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São
Paulo, sexta-feira, 11 de março de 1988
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ADORNO, BEETHOVEN E A TEORIA MUSICAL
Adorno formulou a mais abrangente, a mais
estimulante e a mais frustrante reflexão sobre a música
neste século
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Arthur Nestrovski |
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O primeiro volume das "Obras Completas" de Theodor Adorno
(1903-1969) foi publicado em 1970. Desde então, já
foram publicados mais dezoito volumes e outros quatro estão
prometidos para breve (1). Destes vinte
e três livros, nada menos que onze - praticamente a metade
- são dedicados exclusivamente à música. É
uma revelação surpreendente: Theodor Adorno, um dos
pensadores mais influentes da modernidade, autor da "Dialética
Negativa", do "Jargão da Autenticidade", das
"Minima Moralia" e da monumental "Teoria da Estética",
entre outras obras seminais, se revela também como um musicólogo
prolífico, autor de monografias sobre Mahler, Berg e Wagner,
criador de uma primeira "Sociologia da Música",
palestrante e crítico da música nova e da antiga,
compositor e pianista, e teórico da "Filosofia da Nova
Música". É uma revelação surpreendente
porque a despeito desta vasta produção e a despeito
do impacto inicial de um ensaio como o "Fetichismo na Música",
ou de uma coletânea como "Dissionâncias",
a obra musical de Adorno permanece à margem dos currículos
correntes de teoria musical. A despeito de referências obrigatórias
aqui e ali, ou de algum comentário perdido num rodapé
de página, a teoria musical de Adorno é tida, de maneira
geral, como uma contribuição secundária - secundária
no contexto de sua obra como um todo e secundária aos interesses
primários da educação musical de hoje. A teoria
musical de Adorno permanece alojada no quarto de hóspedes
do conservatório, onde é tratada com aquela impaciência
discreta de quem não vê a hora do visitante ir embora.
Do ponto de vista da filosofia, o pensamento musical de Adorno é
fascinante, mas incompreensível, já que é preciso
bem mais do que um conhecimento superficial de história da
música e noções básicas de harmonia
para compreender do que se trata. Do ponto de vista da teoria musical,
a obra de Adorno representa, de uma só vez, a mais abrangente,
estimulante e mais frustrante reflexão sobre a música
neste século. Ninguém antes dele fora capaz de dissecar
com a mesma agudez os mecanismos modernos de produção,
reprodução e consumo da música. Ninguém
depois dele já demonstrou semelhante vocação
analítica, resultado de uma mistura explosiva entre a composição
e a dialética. Mas a teoria musical de Adorno, ou melhor,
suas várias versões de uma teoria musical convergem
todas numa promessa que ele jamais cumpriu: a elaboração
de uma técnica analítica capaz de fazer jus a seu
pensamento estético e político. Isto é, uma
técnica de análise que nos permita expor a economia
interna da partitura em suas relações para com a economia
externa do capital. Oscilando entre a filosofia e a música,
as análises musicais de Adorno desembocam com frequência
num beco sem saída, incapazes de articular mediações
entre a dialética social e a da partitura. Este é
um problema do qual o próprio Adorno tinha viva consciência,
mas para o qual jamais encontrou soluções. É
possível se perceber a raiz e a ruína de seu inacabado
livro sobre Beethoven, e dos fragmentos e notas para três
outros projetos: uma "Teoria da Reprodução Musical",
uma crítica das "Correntes Musicais", e uma "Teoria
do Rádio". Acossados entre a síntese e a fragmentação,
um a um cada volume foi se deixando vencer pelo silêncio.
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Musicólogo
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Dentre os fragmentos de seu livro
sobre Beethoven, conta-se uma descrição relativamente
longa do projeto como um todo. Em versão traduzida para o
francês, esta descrição foi publicada por Mac
Jimenez e Marc de Launay na "Revue d'Esthétique",
n. 8, 1985 (volume inteirante dedicado a Adorno). Três anos
antes, a revista inglesa "Music Analysis" (volume 1, n.
2) já publicara uma conferência proferida por Adorno
em 1969, gravada, transcrita e traduzida por Max Paddison. O contraponto
entre os dois textos, fragmentados e improvisados como são,
pode revelar muito das preocupações do Adorno musicólogo,
face às objeções de sua cara-metade de filósofo.
