São Paulo, domingo, 11 de maio de 1980

POR QUE SÃO BERNARDO?

Muito se falou sobre São Bernardo nos últimos quarenta dias. Quarenta dias de tensões, de expectativa, de inúteis apelos ao entendimento. Para muitos, a abertura entrou em quarentena em São Bernardo e todos os propósitos democratizantes emanados de Brasília foram testados, provando que das palavras aos atos existe ainda um longo caminho a percorrer. Por isso é importante entender São Bernardo, para além das circunstâncias de uma greve, cujas lições precisam ser aprendidas principalmente por aqueles que chamam para si todo o poder e toda a decisão sobre a sociedade brasileira. Desta mesa-redonda coordenada pelo prof. José Augusto Guilhon Albuquerque participam: Mino Carta, jornalista, diretor de redação da revista "Isto É"; o deputado federal Jorge Maluly Neto, ex-secretário do Trabalho, no governo Paulo Egidio Martins; Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, presidente do Cebrap; o deputado estadual Almir Pazzianotto, advogado do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema; Celso Frederico, professor de sociologia da Universidade Federal de São Carlos; Eduardo Matarazzo Suplicy, deputado estadual e professor de economia na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo; Leôncio Martins Rodrigues, professor do Departamento de Ciências Sociais da USP; e os ex-metalúrgicos, professores e sociólogos Diego Antonio A. B. Fernandez e e Moacyr Pinto da Silva, respectivamente presidente e secretário da Associação dos Sociólogos do ABC, com sede em São Bernardo.
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J. A. GUILHON - O objetivo desta mesa-redonda é tentar responder a uma pergunta talvez impossível: Por que São Bernardo? Aquela cidade, embora representante de fato um tipo de industrialização diferente da primeira industrialização de São Paulo, ela não difere tanto de outras zonas de alta concentração industrial. Entretanto, nós estamos percebendo que alguma coisa de profundamente novo está se passando em São Bernardo, do ponto-de-vista da própria organização da cidade, da relação das autoridades com o povo e do ponto-de-vista, sobretudo, do movimento operário. Por que São Bernardo: Claro, outras perguntas mais específicas poderão surgir no decorrer do debate.

JORGE MALULY NETO - Eu entendo que temos que sair de São Bernardo para conhecer São Bernardo. Eu vou relatar uma experiência pessoal, que explica São Bernardo até certo ponto. Assim que me formei, fui clinicar numa cidade do Interior do São Paulo na Alta Noroeste, chamada Mirandópolis, ao tempo em que a Previdência Social não alcançava o homem do campo, ainda que na precariedade de hoje. Na década de 60, mais precisamente, aconteceram dois fenômenos que começam a explicar São Bernardo. Fatalmente temos que incluir a adentrada no País da indústria automobilística que, concomitantemente, encontrou os campos na seguinte situação - isto vivido por mim, lá no Interior de São Paulo.

Nós vimos, naquele início da década de 60, primeiro, a campanha de erradicação dos cafezais. Pagava-se para se cortar o pé de café. Não me esqueço de uma só fazenda que entre um sábado e um domingo, pôs na rua - este é o termo - duzentas famílias de uma só vez. Naquele tempo a própria jurisprudência do meeiro do café não dava a ele os direitos da lei trabalhista e, historicamente, foi um promotor daquela comarca de Mirandópolis que conseguiu a primeira condenação por ruptura daquele contrato de trabalho.

Com a erradicação dos cafezais, que se iniciou na década de 60, e com um processo de descapitalização dos campos e a entrada do boi no Oeste de São Paulo principalmente, iniciou-se o êxodo rural. Esse êxodo expulsou milhares de famílias, primeiro para as pequenas, depois para as médias e grandes cidades, e que foi levando esta população rural, criando e aumentando cada vez mais a migração que deu origem às grandes concentrações urbanas. Famílias inteiras, saindo da zona rural, vieram para as cidades maiores em busca de um mercado de trabalho que se abria e de melhor qualidade de vida. Então essa gente passou a morar em casas de alvenaria, a ter hábitos um pouco melhores até que o fenômeno da superpopulação urbana criasse as condições de afavelamento que hoje existe.

Portanto, o fenômeno de São Bernardo se inicia aí, na década de 60, com esses dois fenômenos, e, depois, graças ao processo de industrialização, também a organização sindical se inicia. E se inicia de uma forma diferenciada, melhor analisada, melhor estruturada, melhor dirigida e que passa a se preocupar com as grandes testes e os grandes problemas do operariado brasileiro. E foi isto que muitas vezes me levou - como secretário do Trabalho - ao diálogo com estas lideranças no sentido de nos conscientizarmos a três níveis, porque o fenômeno São Bernardo não se pode compreender hoje apenas e tão somente como de responsabilidade do sindicalismo brasileiro. Nele deve estar incluído necessariamente o empresariado e, principalmente, o governo que hoje vive dentro desse problema afundado até à cabeça. Creio que posso chamar aqui o testemunho do Suplicy que me honrou, certa vez, numa reunião que fizemos em Palácio tentando levar num diálogo aberto e franco entre governo e lideranças operárias.

Muita gente desconhece a verdade sobre São Bernardo do Campo. O empresariado estava despreparado para esse tipo de atuação da classe operária, omisso, letárgico e ausente muitas vezes, com raras e honrosas exceções. O governo também não entendeu e não aceitou. Foi pena. São Bernardo servirá de análise, de estudo profundo, hoje e sempre. São Bernardo não vai parar aqui. Enganam-se aqueles que pensam que resolvendo o problema de uma greve hoje em São Bernardo se resolveu o todo. Daí, desde logo me permitam um elogio ao "Folhetim" por começar, talvez, aqui um balanço daquilo que está acontecendo.

MINO CARTA - Eu apreciei muito essa análise do deputado Maluly, mas o que me interessa é o que é São Bernardo hoje, mais do que as origens. "Por que São Bernardo? É uma pergunta fácil de responder, até mesmo com exemplos históricos de outros países que enfrentaram situações semelhantes a que estamos vivendo. Por exemplo, citando a Itália, por que Turim? Porque o movimento operário italiano começou a se fortalecer em Turim. Aí já estou falando do fim do século passado, que nós estamos vivendo com um atraso enorme. No caso específico estaremos falando de quase 100 anos de diferença, sendo que a meu ver o País vive até situações anteriores à revolução francesa em certos casos, em certos níveis, em certas regiões. Mas, enfim, São Bernardo é hoje o coração da indústria brasileira e é, de certa forma, o coração da economia brasileira. Então, eu acho que automaticamente isso oferece a resposta.

MALULY - Mino, você me permite só um pequeno aparte?

MINO - Claro.

MALULY - Eu, realmente, não quis ir mais longe no porquê... O que é São Bernardo senão o poder de organização do novo sindicalismo brasileiro, que leva mensagens novas que ainda não foram entendidas? Atrás desse novo sindicalismo está uma tese: o equilíbrio entre o capital e o trabalho, a melhor distribuição de rendas, a diminuição do poder aquisitivo brasileiro, a deficiência da qualidade de vida que está dentro de todo esse contexto reivindicatório do movimento São Bernardo. Não é apenas uma reivindicação salarial, eu acho que o problema salário é uma das etapas dentre as muitas que estão embutidas no fenômeno São Bernardo. Dentro de São Bernardo está ainda o problema do direito de greve ainda não totalmente regulamentado...

MINO - Totalmente ou nada (risos).

MALULY - Ou nada, diria.

MINO CARTA - Enfim, o que eu queria dizer, é que é natural que em São Bernardo o trabalhador comece realmente a ganhar a consciência da sua força, inclusive, a partir de um raciocínio muito simplista, pelo qual parar a Volkswagen, parar uma grande indústria do porte de uma Mercedes, tem um efeito muito maior, digamos, do que parar uma fundição de arrabalde. O operário de São Bernardo começa a perceber o alcance do seu papel dentro da economia do País e, portanto, reclama o seu lugar.

Concordo que o problema não está meramente relacionado com o aumento de salário. O que está em jogo em São Bernardo, neste lugar simbólico, é um problema político, essencialmente político. O operário de São Bernardo, hoje, está reclamando por espaço. Um espaço que sistematicamente lhe foi negado. O operário de São Bernardo, como todo trabalhador brasileiro, é limitado como cidadão por uma lei fascista, a CLT, por toda uma série de leis que foram se adicionando ao arcabouço inicial criado no tempo do Estado Novo.

