sistema
de exames, a avaliação rígida do aluno, seu
conformismo ante o saber professoral. A pretensa criação
do conhecimento é substituida pelo controle sobre o parco
conhecimento produzido pelas nossas universidades. O controle de
meio se transforma em fim e o campus universitário cada vez
mais parece um universo concentracionário que reúne
aqueles que se originam das classes alta e média, professores
e alunos, "herdeiros" potenciais do poder através
de um saber minguado atestado por um diploma.
Folhetim - Qual o mecanismo através do qual a Universidade
mantém sua característica classista?
Maurício - A Universidade classista se mantém
através do poder exercido pela seleção dos
estudantes e pelos mecanismos de nomeação para os
professores. Na universidade mandarinal do século passado
o professor cumpria a função de "cão de
guarda" do sistema, ou seja, como produtor e reprodutor da
ideologia dominante, chefe da disciplina do estudantado. Cabia à
sua função professoral, acima de tudo, inculcar as
normas de passividade, subserviência e docilidade através
da repressão pedagógica. A transformação
do professor "cão de guarda" em "cão
pastor" acompanha a passagem da universidade pretensamente
humanística e mandarinesca à universidade tecnocrática,
onde os critérios lucrativos da empresa privada funcionarão
para a formação das fornadas de "colarinhos brancos"
rumo às usinas, escritórios e dependências ministeriais.
É o mito da assessoria, do posto público que mobiliza
o diplomado universitário.
Folhetim - Como o senhor explica o fato de que a Universidade
também mantém alguns cursos críticos?
Maurício - Os "cursos críticos" desempenham
a função de um tranquilizante no meio universitário.
Essa apropriação da crítica pelo mandarinato
universitário, mantido o sistema de exames, a conformidade
ao programa e o controle da docilidade do estudante como alvos básicos,
constituiu-se numa farsa, numa fábrica de boa consciência
e delinquência acadêmica, aqueles que trocam o poder
da razão pela razão do poder. Por isso é necessário
realizar a crítica da "crítica", destruir
a apropriação da crítica pelo mandarinato universitário.
Não se trata de discutir a apropriação burguesa
do saber ou não-burguesa do saber, e sim a destruição
do "saber institucionalizado", do "saber burocratizado"
como único "legítimo".
Folhetim - A função principal da Universidade
seria então a de reproduzir a ideologia do sistema de dominação?
Maurício - A Universidade reproduz o modo de produção
capitalista dominante não apenas pela ideologia que transmite,
mas pelos servos que ela forma. Por exemplo, o sistema de exames,
esse batismo burocrático do saber. O exame é a parte
visível da seleção. A parte invisível
é a entrevista, que cumpre as mesmas funções
de "exclusão" que possui a empresa em relação
ao futuro empregado. Informalmente, docilmente, ela "exclui"
o candidato. Para o professor há o currículo visível
tipo publicações, conferências e atividade didática,
e há o currículo invisível, esse de posse da
chamada "informação", que possui espaço
na Universidade, onde o destino está em aberto e tudo é
possível acontecer. Há os "ratos" das salas
privadas, os "ratos" da Reitoria. É através
da nomeação, da cooptação dos mais conformistas,
nem sempre os mais produtivos, que a burocracia universitária
reproduz o canil dos professores.
Folhetim - O que é essa "delinquência acadêmica?
Maurício - Essa "delinquência acadêmica"
aparece em nossa época longe de seguir os ditames de Kant:
ouse conhecer. Se os estudantes quiserem conhecer os espíritos
audazes de nossa época, é fora da Universidade que
irão encontrá-los. A bem da verdade, raramente a audácia
caracterizou a profissão acadêmica. É a razão
pela qual os filósofos da revolução francesa
se autodenominavam de intelectuais e não de acadêmicos.