Uma leitura polifônica desses textos pode demonstrar a extensão
do problema, bem como sugerir possibilidades de resposta para o
impasse da análise musical.
Antes do impasse, contudo, uma dúvida clássica, e
a solução da crise de consciência do analista.
"Análise" é uma palavra fria. Vem do grego
(ana-lysis) e significa "quebra" ou "dissolução".
A análise é parente da "anatomia" que "corta
em pedaços". O analista musical, como o anatomista,
também se propõe a cortar em pedaços para melhor
compreender o todo. Marcado pelo estigma da faca e do frio, não
há analista que não se veja perseguido, mais cedo
ou mais tarde, pelo demônio da dúvida, sussurrando
verdades e inverdades sobre a futilidade da análise. "A
música", diz o diabo, diz o público, e dizem
o jornal e os músicos, "a música não se
analisa. Não é preciso entender nada de música
para se gostar de música. A música fala diretamente
ao coração."
Esta forma comum de resistência à teoria reproduz uma
das modalidades mais antigas de conservadorismo. Analfabetos de
dó a dó anunciam, rancorosos, que os bárbaros
chegaram para destruir e salgar o jardim da audição
original. De certa maneira, têm razão: a ilusão
de uma escuta inocente, de uma escuta imediata e divina, desaparece
tão logo se perceba as leis de construção do
objeto musical, que vem de oficina humana (demasiado humana). A
análise nos conduz de volta à arte, em sua primeira
acepção: a técnica, a habilidade de combinar,
construir. Ars (arte), como ordo (ordem), ratio (razão) e
res (objeto; realidade), vem da raiz indo-européia "ar-",
que significa conectar, ou combinar, e uma vez face à face
com esta arte - isto é, uma vez que se analisa os menores
elementos de uma obra e o princípio de suas conexões
- uma vez dissolvida a totalidade do objeto, já se está
praticamente à beira de uma desmistificação
da obra musical. É neste sentido que se deve compreender
o comentário de Adorno sobre a relação entre
a obra e sua análise: "A análise é uma
dessas formas, como a tradução ou crítica,
que permite à própria obra se desenvolver. A obra
musical necessita da análise, para que possa revelar seu
conteúdo de verdade" (MA, 176) (2).
A obra de arte, para Adorno, é uma forma particular do conhecimento.
Como tal, obedece às leis de formação de qualquer
outro aparato ideológico. A análise musical, segundo
Adorno, deve partir do objeto (compreendido como forma de produção)
para chegar ao objeto (compreendido como o resultado de um "campo
de forças" que se estende da poética à
política). A análise perseguida por Adorno é
uma filosofia do sujeito, mas calcada na exposição
de uma falsa consciência do objeto. A análise, para
Adorno, só faz sentido quando integrada a um projeto mais
ambicioso e mais amplo: a crítica da ideologia espontânea
da vida cotidiana.
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Tapeçaria
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A escolha de Beethoven como tema de
um ensaio analítico está diretamente ligada a este
projeto. Por um lado, Beethoven representa hoje a própria
imagem do compositor, em sua versão mais sentimental e trivializada.
Não se trata apenas da adoração e das fábulas
que envolvem a memória do Grande Surdo. Suas obras mesmo
se estabeleceram como símbolo de tudo que a música
dita (e maldita) clássica representa: profundidade, intangibilidade,
humanidade. Mar de lágrimas. Afogar-se acima das estrelas.
Beethoven é a figura chave que se deve estudar para a dissecção
das estratégias individuais e institucionais da recepção
musical.