Hoje poderíamos não ter mais a greve de São Bernardo se tivesse havido, por parte do governo e do patronato, a disposição para uma negociação muito mais em torno das reivindicações políticas do que em torno da reivindicação salarial. Por outro lado, o que é muito evidente, a meu ver, é que o governo procurou atingir São Bernardo e ceifar lideranças autênticas, verdadeiras, que nasceram ali, exatamente porque o governo não deseja a solução dos problemas básicos. Acredito que, por parte do governo, haja até um grau bastante grande de desconhecimento da real situação de São Bernardo, que determina uma insensibilidade acentuadíssima em relação ao problema.

Mas, isso não importa. O que importa é o resultado. Eu não estou fazendo uma análise sociológica, o fato é que tudo o que está acontecendo corresponde a um plano, talvez até não muito antigo, recente - eu creio - no sentido realmente de interromper essa tentativa de evolução do trabalhador de São Bernardo.

MALULY - Aí, Mino, é que está o erro de quem assim interpreta as coisas, os problemas e a reivindicações...

MINO - O senhor concorda com esta análise?

MALULY - Eu concordo com a análise, mas não concordo com aqueles que interpretam o final da sua exposição e querem ceifar ou tolher os trabalhadores, por uma visão errônea do problema.

EDUARDO MATARAZZO SUPLICY - Eu gostaria de fazer algumas reflexões, além das que já foram colocadas pelo Jorge Maluly e pelo Mino Carta, Mais do que em qualquer outro local, em São Bernardo, a população, especialmente a nova geração de trabalhadores encontrou condições propícias para obtenção de um grau de consciência excepcional sobre a realidade social e econômica brasileira. Se nós hoje andarmos por São Bernardo e Diadema e compararmos com outros locais do Brasil, vamos verificar que dificilmente há outras cidades com mais indústrias. E ao mesmo tempo encontramos diversos centros de educação, ou centros de treinamento ou locais onde os trabalhadores hoje se reúnem. Verificamos que em poucos outros lugares houve economias de escala ou oportunidades de investimento, tão propicia para a construção e o desenvolvimento de indústrias, como naquela região.

Se, nos anos 50 e nos anos 60, para lá se dirigiram tantos brasileiros provindos de tão diversas regiões, e se eles encontraram uma situação muito diferente para suas vidas ao ingressar nas novas indústrias, o que ocorre é que a nova geração de trabalhadores nos anos 70 e agora, início dos anos 80, encontrou uma situação muito diferente daquela de seus pais ou tios. Essa nova geração passou a questionar muito aquilo que foi a experiência de seus pais e tios. E talvez em São Bernardo e nos seus arredores, é que essa geração pôde perceber a enorme disparidade que havia entre o esforço de trabalho de si próprios, desses trabalhadores jovens e, mais ainda, daquilo que fizeram seus pais e tios, com o progresso que era alcançado por outro lado pelos setores mais beneficiados no progresso nacional.

Foi a partir dessa consciência e também fruto de alguma educação um pouco maior, ou por estarem sendo atingidos pelos meios de comunicação, que começaram a despertar algum questionamento sobre o por que daquilo. O por quê de tanto esforço, de tanto progresso, ao lado de condições de vida de favelados ou de milhares de trabalhadores vivendo em situações extremamente precárias. Nessas condições é que surgiram essas lideranças que despontaram no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e que, imediatamente, encontraram uma equipe. Uma equipe que primeiro teve algumas dezenas de pessoas e hoje tem centenas de pessoas envolvidas diretamente na organização dessa greve. Dificilmente houve outra greve no Brasil tão bem organizada quanto essa. Uma greve sem piquete, uma greve totalmente pacífica e muito consciente daquilo que se deseja, não apenas em termos de reivindicação econômica propriamente dita, mas em termos de uma reivindicação por uma maior participação nas decisões de tudo aquilo que lhes diz respeito na sua vida cotidiana.

"Ali se dá uma convivência nada pacífica entre o Brasil das multinacionais e o Brasil dos trabalhadores"

CELSO FREDERICO - Há uns dias atrás eu fui ver o filme "Bye, Bye, Brasil" e lembrei de São Bernardo. O filme mostra a trajetória de um grupo de artistas em direção a uma cidade, Altamira. Eles vão atrás de um Brasil brasileiro, que não existe mais. Então, o filme nos põe diante de uma realidade muito estranha. O Brasil é visto como uma mistura de civilização e de barbárie, de capitalismo selvagem e de folclore em decomposição. Sem entrar no mérito do filme, que não é o caso aqui, há uma idéia implícita com a qual eu não concordo. No filme, Altamira é apresentada como uma síntese do País. Eu acho que não é, e não pode ser. A síntese não é uma simples mistura de elementos discrepantes. A síntese, ao contrário, é um produto novo, é o resultado final do processo contraditório. Nessa perspectiva eu vejo São Bernardo como um local privilegiado para quem quiser conhecer a realidade social do País.

São Bernardo não é um simples espelho, que se limita a refletir passivamente a nossa realidade. Ao contrário, olhar para São Bernardo é olhar para uma lente que amplia e exaspera ao máximo os aspectos mais característicos da nossa sociedade. Então, São Bernardo é, ao mesmo tempo, a capital do automóvel e a capital do capital estrangeiro, uma cidade que dispõe de um sindicato cuja arrecadação faz inveja a muitas prefeituras do Brasil. Por outro lado, é habitada por uma população basicamente operária, que vem passando por muitos anos de arrocho salarial e que, dadas as condições urbanas, está vivendo um processo de favelamento crescente. Ali se dá uma convivência nada pacífica entre o Brasil das multinacionais e o Brasil dos trabalhadores, e, nesse sentido, a história de São Bernardo é uma antecipação da história brasileira.

No meu modo de ver as coisas, a república de São Bernardo não é um simples caso à parte, não é uma situação atípica. São Bernardo se transformou no centro nervoso do País. Um local onde se dá, em grau máximo, a exasperação das contradições e das lutas sociais que, afinal, irão superar essas contradições.

MOACIR PINTO DA SILVA - Quando recebi o convite para este debate, não sei se porque eu sou do ABC, um pouco de bairrismo entrou na conversa. Por que São Bernardo? Pra mim já surgiu outra pergunta, atrás dessa: por que não Santo André e São Caetano também? Parecem claras as discrepâncias com relação ao que conseguiu o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo em termos de organização da categoria, comparado, inclusive, com Santo André, que viria em segundo lugar, deixando longe São Caetano. Aceitando isso como ponto pacífico e aceitando, com uma certa resistência, a explicação de que em São Bernardo o sindicalismo conseguiu avançar até esse ponto devido à presença da indústria automobilística, eu gostaria de refletir um pouco mais a respeito do todo do movimento social no ABC.

Não devemos, nem podemos, mistificar São Bernardo hoje. Por exemplo, a chamada grande política no ABC, a chamada política de eleição, a política de partidos, ainda hoje é feita à moda tradicional. Os trabalhadores ainda não chegaram nesse ponto, os trabalhadores ainda não mexeram nessa esfera. Tanto que na Câmara Municipal de São Bernardo, que eu me lembre, não há nenhum representante saído do movimento popular. Inclusive, na última eleição, nós do ABC trabalhamos e votamos para candidatos de forra do ABC, o que é um fato bem significativo.

Estou colocando isso de introdução pra dizer que nós não devemos mistificar. O movimento operário ganhou um certo peso, estamos avançando paulatinamente pra novas conquistas. Hoje, estamos vivendo um momento em que a virgindade da lei trabalhista tem que ser quebrada e o dono da virgem está relutando ao extremo. Por isso esse impasse. Não é um impasse de miopia política, de falta de clareza política, de falta de lideranças políticas. É um impasse porque a burguesia se acomodou a essa situação no País. De certa forma, nesse período mais duro de ditadura, ela transferiu para o aparelho do Estado a responsabilidade de resolver o problema operário e hoje ela continua de braços cruzados esperando. E o Estado tem se prestado e está se prestando a isso.

