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São
Paulo, domingo, 12 de outubro de 1980
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A EMBALAGEM DA MULHER OBJETO
A socióloga Jacqueline Pitangui
diz que a mulher é educada para ser objeto. E a roupa serve
de embalagem.
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Mulher
tem que ser bonita. Magra e bem vestida, ela é o perfeito
objeto do desejo masculino. Dentro de uma construção
social do que seja o feminino, a mulher é educada para ser
objeto (de desejo, de propriedade, de sexo) do homem e, por isto
mesmo, para fazer do seu corpo, do seu visual, um elemento essencial
de identidade. A mulher ideal, de acordo com padrões ainda
vigentes, é linda e imóvel, como a Branca de Neve
e a Bela Adormecida, salvas por príncipes que passavam andando
a cavalo pelo mundo.
Nesta entrevista à repórter Silvia Helena, da sucursal
do Rio, falando da moda como expressão - seja de um momento
histórico, de uma estrutura de produção ou
de valores - a socióloga Jacqueline Pitangui chama atenção
também para o fato de que os homens - porque não são
a-sociais nem a-históricos - estão, tanto quanto as
mulheres, envolvidos com a moda. Até mesmo quando a construção
do seu papel social exige que "não se importem com isto".
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FOLHETIM - Como é que a moda funciona na sociedade?
JACQUELINE - A moda funciona em vários níveis.
No nível simbólico, ela é frequentemente símbolo
de status, e no vestuário isto é nítido: a
roupa indica a que grupo social pertence uma determinada pessoa.
É uma espécie de passaporte social, que se afunila.
A determinada camada, você pode pertencer ao usar determinado
tipo de moda; no topo da pirâmide, a roupa tem que ser feita
por determinada casa ou até mesmo por determinado costureiro.
Pertencer a um grupo significa automaticamente excluir-se de outros,
e isto também entra na moda, porque ela funciona com o sentido
de diferenciação. O valor simbólico, ao mesmo
tempo que inclui, exclui.
FOLHETIM - As etiquetas penduradas do lado de fora da roupa
marcariam esta diferenciação?
JACQUELINE - Na questão do status, um fenômeno
típico é a mudança da moda. Quando uma parcela
muito grande da população passa a usar determinada
moda, ela deixa de servir como diferenciação, e então
inventa-se outra. Ou descobre-se, dentro dela mesma, elementos que
indiquem diferença de status.
O Jeans começou a ser usado aqui como status mesmo de uma
classe social mais alta. Era importado, etc. Depois, com a produção
em massa, tornou-se importante mostrar que a calça é
marca "x" ou "y": o status está no acesso
que se tem a estas marcas. A etiqueta do lado de fora está
relacionada com a produção em massa, é uma
forma de manter a estratificação dentro dela.
Eu acho importante apontar que a moda, mesmo quando ela nega a sociedade
de consumo, leva consigo um símbolo, um passaporte para um
grupo ao transmitir certa imagem. A moda das saias compridas, das
túnicas e sandálias indianas, indica que provavelmente
a pessoa que a usa nega valores da nossa sociedade, opta talvez
por alimentação natural, mas continua a ser - enquanto
moda - um símbolo de exclusividade. Alguma coisa que mostra
onde aquela pessoa se inclui e de onde se exclui.
FOLHETIM - Até agora nós estamos falando do ponto
de vista simbólico, ideológico, da moda. E do ponto
de vista material?
JACQUELINE - A moda é produzida também dentro
dos fatores históricos de um momento. De repente são
feitas roupas mais práticas, porque a gente precisas subir
escada, tomar ônibus, dirigir carro. Têm as necessidades
da vida e as do consumo: a moda tem que mudar para que as pessoas
consumam.
É inegável que minissaia, nos anos 60, funcionou como
símbolo de mulher liberada, que mostrava o corpo. Ela veio
junto com a pílula. Mas na hora em que havia a minissaia
e a miniblusa, se continuasse, a indústria têxtil não
resistiria. Então, vieram as saias longas, a maxisaia. A
produção cria o consumo, pelo seguinte raciocínio:
a coisa primeiro é produzida, há uma indução
a seu consumo, que volta à produção, aumentando-a
ou não. O que não desvincula a moda do simbólico,
porque o símbolo não está desligado das condições
de produção.
FOLHETIM - E como entraria a mulher como alvo da moda, do consumo?
JACQUELINE - Em primeiro lugar, é preciso desfazer a
idéia de que o homem, por ser homem, está imune "a
estas coisas", flutuaria acima desta questão. O que
acontece - e está ligado à construção
social dos papéis de homem e mulher - é que se espera
do homem que ele se prepare para a vida principalmente através
da inteligência, da razão, da cabeça; e a mulher,
através do corpo.
Literalmente desde o berço o bebê mulher é muito
mais enfeitado com rendas e babados. Mulher tem que ser bonita,
e aí a gente entra na moda porque beleza é também
uma construção social, é um enquadramento nos
parâmetros sociais, e então a mulher segue a moda de
forma mais ortodoxa do que o homem. Para quem a moda pode ser não
seguir a moda - na medida que isto o enquadra num padrão
de estética para o masculino, que seria o despojamento. Há
uma pressão social que se dá tanto para homens quanto
para mulheres, mas de forma diferente. E é esta forma que
vai inclusive conformar o que é masculino e o que é
feminino.
FOLHETIM - Como você vê, na relação
homem-mulher, esta pressão social para que a mulher seja
bonita?
JACQUELINE - Aí funciona muito o aspecto psicológico
da mulher que se faz como um ser para outro, e que se concebe, se
vê assim mesmo. O que fica claro, tomando-se por exemplo,
as palavras que caracterizam o feminino: a mulher dá, cuida,
ela abre mão. Ela se coloca sobretudo como objeto de desejo
do homem. E não como aquela que deseja, que quer, que faz
valer sua vontade.
