São Paulo, sexta-feira, 18 de novembro de 1977

Fromm e a liberdade

O que é a liberdade como experiência humana? É algo inerente à natureza humana? É uma experiência idêntica, independente do tipo da cultura em que a pessoa vive, ou difere de acordo com o grau de individualismo atingido em uma determinada sociedade? É a liberdade apenas a ausência da pressão externa ou é também a presença de algo? Quais os fatores sócio-econômicos que contribuem para o anelo da liberdade? Pode a liberdade tornar-se um fardo por demais pesado? Por que, então, a liberdade é, para muitos, objetivo cobiçado e para outros ameaça? Não haverá igualmente, paralela ao desejo de liberdade, uma aspiração instintiva à submissão? O que é no homem uma sede de poder insaciável? Será o vigor de uma energia vital ou uma incapacidade fundamental para experimentar a vida amorosamente?

A análise do aspecto humano da liberdade e do autoritarismo obriga-nos a encarar um problema geral, qual seja o papel que os fatores psicológicos desempenham como forças ativas no processo social. A imagem familiar do homem nos últimos séculos era a de um ser racional cujas ações eram determinadas por seu interesse próprio e pela capacidade de agir em conformidade com este. As forças obscuras e diabólicas da natureza humana haviam sido relegadas para a Idade Média e explicadas pela falta de conhecimentos.

A gente voltava os olhos para esses períodos com se faria com um vulcão extinto. Sentíamos confiança e segurança nas realizações da democracia moderna exterminando as forças sinistras. O mundo parecia brilhante e seguro, como as ruas bem iluminadas de uma cidade moderna.

Quando o fascismo subiu ao poder, a maioria das pessoas estava despreparada, teórica como praticamente. Não foi capaz de crer que os homens pudessem exibir aquelas pretensões para o mal, aquela ânsia de poder, aquele desprezo pelos direitos dos fracos ou aquele anelo de submissão. Nietzsche havia perturbado o otimismo enfatuado do século XIX, o mesmo fez Marx, de maneira diferente. Outro alerta veio mais tarde por parte de Freud, indo mais além que qualquer outro no atentar para a observação e análise das forças irracionais e inconscientes que determinam certas partes do comportamento humano.

O homem tem de comer, beber, dormir, proteger-se dos inimigos, etc. A fim de fazer tudo isto ele tem de trabalhar e produzir. Este trabalho é determinado pelo sistema econômico. Cada espécie de trabalho exige traços de personalidade inteiramente diferentes e contribui para o estabelecimento de tipos diferentes de relacionamento com as demais pessoas. A necessidade de viver o sistema social são fatores que não podem ser modificados por ele como indivíduo e determinam o desenvolvimento dos outros traços que revelam maior plasticidade. O estilo de vida - demarcado pelo sistema econômico - torna-se fator primordial na determinação da estrutura do seu caráter. Existe um outro condicionante irresistível a demarcar personalidades: a necessidade de relacionar-se e ser aceito pelo mundo exterior. O homem pode viver em solidão física mas não em solidão moral.

A função da ideologia e da prática autoritária pode ser comparada à dos sintomas neuróticos. Estes sintomas são fabricados por condições psicológicas insustentáveis e, ao mesmo tempo, apresentam soluções que permitem viver. O dinamismo da natureza humana tende a procurar soluções satisfatórias desde que haja possibilidade de alcança-las, quaisquer sejam elas. A solidão e a impotência do indivíduo, sua busca de realização de potencialidades, a capacidade ilimitada da industria moderna são estímulos que constituem a base para uma procura cada vez maior da liberdade e da felicidade.

A história da humanidade é a história da busca da individuação e da aspiração de liberdade. A busca da liberdade não é um processo metafísico, é a resultante necessária do processo de individuação e da expansão da cultura. Os sistemas autoritários não podem extinguir as condições que dão lugar à individuação, nem exterminar a busca da liberdade que surge nestas condições.


_____________________________

Erich Fromm (1900 - 1980)
, um dos mais destacados teóricos da psicanálise contemporânea, alemão, tornou-se cidadão norte-americano em 1938. Sua formação sociológica, aliada à visão psicanalista, conformou suas doutrinas de que o homem é fruto de fatores psicológicos, intrínsecos, acrescidos de outros, extrínsecos, sociais. Pode-se dizer que Fromm foi o primeiro pensador a estabelecer um ponte entre Freud e Marx, sem contudo abandonar os pressupostos psicanalíticos sobre o mecanismo de formação das personalidades. Sua visão psicos-social , profundamente humanista, permitiu avaliações políticas originais, como nos casos dos regimes autoritários, examinados num contexto amplo em que se mesclam observações sobre a origem das neuroses autoritárias com outras sobre os fatores sociais que as estimulam. Autor fértil, Fromm tem grande aceitação nos meios universitários da Europa, EUA e Brasil. Sua obra mais famosa é a trilogia constituída de "O Medo à Liberdade", "Análise do Homem" e "Psicanálise da Sociedade Contemporânea", traduzida para grande número de línguas, inclusive para o português, e impressa em sucessivas edições. O texto acima foi extraído de "O Medo à Liberdade" (Zahar Ed. 10ª. Edição), com tradução de O. Alves Velho.

Veja também:
 
Crítica jornalística deve ser estridente e opinativa
 
 
Elis Regina fala ao Folhetim
 
 
Navio ao embalo de jazz e wisky
 
 
Poeta exalta a mulher e critica o poder
 
 
"Feliz 2001" por Clóvis Rossi
 
 
"Jantar para os amigos" por Moacyr Scliar
 
 
Exibindo posição contra o abstracionismo
 
 
Um debate oportuno sobre artes plásticas
 
 
Jeremias e os falsos profetas
 
 
Erich Fromm e a Liberdade