|
|
|
|
|
São
Paulo, domingo, 11 de maio de 1980
|
|
|
|
|
|
|
|
|
POR QUE SÃO BERNARDO?
|
|
|
|
|
|
Muito se falou sobre
São Bernardo nos últimos quarenta dias. Quarenta dias
de tensões, de expectativa, de inúteis apelos ao entendimento.
Para muitos, a abertura entrou em quarentena em São Bernardo
e todos os propósitos democratizantes emanados de Brasília
foram testados, provando que das palavras aos atos existe ainda
um longo caminho a percorrer. Por isso é importante entender
São Bernardo, para além das circunstâncias de
uma greve, cujas lições precisam ser aprendidas principalmente
por aqueles que chamam para si todo o poder e toda a decisão
sobre a sociedade brasileira. Desta mesa-redonda coordenada pelo
prof. José Augusto Guilhon Albuquerque participam: Mino Carta,
jornalista, diretor de redação da revista "Isto
É"; o deputado federal Jorge Maluly Neto, ex-secretário
do Trabalho, no governo Paulo Egidio Martins; Fernando Henrique
Cardoso, sociólogo, presidente do Cebrap; o deputado estadual
Almir Pazzianotto, advogado do Sindicato dos Metalúrgicos
de São Bernardo do Campo e Diadema; Celso Frederico, professor
de sociologia da Universidade Federal de São Carlos; Eduardo
Matarazzo Suplicy, deputado estadual e professor de economia na
Fundação Getúlio Vargas de São Paulo;
Leôncio Martins Rodrigues, professor do Departamento de Ciências
Sociais da USP; e os ex-metalúrgicos, professores e sociólogos
Diego Antonio A. B. Fernandez e e Moacyr Pinto da Silva, respectivamente
presidente e secretário da Associação dos Sociólogos
do ABC, com sede em São Bernardo.
|
|
|
|
|
|
*
|
|
|
J. A. GUILHON - O objetivo desta mesa-redonda é tentar
responder a uma pergunta talvez impossível: Por que São
Bernardo? Aquela cidade, embora representante de fato um tipo de
industrialização diferente da primeira industrialização
de São Paulo, ela não difere tanto de outras zonas
de alta concentração industrial. Entretanto, nós
estamos percebendo que alguma coisa de profundamente novo está
se passando em São Bernardo, do ponto-de-vista da própria
organização da cidade, da relação das
autoridades com o povo e do ponto-de-vista, sobretudo, do movimento
operário. Por que São Bernardo: Claro, outras perguntas
mais específicas poderão surgir no decorrer do debate.
JORGE MALULY NETO - Eu entendo que temos que sair de São
Bernardo para conhecer São Bernardo. Eu vou relatar uma experiência
pessoal, que explica São Bernardo até certo ponto.
Assim que me formei, fui clinicar numa cidade do Interior do São
Paulo na Alta Noroeste, chamada Mirandópolis, ao tempo em
que a Previdência Social não alcançava o homem
do campo, ainda que na precariedade de hoje. Na década de
60, mais precisamente, aconteceram dois fenômenos que começam
a explicar São Bernardo. Fatalmente temos que incluir a adentrada
no País da indústria automobilística que, concomitantemente,
encontrou os campos na seguinte situação - isto vivido
por mim, lá no Interior de São Paulo.
Nós vimos, naquele início da década de 60,
primeiro, a campanha de erradicação dos cafezais.
Pagava-se para se cortar o pé de café. Não
me esqueço de uma só fazenda que entre um sábado
e um domingo, pôs na rua - este é o termo - duzentas
famílias de uma só vez. Naquele tempo a própria
jurisprudência do meeiro do café não dava a
ele os direitos da lei trabalhista e, historicamente, foi um promotor
daquela comarca de Mirandópolis que conseguiu a primeira
condenação por ruptura daquele contrato de trabalho.
Com a erradicação dos cafezais, que se iniciou na
década de 60, e com um processo de descapitalização
dos campos e a entrada do boi no Oeste de São Paulo principalmente,
iniciou-se o êxodo rural. Esse êxodo expulsou milhares
de famílias, primeiro para as pequenas, depois para as médias
e grandes cidades, e que foi levando esta população
rural, criando e aumentando cada vez mais a migração
que deu origem às grandes concentrações urbanas.
Famílias inteiras, saindo da zona rural, vieram para as cidades
maiores em busca de um mercado de trabalho que se abria e de melhor
qualidade de vida. Então essa gente passou a morar em casas
de alvenaria, a ter hábitos um pouco melhores até
que o fenômeno da superpopulação urbana criasse
as condições de afavelamento que hoje existe.
Portanto, o fenômeno de São Bernardo se inicia aí,
na década de 60, com esses dois fenômenos, e, depois,
graças ao processo de industrialização, também
a organização sindical se inicia. E se inicia de uma
forma diferenciada, melhor analisada, melhor estruturada, melhor
dirigida e que passa a se preocupar com as grandes testes e os grandes
problemas do operariado brasileiro. E foi isto que muitas vezes
me levou - como secretário do Trabalho - ao diálogo
com estas lideranças no sentido de nos conscientizarmos a
três níveis, porque o fenômeno São Bernardo
não se pode compreender hoje apenas e tão somente
como de responsabilidade do sindicalismo brasileiro. Nele deve estar
incluído necessariamente o empresariado e, principalmente,
o governo que hoje vive dentro desse problema afundado até
à cabeça. Creio que posso chamar aqui o testemunho
do Suplicy que me honrou, certa vez, numa reunião que fizemos
em Palácio tentando levar num diálogo aberto e franco
entre governo e lideranças operárias.
Muita gente desconhece a verdade sobre São Bernardo do Campo.
O empresariado estava despreparado para esse tipo de atuação
da classe operária, omisso, letárgico e ausente muitas
vezes, com raras e honrosas exceções. O governo também
não entendeu e não aceitou. Foi pena. São Bernardo
servirá de análise, de estudo profundo, hoje e sempre.
São Bernardo não vai parar aqui. Enganam-se aqueles
que pensam que resolvendo o problema de uma greve hoje em São
Bernardo se resolveu o todo. Daí, desde logo me permitam
um elogio ao "Folhetim" por começar, talvez, aqui
um balanço daquilo que está acontecendo.
MINO CARTA - Eu apreciei muito essa análise do deputado
Maluly, mas o que me interessa é o que é São
Bernardo hoje, mais do que as origens. "Por que São
Bernardo? É uma pergunta fácil de responder, até
mesmo com exemplos históricos de outros países que
enfrentaram situações semelhantes a que estamos vivendo.
Por exemplo, citando a Itália, por que Turim? Porque o movimento
operário italiano começou a se fortalecer em Turim.
Aí já estou falando do fim do século passado,
que nós estamos vivendo com um atraso enorme. No caso específico
estaremos falando de quase 100 anos de diferença, sendo que
a meu ver o País vive até situações
anteriores à revolução francesa em certos casos,
em certos níveis, em certas regiões. Mas, enfim, São
Bernardo é hoje o coração da indústria
brasileira e é, de certa forma, o coração da
economia brasileira. Então, eu acho que automaticamente isso
oferece a resposta.
MALULY - Mino, você me permite só um pequeno
aparte?
MINO - Claro.
MALULY - Eu, realmente, não quis ir mais longe no
porquê... O que é São Bernardo senão
o poder de organização do novo sindicalismo brasileiro,
que leva mensagens novas que ainda não foram entendidas?
Atrás desse novo sindicalismo está uma tese: o equilíbrio
entre o capital e o trabalho, a melhor distribuição
de rendas, a diminuição do poder aquisitivo brasileiro,
a deficiência da qualidade de vida que está dentro
de todo esse contexto reivindicatório do movimento São
Bernardo. Não é apenas uma reivindicação
salarial, eu acho que o problema salário é uma das
etapas dentre as muitas que estão embutidas no fenômeno
São Bernardo. Dentro de São Bernardo está ainda
o problema do direito de greve ainda não totalmente regulamentado...
MINO - Totalmente ou nada (risos).
MALULY - Ou nada, diria.
MINO CARTA - Enfim, o que eu queria dizer, é que
é natural que em São Bernardo o trabalhador comece
realmente a ganhar a consciência da sua força, inclusive,
a partir de um raciocínio muito simplista, pelo qual parar
a Volkswagen, parar uma grande indústria do porte de uma
Mercedes, tem um efeito muito maior, digamos, do que parar uma fundição
de arrabalde. O operário de São Bernardo começa
a perceber o alcance do seu papel dentro da economia do País
e, portanto, reclama o seu lugar.