Por outro lado - o de dentro, o da produção musical
- a música de Beethoven oferece ao analista uma tapeçaria
de temas, motivos e interrelações harmônicas
que bem representa o que de mais complexo já foi produzido
com sons, silêncio e pentagrama. E a música de Beethoven
representa ainda, para Adorno, a reunião de duas outras qualidades
essenciais: o profissionalismo e a inteligibilidade. A consciência
profissional de Beethoven transparece a cada colcheia, cada compasso,
cada frase. Figuras de linguagem se multiplicam a olhos vistos na
partitura totalmente livre de ingenuidade. A imagem do surdo no
bosque, psicografado a "Sinfonia Pastoral", não
se sustenta por mais de duas linhas de análise. Mas este
profissionalismo de Beethoven não é outra coisa senão
o resultado da proximidade entre a análise e a composição:
"uma espécie de convergência entre o processo
analítico e o processo composicional" (MA, 176). A análise
da música de Beethoven servirá, portanto, para reafirmar
a primeira lei da psicodinâmica da composição:
as distâncias entre o diletante e o compositor é diretamente
proporcional à razão de suas capacidades analíticas.
Vale dizer: a qualidade da composição cresce e decresce
de acordo com a consciência crítica do compositor.
Neste ponto é preciso fazer uma ressalva. Theodor Adorno
foi aluno de Alban Berg, que foi aluno de Arnold Schoenberg. Este
fato, por si só, já explica muitas coisas. Explica,
por exemplo, de onde vem o sólido conhecimento musical de
Adorno. Dois volumes de composições do jovem Adorno,
publicados em 1970, incluem um quarteto de cordas, três peças
para orquestra e vários ciclos de canções para
voz e piano. Não são obras-primas, mas não
são piores que as composições juvenis de outros
talentosos alunos de Berg ou de Schoenberg. Como Ernst Krenek ou
Roberto Gerhard, também Adorno aprendeu com Berg o significado
do artesanato na composição - aprendeu análise
- e aprendeu a fundamental lição de estética
do mestre Schoenberg: "o verdadeiro propósito da construção
musical não é beleza, mas sim a inteligibilidade".
É uma posição furiosamente "germânica",
que tem sua justificativa teórica na "Crítica
do Juízo" de Kant. É uma posição
difícil, discutível, parcial e comprometedora. Uma
vez livres da beleza, Adorno e Schoenberg se vêem conduzidos
à idéia da música como teoria, à composição
como estabelecimento de um "campo de forças", à
obra musical como "problema" (MA, 181). Uma vez livres
da beleza, livres de um ornamento de um belo que são suas
marcas de batismo, Adorno e Schoenberg se vêem comprometidos
com uma tradição musical específica, que tem
sua origem justamente em Beethoven. Desenvolvem daí uma lucidez
e uma cegueira complementares e opostas. Cada texto de Adorno carrega
consigo um outro texto, seu outro texto, ausente e presente nas
entrelinhas. É o elogio do belo, que nem Adorno nem Schoenberg
jamais puderam contemplar. A beleza, para Schoenberg, é sinônimo
de complacência. A beleza, para Adorno, é mentira,
é manipulação. A música de Beethoven,
cuja superfície nunca é "bela", nunca é
"boa de se ouvir", oferece a Schoenberg uma lição
monumental sobre o significado da composição como
construção e sacrifício, e oferece a Adorno
nada mais nada menos do que uma filosofia.
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Combinatória
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Percebe-se agora a importância
da análise para a filosofia musical de Adorno. Se a música,
a música de Beethoven, mas não só a dele (cf.
as monografias sobre Mahler, Berg e Wagner, e os ensaios sobre Bach,
Schoenberg e Webern, entre outros) constitui propriamente uma reflexão
filosófica, então o que é preciso é
se ganhar acesso às suas formas de leitura. E o que é
a leitura senão uma "arte", Ars, uma técnica
de combinações? Leitura, como inteligência,
lógica, léxico ou lei, vem de uma raiz indo-européia
"leg-" que significa selecionar ou combinar. A escuta
analítica, para Adorno, será aquela escuta capaz de
identificar os elementos selecionados pelo compositor e organizados
pelo engenho do artista - será aquela escuta que reproduz
ela mesma a constituição da obra, se afirmando como
uma "arte da leitura". A escuta analítica será
aquela escuta que recupera a arte da arte, numa época em
que a arte já desapareceu, consumida pela voracidade de um
público sentimental. A escuta analítica será
aquela que persegue o objeto, o encara sem medo, e se arrisca à
difícil fortuna do pensamento.