Mas eu gostaria de pegar o outro lado da coisa, que é o movimento no ABC como um todo - talvez excetuando São Caetano, uma cidade onde a urbanização conseguiu expulsar o grosso da classe operária. São Caetano, por um processo quase que geográfico natural de urbanização, foi expulsando o pessoal de menor renda para o restante do ABC, para Diadema, pra Mauá, para os arrabaldes de Santo André, e para os arrabaldes de São Bernardo. Então, o que aconteceu? São Caetano se pequeno-aburguesou. Então, nesse sentido, São Caetano quase não entraria nisso que eu vou dizer. Mas se formos analisar direitinho o movimento de base em Santo André, ele é muito mais consequente do que São Bernardo, está muito mais avançado. Só pra se ter uma idéia, o apoio hoje à greve em São Bernardo está sendo muito melhor feito nos bairros de Santo André.

GUILHON - Está acontecendo uma coisa curiosa aqui. Enquanto existe uma teoria oficial conspiratória, tanto que quase duas dezenas de lideres estão presos por incitamento, todo mundo aqui está concordando que São Bernardo se explica quase que exclusivamente por causas estruturais. Eu não ouvi falar em lideranças, se não pra dizer que elas não pesam muito, e que São Bernardo não tem, ou não teria, digamos, expressivo movimento de base, nem movimento político.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO - Não concordo inteiramente com essa possibilidade de que São Bernardo se explique por razões puramente estruturais. Ali houve uma fusão de vários fatores e o fenômeno que estamos assistindo agora, em São Bernardo, na verdade é a culminação de um largo processo que - eu vou dizer, talvez, uma heresia - me faz lembrar uma época que eu vivi muito de perto, que foi maio de 68 na França. Não tem nada que ver, na verdade. Mas era uma explosão de alguma coisa que não se entendia muito bem. Aqui nós estamos também dentro da explosão de alguma coisa que não se entende muito bem, porque não é novo que a classe operária aja.

Como eu sou um pouco mais velho do que a maioria, eu me recordo do ano de 1953, de cujas greves eu participei também. E a classe operária em 53 reagiu no Brasil violentamente. A luta daquela época foi tremenda, dos têxteis, dos gráficos, do pessoal da alimentação, dos vidreiros, alguns dos líderes estão vivos ainda aí. Só que não era em São Bernardo, era no Brás, na Mooca, no Ipiranga, em Vila Prudente. Em 57 se repetiu isso. Depois dos anos 60 a luta se deslocou para o setor estatal da economia e é aí que o populismo entrou mesmo. Em 53 e 57 não foi populismo nenhum, foi luta operária, direta, contra os patrões que eram os patrões não multinacionais. Portanto, a classe operária lutou o tempo todo - e está lutando de novo, aqui, em São Bernardo e em vários lugares.

Mas essa luta tem outras dimensões. Por um lado, pra dizer uma coisa bastante repetitiva, os operários estão pedindo lá hoje não é tanto o salário. O salário vai no bolo, mas não são os 7% de aumento que estão em jogo, nem do ponto de vista dos operários, nem dos patrões. Eles estão querendo dignidade. Quando o Lula disse que "os patrões vão se ajoelhar diante dos trabalhadores", isso pego ao pé da letra pode parecer uma basófia. Mas se você interpreta um pouco o que ele está dizendo é que é preciso entender que nós somos iguais. O que os operários de São Bernardo simbolizam, é uma luta muito mais ampla, é uma luta por um lugar no solo da cidadania. O operário está dizendo pra todos nós, está dizendo ao coronel que está na praça, ao senador que está na praça, ao intelectual, ao deputado: "Nós somos iguais, nós queremos falar por nós mesmos".

É bom que se repita. O movimento de São Bernardo é absolutamente democrático, nos seus propósitos, na sua organização, em tudo o mais. Diante dessa demanda democrática, qual é a resposta da autoridade e do empresariado? É o não. Nós não fizemos outra coisa nesse mês que já aí vai, e muitos dos aqui presentes fizeram diretamente, do que dizer: dialoguem, conversem. E eles dizem que não. Por quê? Por causa de 7%? Não. Dizem não, pra defender uma ordem perempta, ou seja, velha. Pra defender uma ordem que não é possível mais subsistir, que é justamente uma ordem em que não se aceita o operariado como interlocutor legítimo. É isso que está em jogo.

MALULY - Acho que essa é a grande verdade de São Bernardo. A grande reivindicação é esta, no meu entendimento.

FERNANDO - Agora, a questão: por que foi em São Bernardo? Por um lado, por causa do que já foi dito aqui. Eu concordo que tem o ABC todo - por que não foi em Santo André? E também concordo que há desníveis: é porque tem o Lula em São Bernardo. O Lula não é uma coisa que se possa pôr entre parênteses. Ele expressa muito bem esse anseio e foi, de alguma maneira, o líder operário que, a meu ver, com mais capacidade expositiva disse o que o operário comum sente. A grande virtude da liderança do Lula é que ele formula inteligentemente o senso comum. É isso o que o Lula faz. E isso é importante.

Além disso, há outro dado que explica por que São Bernardo. É que, de repente, como que toda a sociedade civil se vê ali confluindo em São Bernardo, numa história de luta que vem de antes. Antes não foi a SBPC durante algum tempo? Depois não foi a luta pela anistia? E não teve a Igreja nesse tempo todo ocupando o espaço? E os estudantes? Quer dizer, de repente fundiu naquele movimento esse conjunto. Também não se pode entender São Bernardo sem a Igreja. Não no sentido da teoria conspiratória, segundo a qual "o bispo incita e o cardeal comanda". O bispo não incita nada; o bispo, na linguagem católica, testemunha. E o cardeal não comanda; o cardeal simplesmente procura entender o que está acontecendo. A Igreja permitiu que esse movimento se desenvolvesse dentro de uma estrutura que é respeitada - a estrutura da Igreja. Porque, antes de 53, quem se colocava junto dos operários era "comunista".

Então, por que São Bernardo? Por esse conjunto de fenômenos.

Quero só complementar com uma coisa. Tenho um certo convívio com o pessoal de São Bernardo, já de alguns magros anos - na verdade, vem da época da campanha eleitoral, quando eu fui surpreendido porque o Lula me pediu que fosse lá pra conversar e tal; foi a primeira vez que eu fui a São Bernardo. Muito bem. Conheço, digamos, por nome, como vários de nós aqui conhecemos os líderes hoje de São Bernardo. O Lula que é esse fenômeno da natureza que nós aqui mencionamos. Os outros não são. Entretanto, eu vi nas assembléias de São Bernardo, todos eles, os que comandaram, os que dirigiram, os que foram substituindo o Lula, funcionando na assembléia com uma capacidade de comando e com um desempenho de dar inveja. De dar inveja! Não é que eles sejam fora de série. São gente comum, mas, no conjunto, esse pessoal aprendeu a se comportar em massa, numa sociedade que é urbanizada. Eles aprenderam a lidar com movimento de massa. Então, não adianta a teoria conspiratória. Não é o Lula. Não são nem dez, são realmente centenas. E isso a mim me surpreendeu, apesar do convívio que tinha. Me surpreendeu até o ponto de me comover. Ali está um pedaço da sociedade que avançou bastante, apesar do descompasso com o resto do setor político, etc, etc.

MOACIR - Eu fui metalúrgico nove anos, hoje sou intelectual (risos). Hoje sou professor. Como eu e outros chegamos a isso? Na escola do sindicato, fazendo supletivo porque as próprias empresas precisavam do supletivo, fazendo o Senai, porque as empresas precisavam do Senai. Então, eu como todo o pessoal aprendemos a ler e a escrever.

"A ação repressiva do governo está estimulando aquilo que o regime mais teme: a luta de classes"

MINO - Creio que toda a ação do governo, do regime, toda essa ação repressiva está estimulando, claro, a criação de novas lideranças e essa organização toda, enfim. Está estimulando também por outro lado, aquilo que o regime mais teme, que é a luta de classes, que já está aí, cada vez mais alimentada por esse tipo de ação que o governo conduz. Agora o governo é fisiológico, ele é naturalmente casuísta, não tenta imaginar como será o amanhã. Então, casuísticamente, a intenção é ceifar essa liderança do Lula. Casuísticamente o interesse é conter São Bernardo.

SUPLICY - Seria importante também nós perguntarmos porque se interrompeu de forma quase que drástica um diálogo que o governo até tentou? O governo desde a administração Geisel, com a participação do governo Paulo Egydio, e o deputado Jorge Maluly mencionou o diálogo que houve no Palácio dos Bandeirantes, em que o governador foi uma espécie de hóspede de um diálogo do ministro Mário Henrique Simonsen com cerca de 50 líderes sindicais. E o deputado Jorge Maluly contribuiu para que esse encontro houvesse. Mas, eu me lembro que, durante a própria administração Geisel, esse diálogo não continuou, apesar de por inúmeras vezes ter sido reclamado. Houve, a partir da greve de 79, um distanciamento crescente da própria administração Paulo Egydio, do ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto, e do próprio ministro Simonsen que não mais dialogaram frente a frente com os trabalhadores, continuando, porém, o seu diálogo cotidiano com os empresários.