Concordo que o problema não está meramente relacionado
com o aumento de salário. O que está em jogo em São
Bernardo, neste lugar simbólico, é um problema político,
essencialmente político. O operário de São
Bernardo, hoje, está reclamando por espaço. Um espaço
que sistematicamente lhe foi negado. O operário de São
Bernardo, como todo trabalhador brasileiro, é limitado como
cidadão por uma lei fascista, a CLT, por toda uma série
de leis que foram se adicionando ao arcabouço inicial criado
no tempo do Estado Novo.
Hoje poderíamos não ter mais a greve de São
Bernardo se tivesse havido, por parte do governo e do patronato,
a disposição para uma negociação muito
mais em torno das reivindicações políticas
do que em torno da reivindicação salarial. Por outro
lado, o que é muito evidente, a meu ver, é que o governo
procurou atingir São Bernardo e ceifar lideranças
autênticas, verdadeiras, que nasceram ali, exatamente porque
o governo não deseja a solução dos problemas
básicos. Acredito que, por parte do governo, haja até
um grau bastante grande de desconhecimento da real situação
de São Bernardo, que determina uma insensibilidade acentuadíssima
em relação ao problema.
Mas, isso não importa. O que importa é o resultado.
Eu não estou fazendo uma análise sociológica,
o fato é que tudo o que está acontecendo corresponde
a um plano, talvez até não muito antigo, recente -
eu creio - no sentido realmente de interromper essa tentativa de
evolução do trabalhador de São Bernardo.
MALULY - Aí, Mino, é que está o erro
de quem assim interpreta as coisas, os problemas e a reivindicações...
MINO - O senhor concorda com esta análise?
MALULY - Eu concordo com a análise, mas não
concordo com aqueles que interpretam o final da sua exposição
e querem ceifar ou tolher os trabalhadores, por uma visão
errônea do problema.
EDUARDO MATARAZZO SUPLICY - Eu gostaria de fazer algumas
reflexões, além das que já foram colocadas
pelo Jorge Maluly e pelo Mino Carta, Mais do que em qualquer outro
local, em São Bernardo, a população, especialmente
a nova geração de trabalhadores encontrou condições
propícias para obtenção de um grau de consciência
excepcional sobre a realidade social e econômica brasileira.
Se nós hoje andarmos por São Bernardo e Diadema e
compararmos com outros locais do Brasil, vamos verificar que dificilmente
há outras cidades com mais indústrias. E ao mesmo
tempo encontramos diversos centros de educação, ou
centros de treinamento ou locais onde os trabalhadores hoje se reúnem.
Verificamos que em poucos outros lugares houve economias de escala
ou oportunidades de investimento, tão propicia para a construção
e o desenvolvimento de indústrias, como naquela região.
Se, nos anos 50 e nos anos 60, para lá se dirigiram tantos
brasileiros provindos de tão diversas regiões, e se
eles encontraram uma situação muito diferente para
suas vidas ao ingressar nas novas indústrias, o que ocorre
é que a nova geração de trabalhadores nos anos
70 e agora, início dos anos 80, encontrou uma situação
muito diferente daquela de seus pais ou tios. Essa nova geração
passou a questionar muito aquilo que foi a experiência de
seus pais e tios. E talvez em São Bernardo e nos seus arredores,
é que essa geração pôde perceber a enorme
disparidade que havia entre o esforço de trabalho de si próprios,
desses trabalhadores jovens e, mais ainda, daquilo que fizeram seus
pais e tios, com o progresso que era alcançado por outro
lado pelos setores mais beneficiados no progresso nacional.
Foi a partir dessa consciência e também fruto de alguma
educação um pouco maior, ou por estarem sendo atingidos
pelos meios de comunicação, que começaram a
despertar algum questionamento sobre o por que daquilo. O por quê
de tanto esforço, de tanto progresso, ao lado de condições
de vida de favelados ou de milhares de trabalhadores vivendo em
situações extremamente precárias. Nessas condições
é que surgiram essas lideranças que despontaram no
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e que,
imediatamente, encontraram uma equipe. Uma equipe que primeiro teve
algumas dezenas de pessoas e hoje tem centenas de pessoas envolvidas
diretamente na organização dessa greve. Dificilmente
houve outra greve no Brasil tão bem organizada quanto essa.
Uma greve sem piquete, uma greve totalmente pacífica e muito
consciente daquilo que se deseja, não apenas em termos de
reivindicação econômica propriamente dita, mas
em termos de uma reivindicação por uma maior participação
nas decisões de tudo aquilo que lhes diz respeito na sua
vida cotidiana.
"Ali se dá
uma convivência nada pacífica entre o Brasil das multinacionais
e o Brasil dos trabalhadores"
CELSO FREDERICO - Há uns dias atrás eu fui
ver o filme "Bye, Bye, Brasil" e lembrei de São
Bernardo. O filme mostra a trajetória de um grupo de artistas
em direção a uma cidade, Altamira. Eles vão
atrás de um Brasil brasileiro, que não existe mais.
Então, o filme nos põe diante de uma realidade muito
estranha. O Brasil é visto como uma mistura de civilização
e de barbárie, de capitalismo selvagem e de folclore em decomposição.
Sem entrar no mérito do filme, que não é o
caso aqui, há uma idéia implícita com a qual
eu não concordo. No filme, Altamira é apresentada
como uma síntese do País. Eu acho que não é,
e não pode ser. A síntese não é uma
simples mistura de elementos discrepantes. A síntese, ao
contrário, é um produto novo, é o resultado
final do processo contraditório. Nessa perspectiva eu vejo
São Bernardo como um local privilegiado para quem quiser
conhecer a realidade social do País.
São Bernardo não é um simples espelho, que
se limita a refletir passivamente a nossa realidade. Ao contrário,
olhar para São Bernardo é olhar para uma lente que
amplia e exaspera ao máximo os aspectos mais característicos
da nossa sociedade. Então, São Bernardo é,
ao mesmo tempo, a capital do automóvel e a capital do capital
estrangeiro, uma cidade que dispõe de um sindicato cuja arrecadação
faz inveja a muitas prefeituras do Brasil. Por outro lado, é
habitada por uma população basicamente operária,
que vem passando por muitos anos de arrocho salarial e que, dadas
as condições urbanas, está vivendo um processo
de favelamento crescente. Ali se dá uma convivência
nada pacífica entre o Brasil das multinacionais e o Brasil
dos trabalhadores, e, nesse sentido, a história de São
Bernardo é uma antecipação da história
brasileira.
No meu modo de ver as coisas, a república de São Bernardo
não é um simples caso à parte, não é
uma situação atípica. São Bernardo se
transformou no centro nervoso do País. Um local onde se dá,
em grau máximo, a exasperação das contradições
e das lutas sociais que, afinal, irão superar essas contradições.
MOACIR PINTO DA SILVA - Quando recebi o convite para este
debate, não sei se porque eu sou do ABC, um pouco de bairrismo
entrou na conversa. Por que São Bernardo? Pra mim já
surgiu outra pergunta, atrás dessa: por que não Santo
André e São Caetano também? Parecem claras
as discrepâncias com relação ao que conseguiu
o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo em termos
de organização da categoria, comparado, inclusive,
com Santo André, que viria em segundo lugar, deixando longe
São Caetano. Aceitando isso como ponto pacífico e
aceitando, com uma certa resistência, a explicação
de que em São Bernardo o sindicalismo conseguiu avançar
até esse ponto devido à presença da indústria
automobilística, eu gostaria de refletir um pouco mais a
respeito do todo do movimento social no ABC.
Não devemos, nem podemos, mistificar São Bernardo
hoje. Por exemplo, a chamada grande política no ABC, a chamada
política de eleição, a política de partidos,
ainda hoje é feita à moda tradicional. Os trabalhadores
ainda não chegaram nesse ponto, os trabalhadores ainda não
mexeram nessa esfera. Tanto que na Câmara Municipal de São
Bernardo, que eu me lembre, não há nenhum representante
saído do movimento popular. Inclusive, na última eleição,
nós do ABC trabalhamos e votamos para candidatos de forra
do ABC, o que é um fato bem significativo.
Estou colocando isso de introdução pra dizer que nós
não devemos mistificar. O movimento operário ganhou
um certo peso, estamos avançando paulatinamente pra novas
conquistas. Hoje, estamos vivendo um momento em que a virgindade
da lei trabalhista tem que ser quebrada e o dono da virgem está
relutando ao extremo. Por isso esse impasse. Não é
um impasse de miopia política, de falta de clareza política,
de falta de lideranças políticas. É um impasse
porque a burguesia se acomodou a essa situação no
País. De certa forma, nesse período mais duro de ditadura,
ela transferiu para o aparelho do Estado a responsabilidade de resolver
o problema operário e hoje ela continua de braços
cruzados esperando. E o Estado tem se prestado e está se
prestando a isso.