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Trabalho
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Da obra musical tida como objeto,
"ordem e conexão das coisas", a análise
desvela a obra como trabalho, produção de uma "ordem
e conexão das idéias das coisas". A análise
servirá, por tanto, para desfazer a falsa separação
entre o conhecimento e o objeto do conhecimento. Através
da análise, a música nos deixa ouvir o conhecimento
como a própria produção do objeto do conhecimento.
Em sua palestra de 1969, Adorno passa em revista algumas das formas
correntes de análise musical, dos "guias temáticos"
a análise motívica "a la" Riemann e à
análise schenkeriana. Dessa resenha não sobra pedra
sobre pedra, mas muito se aprende sobre o que está à
espera do analista. Os "guias de viagem" temáticos,
à maneira das contracapas de disco ou dos programas de concerto
são dispensados com uma só palavra: reificação.
Sua única virtude foi ter conduzido analistas como Riemann
ou Réti a um estudo dos menores elementos isolados da composição.
Mas as análises de veia motívica sofre, por sua parte,
de outro problema agudo. Ocupados com a montagem de seus quebra-cabeças,
os analistas desprezam o tempo e o movimento em favor de um esquema
de papel. É um problema antigo, um drama de duas cabeças:
"todo o vir-a-ser da música é, fato, ilusório,
posto que a música, enquanto texto, é verdadeiramente
fixa e não 'vem-a-ser' coisa alguma..." (MA 179). O
analista que se concentra exclusivamente na relação
formal entre motivos musicais se professa científico praticante,
pousando a mão esquerda sobre a partitura. Mas ignorar a
partitura em favor dos sons não é menos absurdo que
abdicar dos sons em favor do texto escrito. "A música
só ganha coerência quando é percebida como um
vir-a-ser. Eis aí o paradoxo da análise: por um lado,
a análise é limitada pelo que é fixo e está
ao alcance da mão; por outro, deve traduzir o que aprendeu
em termos de movimento, um movimento coagulado pelo texto musical"
(MA, 179).
Heinrich Schenker se sai um pouco melhor neste confronto. A análise
schenkeriana se propõe a demonstrar o princípio de
unidade da música tonal. De acordo com Schenker, ao nível
mais profundo de toda obra tonal se distingue uma linha básica,
que desce do terceiro grau à tônica da escala. Esta
linha, combinada com a linha fundamental do baixo (1-5-1) constitui
o "Ursatz": a base contapuntística de toda linguagem
tonal. Partindo do "Ursatz", é possível
conceber a composição - que, para Schenker, é
sempre sinônimo de composição tonal - como um
processo gradual de ornamentação desta cadência.
A análise percorreria o caminho inverso, destacando os ornamentos
da superfície, penetrando os níveis médios,
mais sóbrios, e descobrindo finalmente o "Ursatz",
a estrutura arquetípica da obra, uma espécie de Id
da tonalidade.
Desta idéia derivam dois corolários. Se o "Ursatz"
é realmente, como quer Schenker, a base de toda música
tonal, então será necessário pensar cada nota
de uma obra em relação a esta cadência-mãe.
E o que isto significa é que a idéia de dissonância
deve se projetar do momento individual ao nível da obra como
um todo. É esta a grande descoberta de Schenker. Uma vez
apreendida sua noção de dissonância, a análise
schenkeriana nos leva inevitavelmente a uma escuta estrutural.
Para Adorno, como para Schenker, a composição é
um processo sistemático e passível de representação.
Não é por acaso que tanto Adorno quanto Schenker consideram
Beethoven - o mais sistemático de todos os compositores -
como o maior de todos os compositores. Todavia, ao contrário
de Schenker, que postula o "Ursatz" e transforma a análise
num método redutor, Adorno vê na redução
um dos maiores perigos para o analista. "Ao reduzir a música
a suas estruturas mais fundamentais, Schenker interpreta como casual
e fortuito precisamente o que, em certo sentido, é a própria
essência da música" (MA, 174). Isto é:
Schenker parte da superfície, chega ao fundo e fica por lá.
Descobre o que é comum a toda obra tonal; ignora o que faz
de cada obra uma outra obra, de cada compositor um outro compositor.