Durante a administração Figueiredo quase que se esboçou novamente esse diálogo. O próprio Mino Carta, nessa semana ainda mencionou a tentativa de diálogo entre o ministro Delfim Neto com o deputado Almir Pazzianoto, Walter Bareli, Arnaldo Gonçalves e Luis Inácio da Silvas. Ora, o que me pareceu uma das razões para a interrupção, para o fracasso desse diálogo, foi a falta de coragem do próprio empresariado de participar dele. E também do governo porque, nessa hora, pra resolver essa greve, seria necessário a negociação, seria necessário que o governo fosse somente o catalizador do diálogo direto que precisa haver...

FERNANDO - Você me dá licença para um aparte? Eu estou convencido de que o governo não quis, em nenhum momento, resolver essa greve. Não quis.

SUPLICY - O governo e os próprios empresários, em sintonia total.

FERNANDO - Realmente não houve nenhuma vontade de negociar. Nem sequer houve um sinal, o mínimo sinal no sentido da negociação. Mesmo quando não está em jogo nada a não ser a necessidade de dialogar. Nem isso eles aceitam. Ora, como esta gente de boba não tem nada, e como esta gente sabe perfeitamente, eu imagino, tudo o que nós sabemos e talvez outras coisas mais, houve uma decisão política aí, de fazer o enfrentamento, de cortar pela raiz a possibilidade de uma democratização mais substantiva.

Mas quem vê na rua o que nós estamos vendo hoje em São Bernardo, começa a meditar. Porque você veja, o governo, na verdade, se aferrou a uma decisão do Tribunal do Trabalho. Só que essa decisão, todo mundo sabe, foi arrancada à força. Houve uma primeira decisão e, depois, uma segunda desdizendo a primeira. Então, a legalidade que o governo quer manter, é uma legalidade na qual ninguém acredita, porque falta legitimidade. Pois bem, ele se aferra a essa pseudolegalidade dizendo: "Não. A Polícia está na rua ou mesmo o Exército está envolvido nisso, não é pra defender o capital, é pra defender a lei." Ora, quem é que acredita nisso? Quem é que pode acreditar nisso quando essa lei não tem legitimidade, não tem enraizamento, não tem consenso, não deriva de um mínimo acordo entre as partes: Então, o que o operário está vendo hoje na rua é a Polícia batendo nele, porque ele quer negociar com o patrão e não consegue.

GUILHON - Eu queria aproveitar a chegada do deputado Almir Pazzianoto. Pelo fato de ter tido contato bastante direto com o empresariado nessa conjuntura, o que ele diria, comparando esse amadurecimento dos operários de São Bernardo com a posição dos empresários? Curiosamente, aqui nessa discussão, quando se falou em São Bernardo um ator ausente foi o empresário. E quando mencionado, foi apenas pra dizer que ele não estava tendo uma atuação como membro da sociedade civil.

ALMIR PAZZIANOTO - Eu próprio tomei conhecimento mais direto da situação de São Bernardo, e das suas aspirações, precisamente no ano de 1970. E tenho a impressão que esse ano é marcante para o estudo da realidade de hoje. Em 1970 eu era já há alguns anos advogado da Federação dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas. Mecânicas e de Material Elétrico do Estado de São Paulo, à qual o sindicato de São Bernardo obviamente é filiado. Após algumas conversas com diretores da época, chegamos à conclusão de que São Bernardo não poderia mais encaminhar as reivindicações dos seus trabalhadores atrelado a diretrizes da Federação, considerando as condições específicas das suas indústrias e as condições peculiares dos seus trabalhadores, que tinham reivindicações diferentes.

Em 1970 eu participei de uma grande assembléia realizada num cinema em São Bernardo, cujo nome eu não me recordo. Uma assembléia onde acabou se discutindo a tese da unidade ou da divisão prevalecendo a tese da unidade, porque se entendia que uma medida em separado de São Bernardo implicaria num divisionismo. E essa tese tem sido reiteradamente defendida pelo pessoal que segue a linha política da Federação, que não consegue entender que não há divisionismo algum quando uma categoria reivindica em função das suas condições específicas de trabalho e de emprego. Em 1970 fomos, o Sindicato e a sua diretoria, repelidos na pretensão de encaminhar suas reivindicações separadamente.


"São Bernardo representa uma tentativa séria de criação de um novo estilo de atuação sindical"

Em 74, o Sindicato realizou o primeiro Congresso dos Trabalhadores Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, debaixo de um clima de absoluta tensão e pressão: na realidade, ninguém acreditava que esse congresso viesse a se efetivar. Devo lembrar que várias pessoas convidadas para proferirem palestras nesse congresso, por uma razão ou por outra acabaram se recusando e afinal, a "carta de São Bernardo", como se chamou o documento tirado do Congresso foi considerado um documento de vanguarda na vida sindical. Esse documento afirmava a necessidade de uma ruptura com o velho sistema sindical brasileiro, a necessidade da criação do novo movimento sindical, as teses de autonomia, de liberdade sindical e foi, durante algum tempo, uma espécie de bandeira de luta do sindicato de São Bernardo.

Em 75, o Sindicato fez a sua primeira concreta tentativa de estabelecer uma diferença no encaminhamento das reivindicações coletivas. Trataríamos da questão salarial num determinado momento e das questões específicas de São Bernardo num outro momento, reivindicações como estabilidade e assim por diante. O processo foi bloqueado na Delegacia Regional do Trabalho de São Paulo, a pedido ou por determinação - não sei estabelecer a diferença - da Fiesp, ou num conluio entre Fiesp e Ministério do Trabalho.

O fato é que nunca houve uma resposta ao propósito do sindicato de São Bernardo de negociar, diretamente com o patronato, as questões específicas de sua base territorial. Não se aceitava aquilo que é básico no direito existente, que é a autonomia de cada sindicato dentro da sua base territorial. E a Federação dos Trabalhadores continuava capitaneando um grande dissídio de trinta e tantos sindicatos, fazendo acordo ou encaminhando dissídio, mas sem nenhuma atenção às reivindicações fixadas pela assembléia dos trabalhadores de São Bernardo do Campo.

Em 1976 o Sindicato conseguiu uma primeira vitória, embora o Tribunal Regional do Trabalho tenha negado o requerimento de desapensamento do dissídio de São Bernardo, do dissídio comum patrocinado pela Federação, um dissídio onde a Federação se apresenta irregularmente, ilegalmente, como patrocinadora das reivindicações de todos os demais sindicatos. E ela não pode fazer isso, ela representa apenas aos inorganizados.

Embora o Tribunal Regional tenha indeferido, como de hábito, a pretensão do desapensamento do nosso dissídio para um exame individualizado, como nós estávamos no dissídio como parte, mas não aceitamos o acordo homologado, a sentença do Tribunal em relação a nós tornou-se recorrível. Fomos ao Tribunal Superior do Trabalho e pela primeira vez conseguimos que as nossas reivindicações fossem examinadas, na esfera judicial, em separado. E tivemos o deferimento de algumas reivindicações que não constavam da pauta dos demais sindicatos. Uma pequenina vitória, mas de qualquer forma marcante. Em 78 tivemos a primeira greve, após o julgamento do dissídio. 79 uma nova greve e agora em 80.

Eu não tenho dúvida nenhuma em dizer que durante todos esses 10 anos houve um acumpliciamento entre patronato e Fiesp para sufocar a aspiração de soberania do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema. Há uma cumplicidade, há um conluio e, evidentemente, à medida que os anos passam mais a categoria se convence, se conscientiza de que ela tem esse direito, que, aliás, a lei lhe assegura; apesar de todo o seu espírito corporativista, fascista, a lei ainda lhe assegura esse direito a um tratamento autônomo.

Também subscrevo aquilo que o Fernando Henrique acaba de dizer: não se concedeu este ano, a São Bernardo do Campo, sequer a possibilidade de um empate na luta pelas reivindicações dos seus trabalhadores. Desde o princípio das negociações nós verificamos que os representantes do Grupo 14.o - que não tem nada a ver com São Bernardo, porque são representantes de indústrias que não estão lá localizadas - que esses homens foram para a mesa de negociações dispostos ao endurecimento mais absoluto, total.