Mas eu gostaria de pegar o outro lado da coisa, que é o movimento
no ABC como um todo - talvez excetuando São Caetano, uma
cidade onde a urbanização conseguiu expulsar o grosso
da classe operária. São Caetano, por um processo quase
que geográfico natural de urbanização, foi
expulsando o pessoal de menor renda para o restante do ABC, para
Diadema, pra Mauá, para os arrabaldes de Santo André,
e para os arrabaldes de São Bernardo. Então, o que
aconteceu? São Caetano se pequeno-aburguesou. Então,
nesse sentido, São Caetano quase não entraria nisso
que eu vou dizer. Mas se formos analisar direitinho o movimento
de base em Santo André, ele é muito mais consequente
do que São Bernardo, está muito mais avançado.
Só pra se ter uma idéia, o apoio hoje à greve
em São Bernardo está sendo muito melhor feito nos
bairros de Santo André.
GUILHON - Está acontecendo uma coisa curiosa aqui.
Enquanto existe uma teoria oficial conspiratória, tanto que
quase duas dezenas de lideres estão presos por incitamento,
todo mundo aqui está concordando que São Bernardo
se explica quase que exclusivamente por causas estruturais. Eu não
ouvi falar em lideranças, se não pra dizer que elas
não pesam muito, e que São Bernardo não tem,
ou não teria, digamos, expressivo movimento de base, nem
movimento político.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO - Não concordo inteiramente
com essa possibilidade de que São Bernardo se explique por
razões puramente estruturais. Ali houve uma fusão
de vários fatores e o fenômeno que estamos assistindo
agora, em São Bernardo, na verdade é a culminação
de um largo processo que - eu vou dizer, talvez, uma heresia - me
faz lembrar uma época que eu vivi muito de perto, que foi
maio de 68 na França. Não tem nada que ver, na verdade.
Mas era uma explosão de alguma coisa que não se entendia
muito bem. Aqui nós estamos também dentro da explosão
de alguma coisa que não se entende muito bem, porque não
é novo que a classe operária aja.
Como eu sou um pouco mais velho do que a maioria, eu me recordo
do ano de 1953, de cujas greves eu participei também. E a
classe operária em 53 reagiu no Brasil violentamente. A luta
daquela época foi tremenda, dos têxteis, dos gráficos,
do pessoal da alimentação, dos vidreiros, alguns dos
líderes estão vivos ainda aí. Só que
não era em São Bernardo, era no Brás, na Mooca,
no Ipiranga, em Vila Prudente. Em 57 se repetiu isso. Depois dos
anos 60 a luta se deslocou para o setor estatal da economia e é
aí que o populismo entrou mesmo. Em 53 e 57 não foi
populismo nenhum, foi luta operária, direta, contra os patrões
que eram os patrões não multinacionais. Portanto,
a classe operária lutou o tempo todo - e está lutando
de novo, aqui, em São Bernardo e em vários lugares.
Mas essa luta tem outras dimensões. Por um lado, pra dizer
uma coisa bastante repetitiva, os operários estão
pedindo lá hoje não é tanto o salário.
O salário vai no bolo, mas não são os 7% de
aumento que estão em jogo, nem do ponto de vista dos operários,
nem dos patrões. Eles estão querendo dignidade. Quando
o Lula disse que "os patrões vão se ajoelhar
diante dos trabalhadores", isso pego ao pé da letra
pode parecer uma basófia. Mas se você interpreta um
pouco o que ele está dizendo é que é preciso
entender que nós somos iguais. O que os operários
de São Bernardo simbolizam, é uma luta muito mais
ampla, é uma luta por um lugar no solo da cidadania. O operário
está dizendo pra todos nós, está dizendo ao
coronel que está na praça, ao senador que está
na praça, ao intelectual, ao deputado: "Nós somos
iguais, nós queremos falar por nós mesmos".
É bom que se repita. O movimento de São Bernardo é
absolutamente democrático, nos seus propósitos, na
sua organização, em tudo o mais. Diante dessa demanda
democrática, qual é a resposta da autoridade e do
empresariado? É o não. Nós não fizemos
outra coisa nesse mês que já aí vai, e muitos
dos aqui presentes fizeram diretamente, do que dizer: dialoguem,
conversem. E eles dizem que não. Por quê? Por causa
de 7%? Não. Dizem não, pra defender uma ordem perempta,
ou seja, velha. Pra defender uma ordem que não é possível
mais subsistir, que é justamente uma ordem em que não
se aceita o operariado como interlocutor legítimo. É
isso que está em jogo.
MALULY - Acho que essa é a grande verdade de São
Bernardo. A grande reivindicação é esta, no
meu entendimento.
FERNANDO - Agora, a questão: por que foi em São
Bernardo? Por um lado, por causa do que já foi dito aqui.
Eu concordo que tem o ABC todo - por que não foi em Santo
André? E também concordo que há desníveis:
é porque tem o Lula em São Bernardo. O Lula não
é uma coisa que se possa pôr entre parênteses.
Ele expressa muito bem esse anseio e foi, de alguma maneira, o líder
operário que, a meu ver, com mais capacidade expositiva disse
o que o operário comum sente. A grande virtude da liderança
do Lula é que ele formula inteligentemente o senso comum.
É isso o que o Lula faz. E isso é importante.
Além disso, há outro dado que explica por que São
Bernardo. É que, de repente, como que toda a sociedade civil
se vê ali confluindo em São Bernardo, numa história
de luta que vem de antes. Antes não foi a SBPC durante algum
tempo? Depois não foi a luta pela anistia? E não teve
a Igreja nesse tempo todo ocupando o espaço? E os estudantes?
Quer dizer, de repente fundiu naquele movimento esse conjunto. Também
não se pode entender São Bernardo sem a Igreja. Não
no sentido da teoria conspiratória, segundo a qual "o
bispo incita e o cardeal comanda". O bispo não incita
nada; o bispo, na linguagem católica, testemunha. E o cardeal
não comanda; o cardeal simplesmente procura entender o que
está acontecendo. A Igreja permitiu que esse movimento se
desenvolvesse dentro de uma estrutura que é respeitada -
a estrutura da Igreja. Porque, antes de 53, quem se colocava junto
dos operários era "comunista".
Então, por que São Bernardo? Por esse conjunto de
fenômenos.
Quero só complementar com uma coisa. Tenho um certo convívio
com o pessoal de São Bernardo, já de alguns magros
anos - na verdade, vem da época da campanha eleitoral, quando
eu fui surpreendido porque o Lula me pediu que fosse lá pra
conversar e tal; foi a primeira vez que eu fui a São Bernardo.
Muito bem. Conheço, digamos, por nome, como vários
de nós aqui conhecemos os líderes hoje de São
Bernardo. O Lula que é esse fenômeno da natureza que
nós aqui mencionamos. Os outros não são. Entretanto,
eu vi nas assembléias de São Bernardo, todos eles,
os que comandaram, os que dirigiram, os que foram substituindo o
Lula, funcionando na assembléia com uma capacidade de comando
e com um desempenho de dar inveja. De dar inveja! Não é
que eles sejam fora de série. São gente comum, mas,
no conjunto, esse pessoal aprendeu a se comportar em massa, numa
sociedade que é urbanizada. Eles aprenderam a lidar com movimento
de massa. Então, não adianta a teoria conspiratória.
Não é o Lula. Não são nem dez, são
realmente centenas. E isso a mim me surpreendeu, apesar do convívio
que tinha. Me surpreendeu até o ponto de me comover. Ali
está um pedaço da sociedade que avançou bastante,
apesar do descompasso com o resto do setor político, etc,
etc.
MOACIR - Eu fui metalúrgico nove anos, hoje sou intelectual
(risos). Hoje sou professor. Como eu e outros chegamos a isso? Na
escola do sindicato, fazendo supletivo porque as próprias
empresas precisavam do supletivo, fazendo o Senai, porque as empresas
precisavam do Senai. Então, eu como todo o pessoal aprendemos
a ler e a escrever.
"A ação
repressiva do governo está estimulando aquilo que o regime
mais teme: a luta de classes"
MINO -
Creio que toda a ação do governo, do regime, toda
essa ação repressiva está estimulando, claro,
a criação de novas lideranças e essa organização
toda, enfim. Está estimulando também por outro lado,
aquilo que o regime mais teme, que é a luta de classes, que
já está aí, cada vez mais alimentada por esse
tipo de ação que o governo conduz. Agora o governo
é fisiológico, ele é naturalmente casuísta,
não tenta imaginar como será o amanhã. Então,
casuísticamente, a intenção é ceifar
essa liderança do Lula. Casuísticamente o interesse
é conter São Bernardo.
SUPLICY - Seria importante também nós perguntarmos
porque se interrompeu de forma quase que drástica um diálogo
que o governo até tentou? O governo desde a administração
Geisel, com a participação do governo Paulo Egydio,
e o deputado Jorge Maluly mencionou o diálogo que houve no
Palácio dos Bandeirantes, em que o governador foi uma espécie
de hóspede de um diálogo do ministro Mário
Henrique Simonsen com cerca de 50 líderes sindicais. E o
deputado Jorge Maluly contribuiu para que esse encontro houvesse.