De um ponto de vista schenkeriano, as diferenças entre, digamos,
Haydn e Mozart, são menos importantes do que sua semelhança
primal no "Ursatz". Mas as diferenças entre Haydn
e Mozart são justamente o que fazem de Haydn Haydn e de Mozart
Mozart. O método analítico de Schenker nos permite
avaliar o que Schenker mesmo desprezou. É preciso partir
da superfície, descer até o fundo - e retornar. Do
explícito ao implícito e de volta ao explícito:
uma teoria materialista da tonalidade deve percorrer cada caminho
e cada idéia em pelo menos duas direções simultaneamente.
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Discurso
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Os fragmentos de Adorno sugerem o
teor de até, em certos casos, a substância de suas
análises da música de Beethoven. São três
as questões analíticas por ele abordadas: identificação
e crítica, a um nível técnico, dos elementos
e normas de cada obra estudada; formulação do "problema"
da música de Beethoven; e criação de um discurso
analítico apropriado. As três questões são
interdependentes, de modo que não se pode definir uma sequência
de operações conduzindo de uma a outra. Como falar
do problema da música de Beethoven se ainda não foi
analisada? Mas como é possível analisá-la sem
formular previamente um princípio de análise? Uma
vez que se percebe o conhecimento como forma de produção
(e não de descoberta), como é possível confiar
numa análise técnica, "objetiva" e "neutra"?
"Objetiva" é a lente do fotógrafo, que só
fotografa o que quer ver. "Neutra" é a rede bancária
da Suiça, que administra (igualmente) riquezas de vida ou
de morte (desigualmente). E como fazer e falar da análise
sem palavras - palavras que só podem vir da própria
análise? É o que se chama de "círculo
hermenêutico". A obra de Adorno como um todo oferece
mais de uma resposta a este problema. Seus fragmentos de uma filosofia
da análise sugerem um modo musical de se chegar à
quadratura do círculo.
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Fragmentos
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Se, para Adorno, é possível
falar de análise, fazer análise e teorizar a análise,
é justamente porque a fala, a fábrica e a teoria coincidem
na análise. Não há um ponto de partida, como
não há um ponto de chegada - se parte e se chega de
todo e qualquer ponto, e ao mesmo tempo. Não há um
ponto de partida porque não há uma tabula rasa da
pesquisa. Como não há objeto sem o objeto do conhecimento.
A ilusão de causa e efeito que move o círculo hermenêutico
se confunde com a causa e o efeito deste movimento que nos precipita
da esquerda para a direita, linha após linha e de cima abaixo
até o fim. Da esquerda para a direita, o pensamento que foge
da simultaneidade, o pensamento que rejeita a contradição
é a imagem intelectual do que Adorno chamava, com desprezo,
de "mundo administrado", um mundo que esse mesmo pensamento
administrou. A dialética musical de Adorno, pelo contrário,
é uma aplicação do pensamento formalizado na
"Teoria da Estética". É um pensamento que
faz da ruína, do fragmento, seu princípio de articulação.
O fragmento, como os casos de obra do analista, só pode ser
interpretado com a visão do todo presente. Mas este é
um todo que não equivale a uma simples soma das partes, posto
que cada parte contém o todo além de si. Face à
ilusão de totalidade, face à totalidade que só
se conquista à força de redução, o pensamento
de Adorno se multiplica em cacos de idéia, pedaços
de prismas refletindo e difratando um obscuro objeto musical.
Auto-reflexiva quase ao nível do exagero, a música
de Beethoven bem se presta ao projeto de análise imaginado
por Adorno. A música de Beethoven é a música
do artifício. Sua marca social é a espontaneidade,
mas essa é uma espontaneidade composta, construída.