O sindicato de São Bernardo tinha uma única alternativa: fazer um mau acordo. E no fazendo um mau acordo, é óbvio que a liderança que está lá consolidada ficaria comprometida diante do trabalhador. Ou faz um mau acordo ou vai para o impasse, sendo que, no impasse, o Estado, mais uma vez tomaria posição à retaguarda do patronato. E hoje já nem está mais à retaguarda, está na vanguarda, na proa dos acontecimentos, reprimindo violentamente toda e qualquer manifestação dos trabalhadores.

São Bernardo, enfim, representa uma tentativa séria de criação de um novo estilo de atuação sindical no País, rompendo com a estrutura que está fixada por essa legislação. E esta nova tentativa, no meu entendimento, só será admitida pelo sistema, pelo governo, se for uma tentativa dentro daquilo que o governo considera tentativa bem comportada, dentro dos limites que o sistema estabelece para coação sindical. O ano passado, foi dado o recado, após a intervenção. Feita a intervenção, destituída a diretoria, recolocou-se a diretoria na esperança de que passassem a ser homens bem comportados. Um sindicalismo moderno, porém, bem comportado. Um sindicalismo moderno, porém, atento àquilo que seria a determinação governamental. "Casa-se com qualquer um desde que seja com o José", como diz o deputado Maluly. Não sendo assim, o confronto seria absolutamente inevitável.

MALULY - Almir, sem querer interromper sua brilhante exposição, mas aqui se levantou a questão: onde o governo, onde o patronato, enfim, desejam chegar em relação ao problema atual? Suponhamos que seja uma estratégia governamental, ou da própria Federação, de quem quer que seja, levar até às últimas consequências essa radicalização para uma exaustão do movimento que entraria numa estafa e por si só, se desmancharia. E nisto tudo viriam os resultados da perda dos dias de greve, uma perda salarial, uma perda de reivindicações. Daí talvez, alguém imaginasse (aí vai a minha grande indagação) que cairiam no descrédito as lideranças e o movimento em si e toda uma filosofia que existe atrás dele. Você entende que essa hipótese possa, de alguma forma estar acontecendo?

ALMIR - Deputado, isso para mim é mais do que uma hipótese. Isso para mim tem um profundo sentido de realidade. E a tentativa de quebrar um sindicalismo que fala em garantia de emprego, em representantes sindicais dentro das empresas. Mas é uma tentativa, também, de liquidar as lideranças atuantes e, eu diria, uma das raríssimas lideranças que nós temos presentes hoje no País. Mas, é evidente o equívoco do governo...

MALULY - Ah, isso é o que eu queria ouvir.

ALMIR - É evidente, e isso é uma manobra mal pensada e mal engendrada. Ela pode ser uma manobra bem feita em termos militares - coloca-se a tropa na rua, os esquadrões se deslocam, apanham pela retaguarda etc. Mas o movimento não se esgota aí. Eu não vejo como o governo possa alcançar êxito, ao contrário. Se a lei vigente for aplicada com todo seu rigor, os atuais líderes vão ficar impedidos durante um bom tempo de voltar. Até imagino que seja realidade aquilo que vem se propalando, que muitos desses trabalhadores dispensados não encontrarão novamente emprego na região. Mas, acontece que os líderes depostos estão insistindo nisso que é o homem e sua circunstância: se não for um José o líder, será o Pedro; porque as condições naturais de trabalho ensejam o aparecimento de lideranças sucessivas e nós estamos no bojo desse movimento.

MALULY - É preciso então, que se compreenda, que o movimento não cessa por esta ou por aquela razão, por essa ou aquela estratégia que pode ter um resultado momentâneo, mas, historicamente, o movimento deve persistir e continuar. É isto o que entendi da sua resposta.

ALMIR - Em São Bernardo, mais do que em qualquer outro lugar do País, o sindicalismo é um fenômeno absolutamente natural.

"Procuramos que o patrão conhecesse a verdade do operário, e o operário a do patrão e ambos a do governo"

MALULY - Eu não queria chegar aí, mas o Suplicy me citou e é preciso que eu coloque, porque tive numa certa oportunidade uma pequena responsabilidade dentro desse processo. Eu assumi uma secretaria de Estado quase que inexistente, sem nenhuma mensagem, sem nenhuma doutrina, sem nenhum conteúdo filosófico. Eu procurei dar a ela esse contexto. Procuramos, numa primeira fase, a conscientização, ao mostrar o caminho ao próprio empresariado, ao mostrar as lideranças a sua responsabilidade, dialogando, fazendo um entendimento entre elas. Procuramos que cada um conhecesse o lado oposto da sua verdade. Que o patrão conhecesse a verdade do operário, e o operário conhecesse a verdade do patrão. E ambos conhecessem a do governo e o governo conhecesse a de ambos e assim por diante. Para que, de uma forma não abrupta, as conquistas sociais se fizessem das bases para cima e não paternalisticamente, porque nada virá de cima para baixo, que permaneça historicamente.

FERNANDO HENRIQUE - Mesmo os mais informados sobre São Bernardo não imaginariam que fosse possível uma greve durar mais de 30 dias, não imaginariam que fosse possível uma greve sobreviver depois de os líderes estarem presos. A verdade verdadeira é que a greve não foi conduzida por ninguém em termos partidários. Não houve partido dirigindo. Nem partido, nem organizações. O fenômeno foi tão maior que essas coisas desapareceram na prática de uma fraternidade muito grande. E se compreendeu que, num dado momento, há um partido que é maior que esses pequenos partidos, que é o partido da democracia, da necessidade de fazer com que o trabalhador exista. Não por bondade nossa, porque ao dizer "não" ao trabalhador, o governo diz "não" a nós, diz "não aos empresários; o mesmo governo que passa pito em empresário, vai passar com mais força ainda. E os intelectuais, se estão lutando pelo trabalhador, estão lutando por si. Em São Bernardo, até mesmo as diferenças partidárias se transformaram em coisa pequena.

Vamos imaginar agora que a greve termine - a greve um dia termina; o destino de uma greve é acabar, não é isso? Mas acaba o quê? Acaba a raiva do operário que se viu frustrado em todos os seus anseios e que sentiu de perto o que significa uma ordem justa? Acaba isso? Não. Acaba a vontade de mudar que milhares de pessoas estão demonstrando na rua? Não acaba isso. Não acaba nada. Apenas, tudo isso sabe Deus que caminho vai tomar. Qual é a forma institucional que se vai dar a esse protesto amanhã? Pode não haver nenhuma e, aí, com que cara nós vamos pedir institucionalidade e lei, com que cara? Se nós sabemos que a lei é essa que está aí?

SUPLICY - Na sua cegueira, o que parece claro é que o governo também não compreende São Bernardo como um exemplo pra todos os trabalhadores do Brasil. Quando o governo procura atribuir a São Bernardo o movimento apenas de um setor operário, um setor de elite, ele está aí profundamente enganado. Porque, mais e mais, o que se verifica é que as lideranças de São Bernardo expressam com bom senso aquilo que querem dizer os trabalhadores de todo o Brasil.

MINO - E, eu acho que São Bernardo briga pela gente também, né? É o que dizia o Fernando Henrique: nós estamos com São Bernardo porque a coisa mexe conosco. Agora, certamente o Poder não está lendo os livros que deveria ter lido. Em circunstâncias iguais os homens costumam agir de uma forma pelo menos parecida.

SUPLICY - E ao tentar resolver essa crise pela humilhação dos líderes de São Bernardo, e como São Bernardo também é a gente, o governo brasileiro está querendo humilhar a todos os que querem a democracia. Nós todos nos sentimos humilhados com os irmãos presos pelo governo, detidos no Deops, sem ter cometido falta alguma.

GUILHON - Agora, vejam, eu realmente gostaria de entender o empresariado nisso tudo. Se o empresariado foi capaz de fazer São Bernardo, não é capaz de entender que São Bernardo não está lutando só por nós, está lutando também pelos empresários e até pelo próprio governo?

MINO - Você tocou num ponto básico. Não foi o empresariado que fez São Bernardo. (risos) Não foi o empresariado.