Mas, eu me lembro que, durante a própria administração
Geisel, esse diálogo não continuou, apesar de por
inúmeras vezes ter sido reclamado. Houve, a partir da greve
de 79, um distanciamento crescente da própria administração
Paulo Egydio, do ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto, e do próprio
ministro Simonsen que não mais dialogaram frente a frente
com os trabalhadores, continuando, porém, o seu diálogo
cotidiano com os empresários.
Durante a administração Figueiredo quase que se esboçou
novamente esse diálogo. O próprio Mino Carta, nessa
semana ainda mencionou a tentativa de diálogo entre o ministro
Delfim Neto com o deputado Almir Pazzianoto, Walter Bareli, Arnaldo
Gonçalves e Luis Inácio da Silvas. Ora, o que me pareceu
uma das razões para a interrupção, para o fracasso
desse diálogo, foi a falta de coragem do próprio empresariado
de participar dele. E também do governo porque, nessa hora,
pra resolver essa greve, seria necessário a negociação,
seria necessário que o governo fosse somente o catalizador
do diálogo direto que precisa haver...
FERNANDO - Você me dá licença para um
aparte? Eu estou convencido de que o governo não quis, em
nenhum momento, resolver essa greve. Não quis.
SUPLICY - O governo e os próprios empresários,
em sintonia total.
FERNANDO - Realmente não houve nenhuma vontade de
negociar. Nem sequer houve um sinal, o mínimo sinal no sentido
da negociação. Mesmo quando não está
em jogo nada a não ser a necessidade de dialogar. Nem isso
eles aceitam. Ora, como esta gente de boba não tem nada,
e como esta gente sabe perfeitamente, eu imagino, tudo o que nós
sabemos e talvez outras coisas mais, houve uma decisão política
aí, de fazer o enfrentamento, de cortar pela raiz a possibilidade
de uma democratização mais substantiva.
Mas quem vê na rua o que nós estamos vendo hoje em
São Bernardo, começa a meditar. Porque você
veja, o governo, na verdade, se aferrou a uma decisão do
Tribunal do Trabalho. Só que essa decisão, todo mundo
sabe, foi arrancada à força. Houve uma primeira decisão
e, depois, uma segunda desdizendo a primeira. Então, a legalidade
que o governo quer manter, é uma legalidade na qual ninguém
acredita, porque falta legitimidade. Pois bem, ele se aferra a essa
pseudolegalidade dizendo: "Não. A Polícia está
na rua ou mesmo o Exército está envolvido nisso, não
é pra defender o capital, é pra defender a lei."
Ora, quem é que acredita nisso? Quem é que pode acreditar
nisso quando essa lei não tem legitimidade, não tem
enraizamento, não tem consenso, não deriva de um mínimo
acordo entre as partes: Então, o que o operário está
vendo hoje na rua é a Polícia batendo nele, porque
ele quer negociar com o patrão e não consegue.
GUILHON - Eu queria aproveitar a chegada do deputado Almir
Pazzianoto. Pelo fato de ter tido contato bastante direto com o
empresariado nessa conjuntura, o que ele diria, comparando esse
amadurecimento dos operários de São Bernardo com a
posição dos empresários? Curiosamente, aqui
nessa discussão, quando se falou em São Bernardo um
ator ausente foi o empresário. E quando mencionado, foi apenas
pra dizer que ele não estava tendo uma atuação
como membro da sociedade civil.
ALMIR PAZZIANOTO - Eu próprio tomei conhecimento
mais direto da situação de São Bernardo, e
das suas aspirações, precisamente no ano de 1970.
E tenho a impressão que esse ano é marcante para o
estudo da realidade de hoje. Em 1970 eu era já há
alguns anos advogado da Federação dos Trabalhadores
nas Indústrias Metalúrgicas. Mecânicas e de
Material Elétrico do Estado de São Paulo, à
qual o sindicato de São Bernardo obviamente é filiado.
Após algumas conversas com diretores da época, chegamos
à conclusão de que São Bernardo não
poderia mais encaminhar as reivindicações dos seus
trabalhadores atrelado a diretrizes da Federação,
considerando as condições específicas das suas
indústrias e as condições peculiares dos seus
trabalhadores, que tinham reivindicações diferentes.
Em 1970 eu participei de uma grande assembléia realizada
num cinema em São Bernardo, cujo nome eu não me recordo.
Uma assembléia onde acabou se discutindo a tese da unidade
ou da divisão prevalecendo a tese da unidade, porque se entendia
que uma medida em separado de São Bernardo implicaria num
divisionismo. E essa tese tem sido reiteradamente defendida pelo
pessoal que segue a linha política da Federação,
que não consegue entender que não há divisionismo
algum quando uma categoria reivindica em função das
suas condições específicas de trabalho e de
emprego. Em 1970 fomos, o Sindicato e a sua diretoria, repelidos
na pretensão de encaminhar suas reivindicações
separadamente.
"São Bernardo representa
uma tentativa séria de criação de um novo estilo
de atuação sindical"
Em 74, o Sindicato realizou
o primeiro Congresso dos Trabalhadores Metalúrgicos de São
Bernardo do Campo, debaixo de um clima de absoluta tensão
e pressão: na realidade, ninguém acreditava que esse
congresso viesse a se efetivar. Devo lembrar que várias pessoas
convidadas para proferirem palestras nesse congresso, por uma razão
ou por outra acabaram se recusando e afinal, a "carta de São
Bernardo", como se chamou o documento tirado do Congresso foi
considerado um documento de vanguarda na vida sindical. Esse documento
afirmava a necessidade de uma ruptura com o velho sistema sindical
brasileiro, a necessidade da criação do novo movimento
sindical, as teses de autonomia, de liberdade sindical e foi, durante
algum tempo, uma espécie de bandeira de luta do sindicato
de São Bernardo.
Em 75, o Sindicato fez a sua primeira concreta tentativa de estabelecer
uma diferença no encaminhamento das reivindicações
coletivas. Trataríamos da questão salarial num determinado
momento e das questões específicas de São Bernardo
num outro momento, reivindicações como estabilidade
e assim por diante. O processo foi bloqueado na Delegacia Regional
do Trabalho de São Paulo, a pedido ou por determinação
- não sei estabelecer a diferença - da Fiesp, ou num
conluio entre Fiesp e Ministério do Trabalho.
O fato é que nunca houve uma resposta ao propósito
do sindicato de São Bernardo de negociar, diretamente com
o patronato, as questões específicas de sua base territorial.
Não se aceitava aquilo que é básico no direito
existente, que é a autonomia de cada sindicato dentro da
sua base territorial. E a Federação dos Trabalhadores
continuava capitaneando um grande dissídio de trinta e tantos
sindicatos, fazendo acordo ou encaminhando dissídio, mas
sem nenhuma atenção às reivindicações
fixadas pela assembléia dos trabalhadores de São Bernardo
do Campo.
Em 1976 o Sindicato conseguiu uma primeira vitória, embora
o Tribunal Regional do Trabalho tenha negado o requerimento de desapensamento
do dissídio de São Bernardo, do dissídio comum
patrocinado pela Federação, um dissídio onde
a Federação se apresenta irregularmente, ilegalmente,
como patrocinadora das reivindicações de todos os
demais sindicatos. E ela não pode fazer isso, ela representa
apenas aos inorganizados.
Embora o Tribunal Regional tenha indeferido, como de hábito,
a pretensão do desapensamento do nosso dissídio para
um exame individualizado, como nós estávamos no dissídio
como parte, mas não aceitamos o acordo homologado, a sentença
do Tribunal em relação a nós tornou-se recorrível.
Fomos ao Tribunal Superior do Trabalho e pela primeira vez conseguimos
que as nossas reivindicações fossem examinadas, na
esfera judicial, em separado. E tivemos o deferimento de algumas
reivindicações que não constavam da pauta dos
demais sindicatos. Uma pequenina vitória, mas de qualquer
forma marcante. Em 78 tivemos a primeira greve, após o julgamento
do dissídio. 79 uma nova greve e agora em 80.
Eu não tenho dúvida nenhuma em dizer que durante todos
esses 10 anos houve um acumpliciamento entre patronato e Fiesp para
sufocar a aspiração de soberania do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema. Há
uma cumplicidade, há um conluio e, evidentemente, à
medida que os anos passam mais a categoria se convence, se conscientiza
de que ela tem esse direito, que, aliás, a lei lhe assegura;
apesar de todo o seu espírito corporativista, fascista, a
lei ainda lhe assegura esse direito a um tratamento autônomo.
