São Paulo, quarta-feira, 17 de novembro de 1948
Neste texto foi mantida a grafia original

UM DEBATE OPORTUNO SOBRE ARTES PLASTICAS

Depoimento de Flexor:

"Liberdade é o direito que nos dão de escolher nossa propria prisão, isto é, o direito de escolher nossa propria disciplina", afirma à Folha da Noite o ilustre pintor da Escola de Paris.

Dos temas em foco nas discussões sobre as artes plasticas, estimuladas pela polemica entre abstracionistas e partidarios do realismo, talvez o mais importante seja o da liberdade do artista.

Mas no que consiste esta liberdade?

Georges Lukacs, um dos espiritos mais lucidos de nossa epoca, num ensaio recente: "Art libre ou art dirigé", publicado em "Esprit" nº 9 de setembro de 1948, diz que "na antiguidade, na idade media e mesmo na Renascença, a arte antiga fazia parte da vida publica e os artistas não hesitavam em aceitar todas as consequencias decorrentes desse fato", isto é: "orientavam-se pelos criterios da classe social a que pertenciam ou pelas convicções adquiridas durante a vida". E isso significa que "eram dirigidos, na ideologia, nos temas e na forma de expressão, pela sociedade onde suas criações faziam parte da vida publica".

Isso, entretanto, não quer dizer arte absolutamente dirigida, ausencia total de liberdade - acrescenta Lukacs, pois a sociedade, na sua evolução permanente, sempre permitiu ao artista um campo de ação bastante vasto para suas criações.

A grande obra de arte reflete a realidade em movimento, supera sempre as condições objetivas, ou as intenções subjetivas que lhe deram origem, e nisso reside sua liberdade.

Pensam de forma diferente, entretanto, muitos artistas modernos que, encastelados num subjetivismo exarcebado procuram fugir de toda realidade exterior para exprimir visões magicas de um mundo intimo e individual. A isso eles chamam liberdade.

O tema é realmente dos mais empolgantes, mas não cabe ao reporter discuti-lo. Nesta serie de entrevistas, cabe-lhe apenas contar ao publico o que, a respeito, ouviu dos artistas.

Hoje, nosso entrevistado é Flexor, ilustre pintor francês da Escola de Paris, recentemente chegado da Europa.

Fomos encontrá-lo no seu atelier, à Alameda Santos, diante de uma grande tela que acabava de preparar e que ainda estava virgem. Depois de uma primeira troca de palavras, sempre interrompidas por dois endiabrados garotos que a todo instante abriam uma porta, Flexor disse-nos que estava a espera de Leon Degand. Aproveitamos a deixa para perguntar-lhe qual a sua posição em face do abstracionismo.

- Um artista tem o direito e até mesmo o dever de lançar mão de todas as formas de expressão plastica, figurativas ou não, desde que saiba usá-las. Pessoalmente, confesso minha predileção pelas formas depuradas o puras, pois acho que a pintura deve ter sua linguagem propria e desprezar o quiproquo da ilusão optica ou das aparencias.

Como nossa primeira pergunta havia sido sugerida apenas pela citação do nome do sr. Leon Degand, e visavamos principalmente saber qual a opinião de Flexor sobre a liberdade e dirigismo em arte, perguntamos-lhe, como artista, qual o seu conceito de liberdade.

- Para nós, artistas, liberdade é o direito que nos dão de escolher nossa propria prisão, isto é, o direito que nos dão de escolher nossa propria disciplina. No meu modo de entender, arte livre ou arte dirigida é um problema condicionado pela sociedade em que vive o pintor. Quando este faz seus trabalhos baseado em pesquisas individuais, o menor dirigismo significaria a inutilidade dessas pesquisas. Entretanto, quando o artista aceita uma encomenda, seja uma tela ou um mural, deve ter a capacidade suficiente para fazer obra de arte dentro das condições do que lhe é pedido.

- E num sentido mais geral?

- Cada epoca tem seu espirito e o artista de certa forma está subordinado a ele, queira ou não. Liberta-se apenas na medida das possibilidades que a epoca lhe dá para o desenvolvimento de sua personalidade. Creio que a evolução da pintura, mais do que qualquer outra arte, depende da evolução dos metodos do pensamento humano.

- E qual o seu ponto de vista sobre a participação do artista na vida social?

- A obrigação fundamental do artista é produzir. Assim, a do pintor é pintar. Fará obra util se exaltar o que existe de mais humano no homem, isto é, os momentos em que o homem é mais perfeitamente homem. Aliás tais momentos estão sempre subordinados à evolução do que é mais humano no homem: o que foi na idade media Deus e a religião, o que a seguir foi a razão e o que atualmente é o complexo da razão e do irracional, ou melhor, a ultra-sensibilidade de hoje é o que caracteriza o homem dos nossos dias.

- E acha que o artista tem o dever de procurar comunicar-se com o publico?

- Dever?... Não. A comunicação, entretanto, dá-lhe o prazer de não se sentir sozinho.

Nesse instante chegou o sr. Leon Degand e a conversa se generalizou. Estava encerrada nossa estrevista.
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