Em termos talvez mais próximos de Adorno, é uma "espontaneidade
negativa". O artifício em Beethoven é sinal de
uma arte consciente de si, e "uma arte consciente de si é
uma arte que se analisou"(MA, 176). A análise de Adorno
visa à recuperação desta análise que
se confunde com a composição. E esta análise
composta, esta arte da combinação, reflete e difrata
o "problema" que lhe deu origem e que se origina novamente
com ela: a tonalidade. "Compreender Beethoven é compreender
a tonalidade"(B). A tonalidade é o "princípio
regulador das relações", é o problema
capital da música de Beethoven, e é o problema do
capital: "a tonalidade situa-se nos próprios fundamentos
da sociedade burguesa" (B). A análise de Adorno busca
justamente o entendimento do "problema" da composição
como um problema que é tanto imanente à música
quanto diretamente ligado às formas de produção
e do trabalho. A análise de Adorno busca refletir a tonalidade
como forma de composição e como forma de pensamento,
e busca refletir a tonalidade como pensamento e composição
da forma, onde "a forma representa a relação
entre a obra de arte e a sociedade ("Teoria da Estética",
12. 18). A forma, a constituição de cada momento individual
da obra, é o próprio domínio do trabalho do
artista, o "entusiasmo", "enthusiasmos", inspiração
como produção, "en-theos", deus de dentro,
o artífice, a cultura: nas palavras de Beethoven, "o
fogo que consome o fogo, consome a natureza"(B). Uma vez compreendida
a forma, isto é, a relação entre o trabalho
e a obra - uma relação que pertence ela mesma à
estrutura social do trabalho - a análise está próxima
da revelação de um "excesso" da arte, um
"conteúdo de verdade" que só mesmo a análise
é capaz de reconstituir (MA 177). Para tanto, contudo, seria
preciso encontrar formas de mediação. Os desconfortáveis
saltos, que se pode ler em alguns dos fragmentos, entre a filosofia
e a música, ou pior, entre epifanias "poéticas"
e detalhes da composição, são a marca mais
clara da ausência de mediações. Mas para construir
uma análise mediata, para construir uma "teoria material
da música" (MA 185), seria preciso mais tempo e mais
tempo de escrita, seria preciso chegar ao livro, seriam precisos
mais anos, que a morte levou.
É assim que a filosofia analítica de Adorno aparece
e desaparece aos nossos olhos. Entre fragmentos pessoais de trabalho
e uma palestra improvisada, mal se pode distinguir a anatomia precária
desta análise. Mas aqui e ali brilha a "leve luz, como
um pequeno lume", ausente e presente como uma promessa e uma
dívida - e um pouco como este ensaio. Uma prática
analítica a partir da visão de Adorno corresponderia
a uma politização da análise. Vinte anos mais
tarde - com os erros de Adorno e de outros às nossas costas
- é possível, agora, retornar aos fragmentos, e fazer
o balanço das contas que vamos saldar.
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Notas
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(1)
"Gesammelte schrifen", Suhrkamp, 1970.
(2) As referências no texto estão
abreviadas: MA corresponde a "Musical Analysis", volume
1, n. 2, 1982; B corresponde à tradução da
tradução francesa de fragmentos de um texto original
de Adorno, descrevendo seu projetado livro sobre Beethoven. A tradução
francesa foi publicada na "Revue d'Esthétique",
n. 8, 1985.
(3) "Kompositionen", 1980.
(4) Capítulo 6 de "Fundamentals
of Musical Composition", Faber & Faber, 1967.
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Fragmentos
sobre Beethoven |
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Theodor Adorno
(...) Como dar vida à forma - problema agudo ao se tratar
das últimas obras de Beethoven - e... como dar forma ao que
é vivo, reduzi-lo a seu conceito.
(...) O entendimento da obra de
Beethoven depende da maneira como se interpreta a dialética
do elemento mítico... a reunião do que é
humano com o que vem do mundo dos mortos, dos deuses e demônios...
Num universo de predestinação e de domínio,
só é humano no homem o demônio.
(...) Encerrar o livro invocando
a doutrina mística judaica dos "anjos da relva",
destinados a desaparecer num rio de fogo. O caráter da
música - nascida como forma de louvação divina,
mesmo e justamente quando se opõe ao mundo - é semelhante
ao caráter desses anjos efêmeros. (E é a efemeridade
que a transforma em louvação - isto é, numa
destruição permanente da natureza). Beethoven faz
desta imagem a própria consciência que a música
tem de si mesma. A verdade de Beethoven reside na aniquilação
de todo detalhe. Com Beethoven, a composição se
transforma de moda a revelar o caráter efêmero da
música. Segundo suas próprias palavras, o fogo que
deve acender a música no coração do homem
- o entusiasmo - é "o fogo que consome o fogo, consome
a natureza".
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