Também subscrevo aquilo que o Fernando Henrique acaba de
dizer: não se concedeu este ano, a São Bernardo do
Campo, sequer a possibilidade de um empate na luta pelas reivindicações
dos seus trabalhadores. Desde o princípio das negociações
nós verificamos que os representantes do Grupo 14.o - que
não tem nada a ver com São Bernardo, porque são
representantes de indústrias que não estão
lá localizadas - que esses homens foram para a mesa de negociações
dispostos ao endurecimento mais absoluto, total.
O sindicato de São Bernardo tinha uma única alternativa:
fazer um mau acordo. E no fazendo um mau acordo, é óbvio
que a liderança que está lá consolidada ficaria
comprometida diante do trabalhador. Ou faz um mau acordo ou vai
para o impasse, sendo que, no impasse, o Estado, mais uma vez tomaria
posição à retaguarda do patronato. E hoje já
nem está mais à retaguarda, está na vanguarda,
na proa dos acontecimentos, reprimindo violentamente toda e qualquer
manifestação dos trabalhadores.
São Bernardo, enfim, representa uma tentativa séria
de criação de um novo estilo de atuação
sindical no País, rompendo com a estrutura que está
fixada por essa legislação. E esta nova tentativa,
no meu entendimento, só será admitida pelo sistema,
pelo governo, se for uma tentativa dentro daquilo que o governo
considera tentativa bem comportada, dentro dos limites que o sistema
estabelece para coação sindical. O ano passado, foi
dado o recado, após a intervenção. Feita a
intervenção, destituída a diretoria, recolocou-se
a diretoria na esperança de que passassem a ser homens bem
comportados. Um sindicalismo moderno, porém, bem comportado.
Um sindicalismo moderno, porém, atento àquilo que
seria a determinação governamental. "Casa-se
com qualquer um desde que seja com o José", como diz
o deputado Maluly. Não sendo assim, o confronto seria absolutamente
inevitável.
MALULY - Almir, sem querer interromper sua brilhante exposição,
mas aqui se levantou a questão: onde o governo, onde o patronato,
enfim, desejam chegar em relação ao problema atual?
Suponhamos que seja uma estratégia governamental, ou da própria
Federação, de quem quer que seja, levar até
às últimas consequências essa radicalização
para uma exaustão do movimento que entraria numa estafa e
por si só, se desmancharia. E nisto tudo viriam os resultados
da perda dos dias de greve, uma perda salarial, uma perda de reivindicações.
Daí talvez, alguém imaginasse (aí vai a minha
grande indagação) que cairiam no descrédito
as lideranças e o movimento em si e toda uma filosofia que
existe atrás dele. Você entende que essa hipótese
possa, de alguma forma estar acontecendo?
ALMIR - Deputado, isso para mim é mais do que uma
hipótese. Isso para mim tem um profundo sentido de realidade.
E a tentativa de quebrar um sindicalismo que fala em garantia de
emprego, em representantes sindicais dentro das empresas. Mas é
uma tentativa, também, de liquidar as lideranças atuantes
e, eu diria, uma das raríssimas lideranças que nós
temos presentes hoje no País. Mas, é evidente o equívoco
do governo...
MALULY - Ah, isso é o que eu queria ouvir.
ALMIR - É evidente, e isso é uma manobra mal
pensada e mal engendrada. Ela pode ser uma manobra bem feita em
termos militares - coloca-se a tropa na rua, os esquadrões
se deslocam, apanham pela retaguarda etc. Mas o movimento não
se esgota aí. Eu não vejo como o governo possa alcançar
êxito, ao contrário. Se a lei vigente for aplicada
com todo seu rigor, os atuais líderes vão ficar impedidos
durante um bom tempo de voltar. Até imagino que seja realidade
aquilo que vem se propalando, que muitos desses trabalhadores dispensados
não encontrarão novamente emprego na região.
Mas, acontece que os líderes depostos estão insistindo
nisso que é o homem e sua circunstância: se não
for um José o líder, será o Pedro; porque as
condições naturais de trabalho ensejam o aparecimento
de lideranças sucessivas e nós estamos no bojo desse
movimento.
MALULY - É preciso então, que se compreenda,
que o movimento não cessa por esta ou por aquela razão,
por essa ou aquela estratégia que pode ter um resultado momentâneo,
mas, historicamente, o movimento deve persistir e continuar. É
isto o que entendi da sua resposta.
ALMIR - Em São Bernardo, mais do que em qualquer
outro lugar do País, o sindicalismo é um fenômeno
absolutamente natural.
"Procuramos que o patrão
conhecesse a verdade do operário, e o operário a do
patrão e ambos a do governo"
MALULY -
Eu não queria chegar aí, mas o Suplicy me citou e
é preciso que eu coloque, porque tive numa certa oportunidade
uma pequena responsabilidade dentro desse processo. Eu assumi uma
secretaria de Estado quase que inexistente, sem nenhuma mensagem,
sem nenhuma doutrina, sem nenhum conteúdo filosófico.
Eu procurei dar a ela esse contexto. Procuramos, numa primeira fase,
a conscientização, ao mostrar o caminho ao próprio
empresariado, ao mostrar as lideranças a sua responsabilidade,
dialogando, fazendo um entendimento entre elas. Procuramos que cada
um conhecesse o lado oposto da sua verdade. Que o patrão
conhecesse a verdade do operário, e o operário conhecesse
a verdade do patrão. E ambos conhecessem a do governo e o
governo conhecesse a de ambos e assim por diante. Para que, de uma
forma não abrupta, as conquistas sociais se fizessem das
bases para cima e não paternalisticamente, porque nada virá
de cima para baixo, que permaneça historicamente.
FERNANDO HENRIQUE - Mesmo os mais informados sobre São
Bernardo não imaginariam que fosse possível uma greve
durar mais de 30 dias, não imaginariam que fosse possível
uma greve sobreviver depois de os líderes estarem presos.
A verdade verdadeira é que a greve não foi conduzida
por ninguém em termos partidários. Não houve
partido dirigindo. Nem partido, nem organizações.
O fenômeno foi tão maior que essas coisas desapareceram
na prática de uma fraternidade muito grande. E se compreendeu
que, num dado momento, há um partido que é maior que
esses pequenos partidos, que é o partido da democracia, da
necessidade de fazer com que o trabalhador exista. Não por
bondade nossa, porque ao dizer "não" ao trabalhador,
o governo diz "não" a nós, diz "não
aos empresários; o mesmo governo que passa pito em empresário,
vai passar com mais força ainda. E os intelectuais, se estão
lutando pelo trabalhador, estão lutando por si. Em São
Bernardo, até mesmo as diferenças partidárias
se transformaram em coisa pequena.
Vamos imaginar agora que a greve termine - a greve um dia termina;
o destino de uma greve é acabar, não é isso?
Mas acaba o quê? Acaba a raiva do operário que se viu
frustrado em todos os seus anseios e que sentiu de perto o que significa
uma ordem justa? Acaba isso? Não. Acaba a vontade de mudar
que milhares de pessoas estão demonstrando na rua? Não
acaba isso. Não acaba nada. Apenas, tudo isso sabe Deus que
caminho vai tomar. Qual é a forma institucional que se vai
dar a esse protesto amanhã? Pode não haver nenhuma
e, aí, com que cara nós vamos pedir institucionalidade
e lei, com que cara? Se nós sabemos que a lei é essa
que está aí?
SUPLICY - Na sua cegueira, o que parece claro é que
o governo também não compreende São Bernardo
como um exemplo pra todos os trabalhadores do Brasil. Quando o governo
procura atribuir a São Bernardo o movimento apenas de um
setor operário, um setor de elite, ele está aí
profundamente enganado. Porque, mais e mais, o que se verifica é
que as lideranças de São Bernardo expressam com bom
senso aquilo que querem dizer os trabalhadores de todo o Brasil.
MINO - E, eu acho que São Bernardo briga pela gente
também, né? É o que dizia o Fernando Henrique:
nós estamos com São Bernardo porque a coisa mexe conosco.
Agora, certamente o Poder não está lendo os livros
que deveria ter lido. Em circunstâncias iguais os homens costumam
agir de uma forma pelo menos parecida.
SUPLICY - E ao tentar resolver essa crise pela humilhação
dos líderes de São Bernardo, e como São Bernardo
também é a gente, o governo brasileiro está
querendo humilhar a todos os que querem a democracia. Nós
todos nos sentimos humilhados com os irmãos presos pelo governo,
detidos no Deops, sem ter cometido falta alguma.
GUILHON - Agora, vejam, eu realmente gostaria de entender
o empresariado nisso tudo. Se o empresariado foi capaz de fazer
São Bernardo, não é capaz de entender que São
Bernardo não está lutando só por nós,
está lutando também pelos empresários e até
pelo próprio governo?
MINO - Você tocou num ponto básico. Não
foi o empresariado que fez São Bernardo. (risos) Não
foi o empresariado.
