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Na vida,
em geral rotineira, dos casais da classe média urbana brasileira,
chega o momento em que o marido olha a mulher e anuncia:
- Está na hora de oferecermos um jantar aos nosso amigos.
Ela, pressurosamente concorda, e há várias razões
para que concorde. A casa ou o apartamento em que moram tem um living
amplo, projetado exatamente com essa finalidade - jantares - e que
deve ser usado, sob pena de desperdício de vários
e dispendiosos metros quadrados de área construída.
Além disto, eles precisam retribuir os inúmeros jantares
para os quais foram convidados. Há uma terceira razão,
e sobre esta, eles mantêm um silêncio tácito:
é que a crise está violenta e o marido - profissional
liberal, empresário, ou de outra ocupação -
precisa com urgência fazer certos contatos dos quais podem
depender, inclusive, os recursos financeiros para futuros jantares.
Finalmente - mas isto tem tão pouca importância, não
é mesmo? - eles esperam passar algumas horas divertidas em
companhia de gente agradável. É uma possibilidade
tão remota que eles se resignam a renunciar a ela.
Não podem, contudo, renunciar aos preparativos. Jantar de
classe média é uma operação que se compara,
em termos logísticos, a uma pequena viagem espacial ou a
uma expedição militar de médias proporções.
A primeira coisa a fazer é a lista dos convidados - uma tarefa
que exige sutileza, habilidade e um raro senso de equilíbrio.
Os amigos do casal de classe média em geral se dividem em
três categorias: empresários, profissionais liberais
e intelectuais. É preciso misturá-los em proporção
adequada, sob o risco de se cometer erros irreparáveis. Empresários,
naturalmente, não podem faltar, mas que empresários?
Não os em má situação financeira, nem
os que contestam demasiadamente o governo; melhor os prósperos,
gênero sorriso silencioso. Os profissionais liberais são
absolutamente indispensáveis, principalmente se o marido
também é profissional liberal - um médico,
por exemplo, que precisa estar em boas relações com
os colegas que lhe mandam pacientes.
O problema, realmente, são os intelectuais - e os artistas.
Podem dar à festa um toque de cultura, de bom gosto, e até
de exotismo. Infelizmente, eles nem sempre ficam no toque, especialmente
quando bebem - e aí podem se tornar inconvenientes, perturbando
os demais convivas com exortações à insurreição
armada, ao sexo grupal e a outras que tais.
Selecionados, bem ou mal, os convidados, passa-se ao cardápio.
E aí, de novo, aparecem os problemas. Parodiando o tribuno
famoso: nem sofisticado que pareça ostentação
(ou, pior ainda, deboche), nem tão simples que levante a
suspeita de indigência. Caviar? Talvez, mas na quantidade
adequada. E se a bebida a ser servida for água, simplesmente
água, deve ser água da melhor procedência e
da melhor safra, uma água que faça os convidados suspirar,
após degustá-la: Que água! Fazia tempo que
eu não provava uma água como essa!
Outra questão: com música, ou sem? Música de
fundo talvez seja uma boa idéia, mas uma orquestra sinfônica
executando "O Coro dos Ferreiros", de Verdi, talvez resulte
um pouco exagerado. Uma boa solução é usar
equipamento de som do dono da casa. O risco aí é aparecer
o esnobe comentando que aquele tipo de toca-discos já era,
que o receiver está completamente superado e assim por diante.
Se a dona da casa toca violino, sempre se pode tentar o "Rêve
d'Amour" nº 5, ou o nº 6, mas só em último
caso o perigoso nº 7, uma peça capaz de provocar sono
irresistível, ou, ao contrário, furiosa exaltação.
Também se deve prestar especial atenção a quem
vai servir. Os empregados precisam ser obedientes, mas não
obtusos. Sabe-se de uma senhora que recomendou ao garçom
trazer o prato principal - leitão assado - com uma maça
na boca e ramos de salsa nas orelhas; o homem cumpriu à risca
a prescrição e na hora entrou na sala de jantar com
a maçã na própria boca e salsa atrás
das orelhas; quanto ao leitão, tinha esquecido na cozinha.
Se todos estes problemas forem superados, o jantar pode até
correr bem. Mesmo que alguns talheres e cinzeiros desapareçam,
não vale a pena revistar os convidados; melhor é aguardar
o jantar que os suspeitos provavelmente oferecerão e expropriá-los
em silêncio. De qualquer maneira, a festa chegará ao
fim e aí marido e mulher, exaustos como se tivessem passado
o dia carregando pedras, poderão enfim ir à cozinha
para comer um sanduíche e saborear, em paz, uma cervejinha.
Provavelmente será esse o melhor momento da noite.
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