Isso ocorria porque na Universidade havia hostilidade ao pensamento
crítico avançado. O projeto de Jefferson para a Universidade
de Virgínia, concebida para a produção de um
pensamento independente da Igreja e do Estado, de caráter
crítico, foi substituído por uma universidade que
mascarava a usurpação e monopólio da riqueza,
do poder. Isso levou os estudantes da época a realizarem
programas extra-curriculares onde Emerson se fazia ouvir, já
que o obscurantismo da época impedia sua entrada nos prédios
universitários.
Folhetim - Além de pouco audaz, parece que a "delinquência
acadêmica" se preocupa mais com títulos do que
com o ensino.
Maurício - É que a política das "panelas"
universitárias de corredor e a publicação a
qualquer preço de um texto qualquer se constituem no metro
para medir o sucesso universitário. Nesse universo não
cabe uma simples pergunta: o conhecimento a quem serve e para que
serve?
Folhetim - A quem e para quê?
Maurício - Em nome do "atendimento à comunidade"
e do "serviço público", a universidade tende
cada vez mais a se adaptar a qualquer pesquisa a serviço
dos interesses econômicos hegemônicos. Nesse passo a
universidade brasileira oferecerá disciplinas como as existentes
na Metrópole: cursos de escotismo, defesa contra incêndios,
economia doméstica e datilografia a nível de secretariado...
(risos) pois já existe isso em Cornell, Wisconsin e outros
estabelecimentos legitimados. A universidade brasileira se prepara
para ser uma "multiversidade", isto é, ensina tudo
aquilo que o aluno possa pagar. A universidade vista como prestadora
de serviços corre o risco de enquadrar-se numa "agência
do Poder", especialmente após 68, com coisas do tipo
Operação Rondon. O assistencialismo universitário
não resolve o problema da maioria da população
brasileira: o problema da terra. Uma universidade que produz pesquisas
ou cursos a quem é apto a pagá-los perde o senso de
discriminação ética e da finalidade social
de sua produção. É uma "multiversidade"
que se vende no mercado ao primeiro comprador, sem averiguar o fim
da encomenda. Isso tudo encoberto pela ideologia da neutralidade
do conhecimento e seu produto. Já na década de 30,
Frederic Lilge, em seu livro "The Abuse of Learning: The Failure
of German University", acusava a tradição universitária
alemã da neutralidade acadêmica de permitir aos universitários
alemães a felicidade de um emprego permanente, escondendo
a si próprios a futilidade de suas vidas e seu trabalho.
Folhetim - No 1o Seminário de Educação
Brasileira a situação parecia ser outra. Havia bastante
gente preocupada com a responsabilidade social do educador.
Maurício - Realmente havia. Mas eu não me iludo
com congressos. A maioria dos congressos acadêmicos universitários
serve de "mercado humano" onde entram em contato pessoas
e cargos acadêmicos a serem preenchidos, parecidos aos encontros
entre gerentes de hotel onde se trocam informações
sobre inovações técnicas. Revê-se velhos
amigos e se estabelecem contatos comerciais. Estritamente falando,
o mundo da realidade concreta é muito generoso com o acadêmico,
pois o título torna-se o passaporte que permite o ingresso
nos escalões superiores da sociedade: a grande empresa, o
grupo militar e a burocracia estatal. O problema da responsabilidade
social é escamoteado. A ideologia do acadêmico é
não ter nenhuma ideologia, ele faz fé de apolítico,
servindo assim à política do poder. A filosofia racionalista
do século 18 legou uma característica do verdadeiro
conhecimento: o exercício da cidadania implicava no soberano
direito de crítica à autoridade, aos privilégios
e tradições. O serviço público prestado
por esses filósofos não consistia na aceitação
indiscriminada de qualquer projeto, fosse destinado à melhora
de colheitas, ao aperfeiçoamento do genocídio de grupos
indígenas a pretexto de "emancipação"
ou políticas de arrocho salarial, que converteram o Brasil
no detentor do triste recorde de primeiro país no mundo em
acidentes de trabalho, pois a propaganda pela segurança no
trabalho emitida pelas agências oficiais não substitui
o aumento salarial.
Folhetim - O senhor fala no discurso apolítico do acadêmico.
Não há nenhum discurso político na Universidade?