ALMIR - Eu tenho uma boa experiência no trato com
o empresariado brasileiro, com o empresário multinacional
que está aqui. Me permitam essa falta de modéstia,
mas eu tenho feito, ao longo de 15 anos, tentativas de celebrar
acordo coletivo com patrões dos mais variados ramos industriais,
pequenos, médios e grandes. O que eu posso afirmar a vocês
é que, salvo algumas exceções que desaparecem
nos momentos de crise, não há nada mais obscurantista.
Eles não querem de forma nenhuma o diálogo, nunca
quiseram, e sempre que possível se refugiaram atrás
de uma legislação draconiana, de uma legislação
obscurantista, quase medieval. Isto de me dizer que hoje o empresariado
negocia, ele negocia quando compelido. Negocia quando não
há uma outra hipótese.
SUPLICY - E no presente foi compelido a não negociar.
FERNANDO - Eu escrevi um livro, há muitos anos, em
61, sobre os empresários brasileiros e entrevistei muitos
deles. Naquela altura existia a idéia de que a burguesia
nacional teria um papel progressista a cumprir. Bem, eu não
tenho a memória, mas podem ver o que está dito num
dos capítulos desse livro, que se aplica ipsis literis ao
que acontece agora. Então, o patronato quando reclama benesses
do Estado, aí ele é povo. Ele é povo, ele está
contra o Estado porque o Estado toma dele, aumenta o imposto e não
sei o que, aí ele é povo, puro povo, fala como povo.
Não assume a responsabilidade que tem na ordem autoritária
vigente ou qualquer ordem vigente. Ele aí desaparece. Mas,
assim que o povo começa a se movimentar pra exigir qualquer
melhoria real que, por último, é melhoria também
para os próprios empresários enquanto cidadãos,
esse empresário se escuda atrás do Estado e desaparece
e não assume sequer, como agora, a responsabilidade de ser
ele quem diz não. Sempre manda dizer que não pode
negociar porque o governo não quer. Nada impede que um grupo
de empresários, dos muitos que há aqui, tome uma decisão
contra o governo e comece a negociar, comece a dialogar. Nada impede.
CELSO - Mas, Almir, só um esclarecimento. O Lula,
pouco antes de ser preso, disse que foi procurado por alguns empresários
da Mercedes, da Ford, alguma coisa nesse sentido, indicando que
havia uma intenção de contato com ele vindo das grandes
empresas.
MINO - Não, não foi bem isso. Dois empresários
procuraram o Lula e chegaram a conversar com ele, na tentativa de
encontrar uma solução negociada. Eles seriam os intermediários
de uma aproximação. Um desses empresários chegou
a achar que, realmente, a coisa estava muito próxima. Eu
não excluo até a possibilidade de que, de alguma forma,
o governo tenha conseguido alguma informação a respeito
dessa aproximação e, antes que alguma coisa realmente
se concretizasse, tenha optado pela intervenção. Quanto
às multinacionais eu acredito que elas, em outras circunstâncias,
não sofrendo pressões do governo, claríssimas,
elas seriam negociadas, como negociaram em outras ocasiões
ou tentaram negociar em outras ocasiões.
Entretanto, mesmo que isso pudesse acontecer, eu acredito que ainda
assim está muito claro que o empresariado se omite. Esses
empresários, que nos acostumamos a ter como liberais e que
volta e meia, em momentos de calmaria, surgem com declarações
bombásticas a favor da democracia, da liberdade, e outras
coisa que tais, nesses momentos, ficam rigorosamente quietos, não
abrem a boca.
MALULY - Mino, me permita apenas o seguinte: o que esta
reunião do Folhetim deseja é a análise do fenômeno
São Bernardo. Nós já falamos aqui muita coisa
a respeito, mas há uma indagação que ainda
não recebeu uma resposta. Se as condições são
as mesmas, se existem multinacionais em São Bernardo como
existem em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, como em outras áreas
de concentração urbana, foi apenas o movimento sindical
que deu origem a este fenômeno de São Bernardo ou tem
alguma coisa a mais atrás ou além disto?
FERNANDO - Está visto que, primeiro, o que existe
em São Bernardo em grau maior, talvez, e mais visível,
existe em outras partes também, em São José
dos Campos, Campinas, Taubaté, Sorocaba, por aí afora.
Agora, há certas coisas que são particulares. Se você
não tivesse uma Prefeitura que cedesse um estádio,
seria diferente. Se você não tivesse um Lula com capacidade
de comunicação de massa, também seria diferente.
"O Brasil modernizou-se,
industrializou-se e não vai ter movimento social? Vai ter,
claro que vai ter"
MOACIR -
Deixa eu lembrar só uma coisinha, a história da greve
da região canavieira de Pernambuco do ano passado. Aquela
região já viveu uma experiência tipo São
Paulo de repressão anos atrás. A tradicional esquerda
que poderia ser tachada de agitadora não estava presente.
E a história da greve da região canavieira de Pernambuco
do ano passado, ela guarda características muito marcantes
e muito parecidas com São Bernardo.
FERNANDO HENRIQUE - Esse é que é negócio.
O Brasil avançou, se modernizou, se industrializou, se urbanizou,
e não vai ter movimento social? Não vai ter desafio?
Não vai ter? Vai ter, Portanto, ou se tem um sistema político
capaz de entender isso e avançar ou então vamos ter
muita dor de cabeça, porque, veja, o que é que está
sendo reivindicado em São Bernardo hoje? É nada. A
agenda de reivindicações é mínima, e
na maior parte são reivindicações de procedimento,
não é de dinheiro, é de procedimento, não
é isso, Almir?
ALMIR - Exatamente.
GUILHON - Leôncio, você que há muitos
anos vem estudando a classe operária em São Bernardo,
era previsível um pouco essa trajetória do movimento
operário? Há uma mudança radical ou você
tem indicações de que essa tendência atual de
São Bernardo, por exemplo, pode ser mais representativa de
um fenômeno mais amplo no Brasil?
LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES - A minha observação
de São Bernardo chegou ao que se poderia chamar uma idéia
de comunidade operária, que a meu ver é fundamental.
Não que não possam ocorrer movimentos grevistas em
outras partes, claro que sim. Se tivermos um desenvolvimento do
capitalismo no nível de empresa e democracia, tudo indica
que mais cedo ou mais tarde tenhamos sindicatos fortes, reivindicando
não só aumento de salários, mas uma participação
no sistema de autoridade da empresa, para não falar no sistema
de decisão política. Mas eu creio que São Bernardo
tem alguma coisa à parte. Muitos fatores confluíram
no sentido de formar esse sentimento de que existe uma comunidade
- e isto é decisivo porque provavelmente há uma identificação
muito grande da cidade com os trabalhadores.
Eu imagino que os proprietários das empresas não moram
em São Bernardo, a alta gerência deve morar em São
Paulo, de maneira que isso deve levar a uma homogeneidade social
muito grande. Em certo sentido se teria o que em outros lugares
se chama comunidade operária isolada em tornos e minas, que
dá uma consciência de classe muito forte. Isso não
quer dizer que São Bernardo se encontra tão isolada
do resto do País - embora ás vezes pareça que,
de fato, está muito isolada... (risos). Mas eu acentuaria
essa idéia de comunidade operária, que junta a Igreja,
junta a população local e uma forte concentração
operária, com essa densidade moral...
FERNANDO HENRIQUE - Você me dá licença?
Eu queria concordar com a idéia de comunidade, mas não
tanto nesse sentido. A última idéia sim, da densidade
moral, sim. A assembléia sindical é um fato, mas o
que está acontecendo hoje lá não é assembléia
sindical, é realmente o sentimento de comunhão, de
comunidade e de apoio. Não creio que seja da cidade, como
já se falou aqui, mas é dos operários mesmos.
E mais, uma coisa que me chamou muito a atenção nas
assembléias e agora no dia 1.o de maio. A situação
de 1.o de maio foi muito tensa, os que estavam lá sentiram
- até choramos, não de emoção, mas por
causa de gás lacrimogêneo. Bom, foi muito tenso. Mas
assim que veio a ordem para a Polícia se retirar, aquilo
virou festa, até com batucada. Essa dimensão de festa
esteve presente o tempo todo; quando não há o medo
da reação, da repressão, vem a festa. Isso
tem a ver com esse sentimento de uma fraternidade que, inclusive,
quase misticamente dissolve as hierarquias. O bispo está
ali, está o deputado, está o jornalista, está
o líder operário, desfeitos naquela comunhão.
Isso eu acho importante, mas não no outro sentido, de ser
uma coisa isolada.
LEÔNCIO - Não, não falei em comunidade
isolada do resto. Toda vida operária gira em torno de uma
única empresa, a grande empresa, lá é uma comunidade,
porém, não é uma comunidade isolada.
ALMIR - É, são as comunidades das fábricas.
