São Paulo, domingo, 25 de outubro de 1981

JANTAR PARA OS AMIGOS

Moacyr Scliar

Na vida, em geral rotineira, dos casais da classe média urbana brasileira, chega o momento em que o marido olha a mulher e anuncia:

- Está na hora de oferecermos um jantar aos nosso amigos.

Ela, pressurosamente concorda, e há várias razões para que concorde. A casa ou o apartamento em que moram tem um living amplo, projetado exatamente com essa finalidade - jantares - e que deve ser usado, sob pena de desperdício de vários e dispendiosos metros quadrados de área construída. Além disto, eles precisam retribuir os inúmeros jantares para os quais foram convidados. Há uma terceira razão, e sobre esta, eles mantêm um silêncio tácito: é que a crise está violenta e o marido - profissional liberal, empresário, ou de outra ocupação - precisa com urgência fazer certos contatos dos quais podem depender, inclusive, os recursos financeiros para futuros jantares. Finalmente - mas isto tem tão pouca importância, não é mesmo? - eles esperam passar algumas horas divertidas em companhia de gente agradável. É uma possibilidade tão remota que eles se resignam a renunciar a ela.

Não podem, contudo, renunciar aos preparativos. Jantar de classe média é uma operação que se compara, em termos logísticos, a uma pequena viagem espacial ou a uma expedição militar de médias proporções. A primeira coisa a fazer é a lista dos convidados - uma tarefa que exige sutileza, habilidade e um raro senso de equilíbrio. Os amigos do casal de classe média em geral se dividem em três categorias: empresários, profissionais liberais e intelectuais. É preciso misturá-los em proporção adequada, sob o risco de se cometer erros irreparáveis. Empresários, naturalmente, não podem faltar, mas que empresários? Não os em má situação financeira, nem os que contestam demasiadamente o governo; melhor os prósperos, gênero sorriso silencioso. Os profissionais liberais são absolutamente indispensáveis, principalmente se o marido também é profissional liberal - um médico, por exemplo, que precisa estar em boas relações com os colegas que lhe mandam pacientes.

O problema, realmente, são os intelectuais - e os artistas. Podem dar à festa um toque de cultura, de bom gosto, e até de exotismo. Infelizmente, eles nem sempre ficam no toque, especialmente quando bebem - e aí podem se tornar inconvenientes, perturbando os demais convivas com exortações à insurreição armada, ao sexo grupal e a outras que tais.

Selecionados, bem ou mal, os convidados, passa-se ao cardápio. E aí, de novo, aparecem os problemas. Parodiando o tribuno famoso: nem sofisticado que pareça ostentação (ou, pior ainda, deboche), nem tão simples que levante a suspeita de indigência. Caviar? Talvez, mas na quantidade adequada. E se a bebida a ser servida for água, simplesmente água, deve ser água da melhor procedência e da melhor safra, uma água que faça os convidados suspirar, após degustá-la: Que água! Fazia tempo que eu não provava uma água como essa!

Outra questão: com música, ou sem? Música de fundo talvez seja uma boa idéia, mas uma orquestra sinfônica executando "O Coro dos Ferreiros", de Verdi, talvez resulte um pouco exagerado. Uma boa solução é usar equipamento de som do dono da casa. O risco aí é aparecer o esnobe comentando que aquele tipo de toca-discos já era, que o receiver está completamente superado e assim por diante. Se a dona da casa toca violino, sempre se pode tentar o "Rêve d'Amour" nº 5, ou o nº 6, mas só em último caso o perigoso nº 7, uma peça capaz de provocar sono irresistível, ou, ao contrário, furiosa exaltação.

Também se deve prestar especial atenção a quem vai servir. Os empregados precisam ser obedientes, mas não obtusos. Sabe-se de uma senhora que recomendou ao garçom trazer o prato principal - leitão assado - com uma maça na boca e ramos de salsa nas orelhas; o homem cumpriu à risca a prescrição e na hora entrou na sala de jantar com a maçã na própria boca e salsa atrás das orelhas; quanto ao leitão, tinha esquecido na cozinha.

Se todos estes problemas forem superados, o jantar pode até correr bem. Mesmo que alguns talheres e cinzeiros desapareçam, não vale a pena revistar os convidados; melhor é aguardar o jantar que os suspeitos provavelmente oferecerão e expropriá-los em silêncio. De qualquer maneira, a festa chegará ao fim e aí marido e mulher, exaustos como se tivessem passado o dia carregando pedras, poderão enfim ir à cozinha para comer um sanduíche e saborear, em paz, uma cervejinha. Provavelmente será esse o melhor momento da noite.
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