ALMIR - Eu tenho uma boa experiência no trato com o empresariado brasileiro, com o empresário multinacional que está aqui. Me permitam essa falta de modéstia, mas eu tenho feito, ao longo de 15 anos, tentativas de celebrar acordo coletivo com patrões dos mais variados ramos industriais, pequenos, médios e grandes. O que eu posso afirmar a vocês é que, salvo algumas exceções que desaparecem nos momentos de crise, não há nada mais obscurantista. Eles não querem de forma nenhuma o diálogo, nunca quiseram, e sempre que possível se refugiaram atrás de uma legislação draconiana, de uma legislação obscurantista, quase medieval. Isto de me dizer que hoje o empresariado negocia, ele negocia quando compelido. Negocia quando não há uma outra hipótese.

SUPLICY - E no presente foi compelido a não negociar.

FERNANDO - Eu escrevi um livro, há muitos anos, em 61, sobre os empresários brasileiros e entrevistei muitos deles. Naquela altura existia a idéia de que a burguesia nacional teria um papel progressista a cumprir. Bem, eu não tenho a memória, mas podem ver o que está dito num dos capítulos desse livro, que se aplica ipsis literis ao que acontece agora. Então, o patronato quando reclama benesses do Estado, aí ele é povo. Ele é povo, ele está contra o Estado porque o Estado toma dele, aumenta o imposto e não sei o que, aí ele é povo, puro povo, fala como povo. Não assume a responsabilidade que tem na ordem autoritária vigente ou qualquer ordem vigente. Ele aí desaparece. Mas, assim que o povo começa a se movimentar pra exigir qualquer melhoria real que, por último, é melhoria também para os próprios empresários enquanto cidadãos, esse empresário se escuda atrás do Estado e desaparece e não assume sequer, como agora, a responsabilidade de ser ele quem diz não. Sempre manda dizer que não pode negociar porque o governo não quer. Nada impede que um grupo de empresários, dos muitos que há aqui, tome uma decisão contra o governo e comece a negociar, comece a dialogar. Nada impede.

CELSO - Mas, Almir, só um esclarecimento. O Lula, pouco antes de ser preso, disse que foi procurado por alguns empresários da Mercedes, da Ford, alguma coisa nesse sentido, indicando que havia uma intenção de contato com ele vindo das grandes empresas.

MINO - Não, não foi bem isso. Dois empresários procuraram o Lula e chegaram a conversar com ele, na tentativa de encontrar uma solução negociada. Eles seriam os intermediários de uma aproximação. Um desses empresários chegou a achar que, realmente, a coisa estava muito próxima. Eu não excluo até a possibilidade de que, de alguma forma, o governo tenha conseguido alguma informação a respeito dessa aproximação e, antes que alguma coisa realmente se concretizasse, tenha optado pela intervenção. Quanto às multinacionais eu acredito que elas, em outras circunstâncias, não sofrendo pressões do governo, claríssimas, elas seriam negociadas, como negociaram em outras ocasiões ou tentaram negociar em outras ocasiões.

Entretanto, mesmo que isso pudesse acontecer, eu acredito que ainda assim está muito claro que o empresariado se omite. Esses empresários, que nos acostumamos a ter como liberais e que volta e meia, em momentos de calmaria, surgem com declarações bombásticas a favor da democracia, da liberdade, e outras coisa que tais, nesses momentos, ficam rigorosamente quietos, não abrem a boca.

MALULY - Mino, me permita apenas o seguinte: o que esta reunião do Folhetim deseja é a análise do fenômeno São Bernardo. Nós já falamos aqui muita coisa a respeito, mas há uma indagação que ainda não recebeu uma resposta. Se as condições são as mesmas, se existem multinacionais em São Bernardo como existem em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, como em outras áreas de concentração urbana, foi apenas o movimento sindical que deu origem a este fenômeno de São Bernardo ou tem alguma coisa a mais atrás ou além disto?

FERNANDO - Está visto que, primeiro, o que existe em São Bernardo em grau maior, talvez, e mais visível, existe em outras partes também, em São José dos Campos, Campinas, Taubaté, Sorocaba, por aí afora. Agora, há certas coisas que são particulares. Se você não tivesse uma Prefeitura que cedesse um estádio, seria diferente. Se você não tivesse um Lula com capacidade de comunicação de massa, também seria diferente.

"O Brasil modernizou-se, industrializou-se e não vai ter movimento social? Vai ter, claro que vai ter"

MOACIR - Deixa eu lembrar só uma coisinha, a história da greve da região canavieira de Pernambuco do ano passado. Aquela região já viveu uma experiência tipo São Paulo de repressão anos atrás. A tradicional esquerda que poderia ser tachada de agitadora não estava presente. E a história da greve da região canavieira de Pernambuco do ano passado, ela guarda características muito marcantes e muito parecidas com São Bernardo.

FERNANDO HENRIQUE - Esse é que é negócio. O Brasil avançou, se modernizou, se industrializou, se urbanizou, e não vai ter movimento social? Não vai ter desafio? Não vai ter? Vai ter, Portanto, ou se tem um sistema político capaz de entender isso e avançar ou então vamos ter muita dor de cabeça, porque, veja, o que é que está sendo reivindicado em São Bernardo hoje? É nada. A agenda de reivindicações é mínima, e na maior parte são reivindicações de procedimento, não é de dinheiro, é de procedimento, não é isso, Almir?

ALMIR - Exatamente.

GUILHON - Leôncio, você que há muitos anos vem estudando a classe operária em São Bernardo, era previsível um pouco essa trajetória do movimento operário? Há uma mudança radical ou você tem indicações de que essa tendência atual de São Bernardo, por exemplo, pode ser mais representativa de um fenômeno mais amplo no Brasil?

LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES - A minha observação de São Bernardo chegou ao que se poderia chamar uma idéia de comunidade operária, que a meu ver é fundamental. Não que não possam ocorrer movimentos grevistas em outras partes, claro que sim. Se tivermos um desenvolvimento do capitalismo no nível de empresa e democracia, tudo indica que mais cedo ou mais tarde tenhamos sindicatos fortes, reivindicando não só aumento de salários, mas uma participação no sistema de autoridade da empresa, para não falar no sistema de decisão política. Mas eu creio que São Bernardo tem alguma coisa à parte. Muitos fatores confluíram no sentido de formar esse sentimento de que existe uma comunidade - e isto é decisivo porque provavelmente há uma identificação muito grande da cidade com os trabalhadores.

Eu imagino que os proprietários das empresas não moram em São Bernardo, a alta gerência deve morar em São Paulo, de maneira que isso deve levar a uma homogeneidade social muito grande. Em certo sentido se teria o que em outros lugares se chama comunidade operária isolada em tornos e minas, que dá uma consciência de classe muito forte. Isso não quer dizer que São Bernardo se encontra tão isolada do resto do País - embora ás vezes pareça que, de fato, está muito isolada... (risos). Mas eu acentuaria essa idéia de comunidade operária, que junta a Igreja, junta a população local e uma forte concentração operária, com essa densidade moral...

FERNANDO HENRIQUE - Você me dá licença? Eu queria concordar com a idéia de comunidade, mas não tanto nesse sentido. A última idéia sim, da densidade moral, sim. A assembléia sindical é um fato, mas o que está acontecendo hoje lá não é assembléia sindical, é realmente o sentimento de comunhão, de comunidade e de apoio. Não creio que seja da cidade, como já se falou aqui, mas é dos operários mesmos.

E mais, uma coisa que me chamou muito a atenção nas assembléias e agora no dia 1.o de maio. A situação de 1.o de maio foi muito tensa, os que estavam lá sentiram - até choramos, não de emoção, mas por causa de gás lacrimogêneo. Bom, foi muito tenso. Mas assim que veio a ordem para a Polícia se retirar, aquilo virou festa, até com batucada. Essa dimensão de festa esteve presente o tempo todo; quando não há o medo da reação, da repressão, vem a festa. Isso tem a ver com esse sentimento de uma fraternidade que, inclusive, quase misticamente dissolve as hierarquias. O bispo está ali, está o deputado, está o jornalista, está o líder operário, desfeitos naquela comunhão. Isso eu acho importante, mas não no outro sentido, de ser uma coisa isolada.

LEÔNCIO - Não, não falei em comunidade isolada do resto. Toda vida operária gira em torno de uma única empresa, a grande empresa, lá é uma comunidade, porém, não é uma comunidade isolada.