Se nós tentarmos procurar os fatores objetivos que levam
a esse estado de mobilização geral, e de resistência
verdadeiramente excepcional, na minha opinião nós
vamos encontrar coisas do tipo. Em primeiro lugar, grande concentração
de trabalhadores em um número restrito de empresas, o que
possibilita uma atuação sindical mais concentrada,
a formação de um espírito de equipe - o trabalhador
da Volkswagen, o trabalhador da Mercedes, ou o trabalhador da Scânia,
eles se reconhecem e se irmanam em função dos problemas
comuns que vivem dentro de cada empresa.
A característica da própria indústria automobilística
que é excessivamente opressora, sem embargo de ser a mais
moderna é a que mais retira do empregado, é a que
mais suga o trabalhador. Você diz que o empregado da Mercedes
ganha mais. Sim, ele entra ganhando mais, porque ali o padrão
não é o salário mínimo, mas em contrapartida
ele oferece muito mais e se arrisca muito mais, não só
quanto à integridade física, mas quanto ao equilíbrio
emocional. O ritmo de trabalho é ditado pela empresa porque
o nosso sistema sindical ainda não conseguiu, e esta seria
uma reivindicação básica, discutir a questão
de ritmo, o que já tem sido mencionado lá dentro do
sindicato.
Há um outro lado importante a possibilitar a greve: é
a disponibilidade em que se encontra o trabalhador. O trabalhador
que está consciente de que ele não tem garantia nenhuma
de emprego, vivendo uma permanente instabilidade gerada pelo sistema
do Fundo de Garantia, ele não se prende tanto ao trabalho,
mesmo porque se for despedido com ou sem justa causa leva consigo
o Fundo. Se não consegue retirá-lo pelo menos consegue
transferi-lo. É um patrimônio seu. O Fundo de Garantia
gera isto no espírito do trabalhador e, curiosamente, esta
resultante do FGTS foi prevista pelos líderes sindicais de
1966/67.
E há também o problema do peão. Hoje, alguém
me perguntava, quem é que alimenta a greve? É o peão
ou é o operário especializado? Eu acho que ambos alimentam
a greve, cada um a sua maneira, cada um pelas suas razões.
Mas, o peão mora fundamentalmente em pensões. E esta
convivência diária gera um espírito de fraternidade,
que é o que possibilita a luta. Se nós vamos, ou não,
ter greves em outros setores, onde as condições são
diferentes de São Bernardo, eu respondo sem medo nenhum,
sem preocupação nenhuma que nós vamos ter as
greves, mesmo porque o processo é meio epidêmico e
as condições de salário e de vida são
muito semelhantes. Agora, São Bernardo é de fato uma
comunidade.
- Esse é o moderno.
ALMIR - Esse é diferente em relação
aos demais. A greve de São Paulo, o ano passado, a greve
do Sindicato de São Paulo, Guarulhos e Osasco, uma greve
incrivelmente difícil de administrar, porque são centenas
de pequenas e médias empresas. Então, a paralisação
exige um esforço sindical, um esforço de piquete,
um esforço de deslocação, muito superior. No
momento em que a Volkswagen tomou consciência de que deve
parar e que não deve retornar a menos que determinadas condições
sejam atendidas, não há mais muita necessidade até
da presença do piquete.
CELSO - Almir, eu queria complementar uma coisa que você
disse a respeito do tipo do operário que há em São
Bernardo do Campo, principalmente na indústria automobilística.
De fato, esse operário é o mais bem pago do País
e, também, há um número maior de operários
qualificados na indústria automobilística, assim como
o nível de escolaridade é maior nesse setor.
FERNANDO - Dá pra quantificar um pouco isso para
o leitor depois ter uma idéia do que significa esse bem pago?
CELSO - Parece que a média do salário está
sete mil.
ALMIR - Segundo informações que me foram dadas
pelo Dieese, e que apareceram no curso das negociações,
25% ganham de 1 a 3 salários, digamos, sessenta e qualquer
coisa por cento ganha acima de 3 e até 10 salários
e o restante acima de 10 salários mínimos. Agora,
não podemos perder de vista que se toma como ponto de referência
o salário mínimo. E todos sabem o que é o salário
mínimo?
CELSO - Eu acho que essas características do operário
em São Bernardo vem suscitando uma série de mal entendidos.
De um lado os porta-vozes do Governo procuram mostrar o operário
em São Bernardo como um sujeito pertencente a uma elite,
com uma aristocracia primária. Isto é, um setor de
classe privilegiada. Recentemente, alguns porta-vozes do Governo
chegaram a dizer que as reivindicações dos operários
não eram justas porque elas iriam dificultar a distribuição
de rendas no País. E o próprio governador Maluf, num
momento de humorismo involuntário, disse que a média
de salários chegava a 100 mil.
Há também uma proliferação de teorias
que procuram dizer que o operário está sendo corrompido
pelo consumismo, isto é, que o operário perdeu a sua
consciência de classe, a sua combatividade, e está
vivendo um processo de acomodação e de integração
capitalista. Me parece que está havendo uma manipulação
bastante equivocada dos dados. Em primeiro lugar os salários
são mais altos, mas em São Bernardo a especulação
imobiliária chegou a tal ponto que, conforme falou o dr.
Almir, os operários estão vivendo em pensão
e muitos deles fora da cidade de São Bernardo, onde os aluguéis
são muito caros. Por outro lado, esses operários evidentemente
não são os mais miseráveis, os mais andrajosos,
os mais pobres. Mas é preciso deixar bem claro que eles são
os trabalhadores mais explorados do Brasil na medida em que eles
criam uma taxa de mais-valia altíssima. Então, na
indústria automobilística está bastante claro
o contraste entre a criação social da riqueza e a
sua apropriação privada pelas empresas multinacionais.
ALMIR - Você me daria um apartezinho? Dentro dessa
linha de raciocínio, eu tive a curiosidade despertada para
o problema do salário comparado. E cheguei a uma conclusão,
não sei se correta porque eu sou apenas advogado, não
sou economista, de que há uma manipulação evidente
dos salários nos padrões internacionais. Eu disse
algumas vezes, não sei se fui bem entendido, que esses trabalhadores
da indústria automobilística são pagos em cruzeiros,
mas os seus salários são calculados pelas empresas
em dólares. Porque me parece óbvio que, em se tratando
de uma multinacional americana, todo o seu balanço ela fará
em dólares, não fará em cruzeiros. Então
ela calcula o pagamento em cruzeiros, mas está calculando
o valor, o custo dessa mão-de-obra em dólares, como
a Volks calcularia em marcos, não é verdade? E o último
padrão de referência acabaria sendo talvez o dólar.
Toda vez que o salário do trabalhador da indústria
automobilística for elevado não tenho dúvida
nenhuma que, ato contínuo, vai haver uma mudança no
câmbio e em dólares ele voltará a significar
um dólar, um dólar e meio no máximo dois dólares
por hora. E assim tem sido sempre e invariavelmente ao longo de
todos esses anos.
Eu conversei com um soldador da Ford nos Estados Unidos e ele ganhava,
em meados do ano passado, 12,5 dólares por hora. E eu disse
a ele que um soldador no Brasil ganha um dólar e meio por
hora. Talvez até ganhe menos, com o dólar a 50 cruzeiros...
o sindicato fez um levantamento em São Bernardo, por fábricas,
constatou salário mais alto de 105 e 110 cruzeiros por hora.
Há casos excepcionais, 130, mas isso é o excepcional.
GUILHON - Você permite um outro lado comparativo?
Se você comparar o valor salarial com o valor da produção,
há um dado que a Fiesp divulgou, assim muito escondidamente,
segundo o qual a média salarial seria da ordem de 6 mil cruzeiros.
E as montadoras divulgaram que deixaram de faturar 18,5 milhões
em 17 dias úteis. Fazendo os cálculos, só os
operários das montadoras produzem em seis horas de trabalho
o montante do salário pago aos 140 mil grevistas, durante
um mês. Em seis horas de trabalho. Eu, aliás, teria
vergonha de divulgar um dado desse se eu fosse da Fiesp.
CELSO - Um outro dado, também importante, é
que no balanço das despesas de uma grande indústria
automobilística, a despesa com a folha de pagamento não
chega a 15% - talvez, não chegue nem a 10 ou 12%. Isso mostra
que é fácil e não há nenhum problema
maior para as empresas em negociar salário com os operários.
O que há por trás de tudo isso é uma política
odiosa do governo de tentar encurralar a classe operária,
que tem se comportado como setor de ponta da oposição
democrática no Brasil.
LEÔNCIO - Esse é um dado pra analisar. Em São
Bernardo, o trabalhador lida com empresas ricas e que, efetivamente,
podem pagar. Eu tenho a impressão que este é um fator
que impulsiona bastante o trabalhador, porque não se trata
de um setor, digamos, tradicional, um setor em dificuldade, um setor
que está repelindo a mão-de-obra, mas sim de empresas
que estão crescendo o que, penso eu, estimula os trabalhadores
a reivindicarem sua parcela.