Aí chegamos à moda porque ela se liga à imagem
do que seja desejável em uma determinada sociedade. Na nossa,
uma mulher magra e dentro da moda seria o perfeito objeto de desejo
do homem. E o homem, que se coloca como sujeito do desejo, teria
então muito mais liberdade para ser feio, para ser gordo,
porque o passaporte social da masculinidade se dá por outros
elementos. O que não quer dizer que os homens não
tenham uma preocupação estética. Precisam ter
para não ficarem marginais, fora dos padrões.
FOLHETIM - Existe agora uma tendência entre homens (não
são maioria) de demonstrar preocupação com
a beleza; homens que declaram que se cuidam. O Gabeira, por exemplo,
que aliás está na moda.
JACQUELINE - A moda unissex, significou somente que as mulheres
podiam vestir roupas masculinas, não o contrário.
Neste sentido, revelou uma tentativa das mulheres de, por alguma
forma, entrarem no universo masculino.
Mas os homens continuaram vestindo como antes, porque na nossa cultura
tudo o que se identifica com o feminino é desvalorizado.
O estereótipo da mulher é o de um ser frágil,
inseguro, emocional, fútil. Preocupada com o corpo e voltada
para dentro do lar. O estereótipo masculino é de alguém
forte, voltado para fora, para o trabalho externo. E agora há
homens, como o Gabeira, que assumem coisas culturalmente desvalorizadas
porque identificadas com o feminino. O que me parece que está
sendo questionado como um discurso como o do Gabeira é a
fronteira construída culturalmente entre o masculino e o
feminino.
Na medida em que um homem assume coisas "de mulher", ele
abre uma porta para que as mulheres penetrem também no terreno
reservado "aos homens". É uma proposta de maior
igualdade no relacionamento homem-mulher, que até agora tem
se marcado pela ênfase nas diferenças, o que se desdobra
em mil símbolos. Moda inclusive, desde a fitinha cor de rosa
no cabelo da menina, enquanto o menino não usa fita.
A mulher é "treinada" por esta sociedade para se
achar frágil (mesmo quando objetivamente não é),
o que corresponde ao papel de objeto do desejo (e não de
sujeito), que por sua vez corresponde a uma determinada imagem,
um determinado visual - que ela adota até como estratégia
de sobrevivência dentro da nossa cultura.
Na medida em que um homem não se considera desvalorizado
ao assumir comportamentos "femininos", que ele não
se considera fragilizado por isto, ele está fortalecendo
também a mulher. Abrindo uma brecha para que ela se coloque
também como sujeito do desejo e haja uma relação
de igualdade, rompendo a hierarquia sexual que necessariamente existe
entre algum que se põe na condição de sujeito
e alguém que está na condição de objeto
do desejo.
FOLHETIM - Você não acha que a maioria das mulheres
continua cobrando de seus homens um comportamento - e uma aparência
- dentro dos padrões sociais do macho?
JACQUELINE - Sob este ponto de vista, é importante o
trabalho político do feminismo, do movimento dos negros,
do movimento dos homossexuais, pela valorização, pela
afirmação do que a cultura vê como inferior.
Um movimento como o feminista vai colocando na cabeça das
mulheres - mesmo quando ainda presas por estruturas internas, inconscientes,
aos velhos padrões - informações que questionam
a hierarquia sexual, e os efeitos não se apresentam de imediato.
São muitas as mulheres que adquirem a consciência de
que precisam mudar seu cotidiano, mesmo que isto muitas vezes não
seja socialmente visível.
Estes movimentos estão abrindo espaço para um maior
individualismo, no melhor sentido. Um espaço para que cada
um se assuma como é, o que é muito diferente de uma
série de ideologias de engajamento social que tinha (e ainda
tem) como premissa, quase que como condição sine qua
non, o desprezo ao indivíduo. A idéia de que o indivíduo
só se realizaria por um momento social, político.
E este espaço se abre pelo rompimento de padrões,
que, mais uma vez, se expressam na moda: a imagem da mulher na nossa
sociedade é calcada em cima do seguinte tripé: ela
é virgem, mãe ou prostituta. Então a mulher
é socializada no sentido de ser (inclusive se vestir) de
maneira bastante atraente para despertar a atenção,
o desejo do homem - mas com cuidado, para não parecer prostituta.
Fica um jogo de equilíbrio entre os extremos, que é
difícil.
E o homem também é enquadrado em determinados símbolos.
Quando se fala em liberação, trata-se justamente de
romper estes moldes. De mostrar que o ser humano é contraditório
e que comporta várias formas, que pode se preocupar com seu
corpo, e que pode abrir mão desta preocupação.
FOLHETIM - Se esta liberação está em processo,
você identificaria na moda alguma coisa que a mostrasse?
JACQUELINE - Sapato de mulher eu acho muito interessante. A
moda dos sapatos baixos é alguma coisa que simboliza que
a mulher está se movimentando, que ela não está
imobilizada pelos saltos altíssimos. Na China, um dos atos
da revolução foi liberar o pé das mulheres
(na China tradicional, as chinesas usavam sapatos muito apertados,
que impediam o pé de crescer). Quer dizer, a mulher hoje
não está necessariamente imobilizada por sapatos que
dificultam seu movimento. E a mesma mulher que uma hora está
de alpargatas pode em outro momento usar salto vinte. Mas a idéia
de que o salto baixo já não é deselegante me
parece um símbolo de que a mulher hoje já se concebe
como alguém que anda, que se movimenta. Já não
é como as heroínas das histórias infantis,
imobilizadas como a Branca de Neve e a Bela Adormecida. |
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