ALMIR - É, são as comunidades das fábricas. Se nós tentarmos procurar os fatores objetivos que levam a esse estado de mobilização geral, e de resistência verdadeiramente excepcional, na minha opinião nós vamos encontrar coisas do tipo. Em primeiro lugar, grande concentração de trabalhadores em um número restrito de empresas, o que possibilita uma atuação sindical mais concentrada, a formação de um espírito de equipe - o trabalhador da Volkswagen, o trabalhador da Mercedes, ou o trabalhador da Scânia, eles se reconhecem e se irmanam em função dos problemas comuns que vivem dentro de cada empresa.

A característica da própria indústria automobilística que é excessivamente opressora, sem embargo de ser a mais moderna é a que mais retira do empregado, é a que mais suga o trabalhador. Você diz que o empregado da Mercedes ganha mais. Sim, ele entra ganhando mais, porque ali o padrão não é o salário mínimo, mas em contrapartida ele oferece muito mais e se arrisca muito mais, não só quanto à integridade física, mas quanto ao equilíbrio emocional. O ritmo de trabalho é ditado pela empresa porque o nosso sistema sindical ainda não conseguiu, e esta seria uma reivindicação básica, discutir a questão de ritmo, o que já tem sido mencionado lá dentro do sindicato.

Há um outro lado importante a possibilitar a greve: é a disponibilidade em que se encontra o trabalhador. O trabalhador que está consciente de que ele não tem garantia nenhuma de emprego, vivendo uma permanente instabilidade gerada pelo sistema do Fundo de Garantia, ele não se prende tanto ao trabalho, mesmo porque se for despedido com ou sem justa causa leva consigo o Fundo. Se não consegue retirá-lo pelo menos consegue transferi-lo. É um patrimônio seu. O Fundo de Garantia gera isto no espírito do trabalhador e, curiosamente, esta resultante do FGTS foi prevista pelos líderes sindicais de 1966/67.

E há também o problema do peão. Hoje, alguém me perguntava, quem é que alimenta a greve? É o peão ou é o operário especializado? Eu acho que ambos alimentam a greve, cada um a sua maneira, cada um pelas suas razões. Mas, o peão mora fundamentalmente em pensões. E esta convivência diária gera um espírito de fraternidade, que é o que possibilita a luta. Se nós vamos, ou não, ter greves em outros setores, onde as condições são diferentes de São Bernardo, eu respondo sem medo nenhum, sem preocupação nenhuma que nós vamos ter as greves, mesmo porque o processo é meio epidêmico e as condições de salário e de vida são muito semelhantes. Agora, São Bernardo é de fato uma comunidade.

- Esse é o moderno.

ALMIR - Esse é diferente em relação aos demais. A greve de São Paulo, o ano passado, a greve do Sindicato de São Paulo, Guarulhos e Osasco, uma greve incrivelmente difícil de administrar, porque são centenas de pequenas e médias empresas. Então, a paralisação exige um esforço sindical, um esforço de piquete, um esforço de deslocação, muito superior. No momento em que a Volkswagen tomou consciência de que deve parar e que não deve retornar a menos que determinadas condições sejam atendidas, não há mais muita necessidade até da presença do piquete.

CELSO - Almir, eu queria complementar uma coisa que você disse a respeito do tipo do operário que há em São Bernardo do Campo, principalmente na indústria automobilística. De fato, esse operário é o mais bem pago do País e, também, há um número maior de operários qualificados na indústria automobilística, assim como o nível de escolaridade é maior nesse setor.

FERNANDO - Dá pra quantificar um pouco isso para o leitor depois ter uma idéia do que significa esse bem pago?

CELSO - Parece que a média do salário está sete mil.

ALMIR - Segundo informações que me foram dadas pelo Dieese, e que apareceram no curso das negociações, 25% ganham de 1 a 3 salários, digamos, sessenta e qualquer coisa por cento ganha acima de 3 e até 10 salários e o restante acima de 10 salários mínimos. Agora, não podemos perder de vista que se toma como ponto de referência o salário mínimo. E todos sabem o que é o salário mínimo?

CELSO - Eu acho que essas características do operário em São Bernardo vem suscitando uma série de mal entendidos. De um lado os porta-vozes do Governo procuram mostrar o operário em São Bernardo como um sujeito pertencente a uma elite, com uma aristocracia primária. Isto é, um setor de classe privilegiada. Recentemente, alguns porta-vozes do Governo chegaram a dizer que as reivindicações dos operários não eram justas porque elas iriam dificultar a distribuição de rendas no País. E o próprio governador Maluf, num momento de humorismo involuntário, disse que a média de salários chegava a 100 mil.

Há também uma proliferação de teorias que procuram dizer que o operário está sendo corrompido pelo consumismo, isto é, que o operário perdeu a sua consciência de classe, a sua combatividade, e está vivendo um processo de acomodação e de integração capitalista. Me parece que está havendo uma manipulação bastante equivocada dos dados. Em primeiro lugar os salários são mais altos, mas em São Bernardo a especulação imobiliária chegou a tal ponto que, conforme falou o dr. Almir, os operários estão vivendo em pensão e muitos deles fora da cidade de São Bernardo, onde os aluguéis são muito caros. Por outro lado, esses operários evidentemente não são os mais miseráveis, os mais andrajosos, os mais pobres. Mas é preciso deixar bem claro que eles são os trabalhadores mais explorados do Brasil na medida em que eles criam uma taxa de mais-valia altíssima. Então, na indústria automobilística está bastante claro o contraste entre a criação social da riqueza e a sua apropriação privada pelas empresas multinacionais.

ALMIR - Você me daria um apartezinho? Dentro dessa linha de raciocínio, eu tive a curiosidade despertada para o problema do salário comparado. E cheguei a uma conclusão, não sei se correta porque eu sou apenas advogado, não sou economista, de que há uma manipulação evidente dos salários nos padrões internacionais. Eu disse algumas vezes, não sei se fui bem entendido, que esses trabalhadores da indústria automobilística são pagos em cruzeiros, mas os seus salários são calculados pelas empresas em dólares. Porque me parece óbvio que, em se tratando de uma multinacional americana, todo o seu balanço ela fará em dólares, não fará em cruzeiros. Então ela calcula o pagamento em cruzeiros, mas está calculando o valor, o custo dessa mão-de-obra em dólares, como a Volks calcularia em marcos, não é verdade? E o último padrão de referência acabaria sendo talvez o dólar. Toda vez que o salário do trabalhador da indústria automobilística for elevado não tenho dúvida nenhuma que, ato contínuo, vai haver uma mudança no câmbio e em dólares ele voltará a significar um dólar, um dólar e meio no máximo dois dólares por hora. E assim tem sido sempre e invariavelmente ao longo de todos esses anos.

Eu conversei com um soldador da Ford nos Estados Unidos e ele ganhava, em meados do ano passado, 12,5 dólares por hora. E eu disse a ele que um soldador no Brasil ganha um dólar e meio por hora. Talvez até ganhe menos, com o dólar a 50 cruzeiros... o sindicato fez um levantamento em São Bernardo, por fábricas, constatou salário mais alto de 105 e 110 cruzeiros por hora. Há casos excepcionais, 130, mas isso é o excepcional.

GUILHON - Você permite um outro lado comparativo? Se você comparar o valor salarial com o valor da produção, há um dado que a Fiesp divulgou, assim muito escondidamente, segundo o qual a média salarial seria da ordem de 6 mil cruzeiros. E as montadoras divulgaram que deixaram de faturar 18,5 milhões em 17 dias úteis. Fazendo os cálculos, só os operários das montadoras produzem em seis horas de trabalho o montante do salário pago aos 140 mil grevistas, durante um mês. Em seis horas de trabalho. Eu, aliás, teria vergonha de divulgar um dado desse se eu fosse da Fiesp.

CELSO - Um outro dado, também importante, é que no balanço das despesas de uma grande indústria automobilística, a despesa com a folha de pagamento não chega a 15% - talvez, não chegue nem a 10 ou 12%. Isso mostra que é fácil e não há nenhum problema maior para as empresas em negociar salário com os operários. O que há por trás de tudo isso é uma política odiosa do governo de tentar encurralar a classe operária, que tem se comportado como setor de ponta da oposição democrática no Brasil.

LEÔNCIO - Esse é um dado pra analisar. Em São Bernardo, o trabalhador lida com empresas ricas e que, efetivamente, podem pagar. Eu tenho a impressão que este é um fator que impulsiona bastante o trabalhador, porque não se trata de um setor, digamos, tradicional, um setor em dificuldade, um setor que está repelindo a mão-de-obra, mas sim de empresas que estão crescendo o que, penso eu, estimula os trabalhadores a reivindicarem sua parcela.