MINO - Desculpe, não vamos esquecer que o que está
em jogo é algo mais do que a reivindicação
salarial. É esse o problema.
ALMIR - Eu ia dizer ao Leôncio que o ponto nodal da
questão não é mais o aumento de salários,
embora seja um aspecto dos mais importantes. Mas as duas grandes
questões seriam a da garantia contra a dispensa - aquilo
que na mesa de negociações tomou o rumo da fixação
de critérios, que autorizariam as demissões - mais
a representação sindical. E aqui, o Sindicato de São
Bernardo rompe efetivamente com a tradição do sindicalismo
brasileiro, que não tem enfrentado esses problemas. Por quê?
Porque na minha opinião quanto mais alta a taxa de reajuste
e de aumento real, maior a probabilidade do incremento do processo
de rotatividade. Se os salários não sofrem nem reajuste,
nem aumento, por que a rotatividade? Pelo contrário, a estabilidade
se torna necessária porque o empregado estável tem
mais produtividade. Mas, se há um reajuste de salário
acentuado, mais um aumento, a indústria pratica a rotatividade
de todas as formas possíveis e com a valorosa contribuição
do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Por isso eu senti,
na mesa de negociações, que a ruptura se daria na
questão da estabilidade e do delegado sindical, porque mais
1% ou mais 2% trocado em miúdos, traduzido em cruzeiros é
muito pouco. Se ao invés de 7% tivéssemos 8 ou 9%,
traduzindo isso em cruzeiros é muito pouco...
"Nesta greve, quem não
deveria estar preocupado em tomar partido, teoricamente, seria o
governo"
MALULY -
Considerando que de uma forma unissona, todos nós concordamos
que o que menos importava era a reivindicação salarial,
pergunto: dentro do problema do direito de greve, se ele amanhã
for regulamentado, não se estaria hoje ferindo a pureza desse
direito? Não se estaria usando o movimento operária
trabalhista, acima daquilo que seria justo que se fizesse? Não
se estaria maculando esse direito de greve?
MINO - Aceitando a reivindicação política?
MALULY - Exatamente.
MINO - O senhor quer dizer que a reivindicação
política conspurca a pureza...
MALULY - Não, não. Veja bem, eu estou fazendo
uma indagação, não estou fazendo uma afirmação.
DIEGO FERNANDES - Eu poderia tentar responder. Eu tenho
percebido, nas várias abordagens que cada um dos presentes
está fazendo queira ou não está se voltando
para a greve, quando a pergunta era por que São Bernardo.
Mas, realmente, não se pode separar São Bernardo e
a greve. Quando se analisa um movimento dessa envergadura, quando
ele tem a característica de um conflito entre o capital e
o trabalho as análises tendem a ser, normalmente, pela ótica
do capital ou pela ótica do trabalho. E não é
de estranhar isso. Quem não deveria estar preocupado em tomar
partido, teoricamente seria o Estado que teria o objetivo de ouvir
ambas as partes para poder manter essa conciliação
de classe. Bom, em vista disso e para tentar recuperar a pergunta
inicial, a quem interessa esse estado de coisas hoje, que está
acontecendo em São Bernardo?
MINO CARTA - Me perdoe, mas acho um pouco maniqueísta
essa colocação de que as coisas podem ser vistas da
ótica do trabalho ou da ótica do capital. Nós
aqui estamos à procura, digamos, de uma democracia social
para este País e não se discutiu aqui o problema do
capital. Muito bem, então ao capital é altamente conveniente
uma estrutura democrática, que permita a ascenção
dos trabalhadores, que liquide com a CLT etc etc etc. Como foi conveniente
em outros países do mundo ocidental, que hoje vivem dentro
de um regime democrático. Eu acho que para o capital é
muito conveniente uma solução democrática,
né?
DIEGO - E por aí que eu queria levar minha discussão
e por isso é que eu pergunto a quem interessa essa greve.
Se a gente for ver do interesse não apenas do metalúrgico,
do trabalhador grevista, mas do interesse da grande maioria da sociedade,
nessa greve que hoje se limita a São Bernardo nós
estamos encontrando exatamente uma lição de democracia.
Uma lição daquela democracia que a grande camada,
as grandes massas, a grande maioria da população da
sociedade brasileira está buscando. Então, a greve
não pode ser olhada isoladamente, do mesmo jeito que já
foi falado aqui, que São Bernardo não pode ser isolado
do ABC, nem isolado do Brasil. Então, a greve está
possibilitando que haja, pela primeira vez, a ocasião de
colocar a verdadeira democracia na mesa de negociações,
a verdadeira democracia na rua.
Foram presos alguns líderes, mas essa greve não se
elimina com a prisão de alguns líderes. Existe uma
ótica burguesa, uma ótica do capital, elitista, pelo
hábito de se ter uma minoria dominando uma grande maioria,
segundo a qual se cortando algumas cabeças, ceifando os líderes,
isso resolve o problema. A gente tem é que conseguir superar
essa visão das coisas e entender que a democracia burguesa
não é a mesma democracia que interessa à grande
maioria da população. Agora, a possibilidade de conciliar
essas duas democracias, é que me parece o interesse dessa
mesa-redonda. É o interesse de buscar uma saída leal,
uma saída onde não haja derrotados, nem vencedores.
Para se chegar a esta saída, é preciso levar em consideração,
não apenas a greve em sim, mas toda uma conjuntura criada.
SUPLICY - Gostaria de chamar a atenção ainda
para um outro dado. O governo ao tentar quebrar, na sua nascente,
esse movimento e essa greve, por meios repressivos de prisão
e intervenção, também está tentando
cortar o exemplo do que poderia ser um instrumento notável
para se resolver alguns problemas prementes da sociedade brasileira.
Um dos quais refere-se à crescente disparidade de rendimentos
ao nível das empresas, como existe no próprio ABC.
Se de um lado os salários-hora dos horistas metalúrgicos
é menos de um sexto do salário-hora do metalúrgico
norte-americano, por outro lado, a remuneração do
gerente geral das grandes empresas no ABC e das próprias
multinacionais supera a remuneração do superior executivo
americano. E uma das reivindicações importantes desse
movimento era justamente a de poder discutir toda a hierarquia de
remuneração dentro da empresa.
ALMIR - Eu diria que a reivindicação não
era a de discutir a hierarquia salarial da empresa, porque isto
me parece um tanto quanto problemático, mas de conhecer a
estrutura salarial da empresa, para se poder analisar a questão
da rotatividade da mão-de-obra e influir nos sentido de corrigir
distorções. O movimento sindical, pelo que eu tenho
entendido, não tem sido contra os altos salários,
tem sido contra os baixos.
LEÔNCIO - Pois é, eu queria voltar um pouco
ao problema da estabilidade. Pode parecer que ela foi uma reivindicação
meio extemporânea, mas a verdade é que sem estabilidade
não há movimento sindical forte. No momento em que
o patronato tem liberdade, como tem no Brasil, do contrato individual
e da dispensa individual, não há movimento sindical.
Isso é totalmente impossível. E não é
à toa que o movimento sindical dos países altamente
desenvolvidos se concentra hoje no problema da estabilidade, não
só por causa do desemprego. Então, a meu ver esta
idéia da estabilidade está ligada a toda uma problemática
do poder sindical. Sem estabilidade não há movimento
sindical forte.
MINO - Muitos equívocos têm sido cometidos na
interpretação da greve, inclusive com a infatigável
colaboração da imprensa. Hoje de manhã, ainda,
segunda-feira, eu li num órgão de larga difusão
a tese de que a passeata, a caminhada pacífica do dia 1.o
de Maio, era ilegal. Esse texto, inclusive, continha de alguma maneira
uma crítica ao poder, que permitiu a passeata - primeiro
proibiu e depois permitiu. Então, essa questão da
legalidade é importante. O governo se aferra muito a essa
coisa de que ele está cumprindo a lei, não é?
Ele é o executor da lei. Agora, veja, analisemos este aspecto:
acreditar que é lei uma proibição que, na verdade,
não se baseia em lei alguma e muito menos na Constituição,
isso vai criando grande confusão na cabeça das pessoas,
enfim, na definição da opinião pública.
Um outro aspecto, relacionado com esse equívoco, e é
essa a questão da democracia: tende-se a apresentar a greve
como um movimento que vai contra o capitalismo, destinado a solapar
o capitalismo, o regime capitalista, quando é evidente que
uma coisa não tem nada a ver com a outra. Na verdade, como
dizia o Almir, países capitalistas têm democracia e
as greves se realizam neles sem a menor preocupação
de conceituar se ele é política ou não é
política. |
|
|
|
|
|
| |