Maurício - A separação entre fazer e pensar
se constitui numa das doenças que caracteriza a delinquência
acadêmicas. O falar é às vezes muito pra frente
e o fazer às vezes muito pra trás. Ao analisar a crise
de consciência dos intelectuais americanos que deram o aval
à escalada no Vietnã, Horwitz notara que a disposição
que eles revelaram no planejamento do genocídio estava vinculada
à sua formação, a sua capacidade de discutir
meios sem nunca questionar os fins, a transformar os problemas políticos
em problemas técnicos, a desprezar a consulta pública
preferindo as soluções de gabinete, consumando o que
definiríamos a traição dos intelectuais.
Folhetim - Como então combater o academicismo?
Maurício - Fundamentalmente, a realidade é dialética.
A mesma realidade que cria o academicismo, que cria o saber oficial,
que cria a ideologia oficial, que se esclerosa e se cristaliza através
dos manuais oficiais e livros didáticos, essa mesma realidade
cria também a contra-ideologia. Essa mesma realidade cria
o seu oposto.
Folhetim - Qual a alternativa para que a Universidade deixa
de ser, para usar palavras suas, um "depósito de alunos",
ou um "cemitério de vivos"?
Maurício - A alternativa é a criação
de canais de participação real de professores, estudantes
e funcionários no meio universitário que se oponham
à esclerose burocrática da Instituição.
A autogestão pedagógica teria o mérito de devolver
à Universidade um sentido de existência, ou seja, um
aprendizado baseado numa motivação de participação
e não em decorar determinados "clichês" repetidos
semestralmente nas provas que nada provam, nos exames que nada examinam,
onde o aluno sai da universidade com a sensação de
estar mais velho e apenas com um dado a mais: o diploma, que em
si perde valor na medida em que perde sua raridade. A saída
é a autogestão. Só que esta solução
não se dá a nível interno da Universidade,
sendo uma questão da sociedade global. Não se pode
ter uma Escola pra frente com um Estado pra trás.
Folhetim - Então, qual o poder da Universidade?
Maurício - A Universidade é o reflexo das contradições
sociais, ela não as cria mas reflete. Pelo fato de ser um
reflexo, o seu papel não é determinante no corpo social.
Não é tendo o poder na Universidade que se tem o poder
na sociedade global. Isso só pode ser um sonho de uma noite
de verão, não é? O messianismo acadêmico
é uma desgraça. Agora, na medida em que a Universidade
reflete contradições, existem intelectuais críticos
e intelectuais fascistas na Universidade. A questão da Universidade
em si, a questão do pensamento crítico na Universidade,
não se resolve internamente e sim no plano político
maior, no plano das relações de poder. Se no todo
social há espaço para as contradições
aparecerem, se o operário tem o direito de fazer greve, se
ele tem direito de organizar o seu sindicato independente da burocracia
do Estado e da polícia, então na Universidade há
espaço para a luta. Embora a opção seja pessoal,
ela não se resolve a nível pessoal. Se não
se juntar a grupos, a associações, a partidos, a ação
será ineficiente. Só que as associações
que se criaram neste País, os partidos políticos,
como dizia o velho Oliveira Vianna, são associações
públicas de direito privado, e a última eleição
mostrou isso fundamentalmente. São meros clãs parentais,
meros clãs feudais, meros grupos de pressão dos interesses
econômicos. A formação de outros agrupamentos
depende da dinâmica social e nem tanto do voluntarismo do
segmento acadêmico que porque leu Marx, leu Weber, sai na
rua e acha que vai formar o partido a, b ou c. Isso também
é uma coisa típica do messianismo intelectual. Fundamentalmente,
depende da dinâmica da organização dos trabalhadores
industriais e burocráticos. Agora, apressar pode se negativo,
estar atrás também é negativo, mas estar muito
a frente é mau porque fica na vanguarda sem retaguarda. Nós
vimos o que foi 64: excesso de vanguarda sem retaguarda, quer dizer,
muito chefe e pouco índio.
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