MINO - Desculpe, não vamos esquecer que o que está em jogo é algo mais do que a reivindicação salarial. É esse o problema.

ALMIR - Eu ia dizer ao Leôncio que o ponto nodal da questão não é mais o aumento de salários, embora seja um aspecto dos mais importantes. Mas as duas grandes questões seriam a da garantia contra a dispensa - aquilo que na mesa de negociações tomou o rumo da fixação de critérios, que autorizariam as demissões - mais a representação sindical. E aqui, o Sindicato de São Bernardo rompe efetivamente com a tradição do sindicalismo brasileiro, que não tem enfrentado esses problemas. Por quê? Porque na minha opinião quanto mais alta a taxa de reajuste e de aumento real, maior a probabilidade do incremento do processo de rotatividade. Se os salários não sofrem nem reajuste, nem aumento, por que a rotatividade? Pelo contrário, a estabilidade se torna necessária porque o empregado estável tem mais produtividade. Mas, se há um reajuste de salário acentuado, mais um aumento, a indústria pratica a rotatividade de todas as formas possíveis e com a valorosa contribuição do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Por isso eu senti, na mesa de negociações, que a ruptura se daria na questão da estabilidade e do delegado sindical, porque mais 1% ou mais 2% trocado em miúdos, traduzido em cruzeiros é muito pouco. Se ao invés de 7% tivéssemos 8 ou 9%, traduzindo isso em cruzeiros é muito pouco...


"Nesta greve, quem não deveria estar preocupado em tomar partido, teoricamente, seria o governo"

MALULY -
Considerando que de uma forma unissona, todos nós concordamos que o que menos importava era a reivindicação salarial, pergunto: dentro do problema do direito de greve, se ele amanhã for regulamentado, não se estaria hoje ferindo a pureza desse direito? Não se estaria usando o movimento operária trabalhista, acima daquilo que seria justo que se fizesse? Não se estaria maculando esse direito de greve?

MINO - Aceitando a reivindicação política?

MALULY - Exatamente.

MINO - O senhor quer dizer que a reivindicação política conspurca a pureza...

MALULY - Não, não. Veja bem, eu estou fazendo uma indagação, não estou fazendo uma afirmação.

DIEGO FERNANDES - Eu poderia tentar responder. Eu tenho percebido, nas várias abordagens que cada um dos presentes está fazendo queira ou não está se voltando para a greve, quando a pergunta era por que São Bernardo. Mas, realmente, não se pode separar São Bernardo e a greve. Quando se analisa um movimento dessa envergadura, quando ele tem a característica de um conflito entre o capital e o trabalho as análises tendem a ser, normalmente, pela ótica do capital ou pela ótica do trabalho. E não é de estranhar isso. Quem não deveria estar preocupado em tomar partido, teoricamente seria o Estado que teria o objetivo de ouvir ambas as partes para poder manter essa conciliação de classe. Bom, em vista disso e para tentar recuperar a pergunta inicial, a quem interessa esse estado de coisas hoje, que está acontecendo em São Bernardo?

MINO CARTA - Me perdoe, mas acho um pouco maniqueísta essa colocação de que as coisas podem ser vistas da ótica do trabalho ou da ótica do capital. Nós aqui estamos à procura, digamos, de uma democracia social para este País e não se discutiu aqui o problema do capital. Muito bem, então ao capital é altamente conveniente uma estrutura democrática, que permita a ascenção dos trabalhadores, que liquide com a CLT etc etc etc. Como foi conveniente em outros países do mundo ocidental, que hoje vivem dentro de um regime democrático. Eu acho que para o capital é muito conveniente uma solução democrática, né?

DIEGO - E por aí que eu queria levar minha discussão e por isso é que eu pergunto a quem interessa essa greve. Se a gente for ver do interesse não apenas do metalúrgico, do trabalhador grevista, mas do interesse da grande maioria da sociedade, nessa greve que hoje se limita a São Bernardo nós estamos encontrando exatamente uma lição de democracia. Uma lição daquela democracia que a grande camada, as grandes massas, a grande maioria da população da sociedade brasileira está buscando. Então, a greve não pode ser olhada isoladamente, do mesmo jeito que já foi falado aqui, que São Bernardo não pode ser isolado do ABC, nem isolado do Brasil. Então, a greve está possibilitando que haja, pela primeira vez, a ocasião de colocar a verdadeira democracia na mesa de negociações, a verdadeira democracia na rua.

Foram presos alguns líderes, mas essa greve não se elimina com a prisão de alguns líderes. Existe uma ótica burguesa, uma ótica do capital, elitista, pelo hábito de se ter uma minoria dominando uma grande maioria, segundo a qual se cortando algumas cabeças, ceifando os líderes, isso resolve o problema. A gente tem é que conseguir superar essa visão das coisas e entender que a democracia burguesa não é a mesma democracia que interessa à grande maioria da população. Agora, a possibilidade de conciliar essas duas democracias, é que me parece o interesse dessa mesa-redonda. É o interesse de buscar uma saída leal, uma saída onde não haja derrotados, nem vencedores. Para se chegar a esta saída, é preciso levar em consideração, não apenas a greve em sim, mas toda uma conjuntura criada.

SUPLICY - Gostaria de chamar a atenção ainda para um outro dado. O governo ao tentar quebrar, na sua nascente, esse movimento e essa greve, por meios repressivos de prisão e intervenção, também está tentando cortar o exemplo do que poderia ser um instrumento notável para se resolver alguns problemas prementes da sociedade brasileira. Um dos quais refere-se à crescente disparidade de rendimentos ao nível das empresas, como existe no próprio ABC. Se de um lado os salários-hora dos horistas metalúrgicos é menos de um sexto do salário-hora do metalúrgico norte-americano, por outro lado, a remuneração do gerente geral das grandes empresas no ABC e das próprias multinacionais supera a remuneração do superior executivo americano. E uma das reivindicações importantes desse movimento era justamente a de poder discutir toda a hierarquia de remuneração dentro da empresa.

ALMIR - Eu diria que a reivindicação não era a de discutir a hierarquia salarial da empresa, porque isto me parece um tanto quanto problemático, mas de conhecer a estrutura salarial da empresa, para se poder analisar a questão da rotatividade da mão-de-obra e influir nos sentido de corrigir distorções. O movimento sindical, pelo que eu tenho entendido, não tem sido contra os altos salários, tem sido contra os baixos.

LEÔNCIO - Pois é, eu queria voltar um pouco ao problema da estabilidade. Pode parecer que ela foi uma reivindicação meio extemporânea, mas a verdade é que sem estabilidade não há movimento sindical forte. No momento em que o patronato tem liberdade, como tem no Brasil, do contrato individual e da dispensa individual, não há movimento sindical. Isso é totalmente impossível. E não é à toa que o movimento sindical dos países altamente desenvolvidos se concentra hoje no problema da estabilidade, não só por causa do desemprego. Então, a meu ver esta idéia da estabilidade está ligada a toda uma problemática do poder sindical. Sem estabilidade não há movimento sindical forte.

MINO - Muitos equívocos têm sido cometidos na interpretação da greve, inclusive com a infatigável colaboração da imprensa. Hoje de manhã, ainda, segunda-feira, eu li num órgão de larga difusão a tese de que a passeata, a caminhada pacífica do dia 1.o de Maio, era ilegal. Esse texto, inclusive, continha de alguma maneira uma crítica ao poder, que permitiu a passeata - primeiro proibiu e depois permitiu. Então, essa questão da legalidade é importante. O governo se aferra muito a essa coisa de que ele está cumprindo a lei, não é? Ele é o executor da lei. Agora, veja, analisemos este aspecto: acreditar que é lei uma proibição que, na verdade, não se baseia em lei alguma e muito menos na Constituição, isso vai criando grande confusão na cabeça das pessoas, enfim, na definição da opinião pública.

Um outro aspecto, relacionado com esse equívoco, e é essa a questão da democracia: tende-se a apresentar a greve como um movimento que vai contra o capitalismo, destinado a solapar o capitalismo, o regime capitalista, quando é evidente que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Na verdade, como dizia o Almir, países capitalistas têm democracia e as greves se realizam neles sem a menor preocupação de conceituar se ele é política ou não é política.
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