São Paulo, sexta-feira, 6 de fevereiro de 1987

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DEZ TESES SOBRE A TEORIA DA MÚSICA

Até os anos 50, a teoria músical era uma disciplina de fundo de corredor, mas uma nova teoria, que responda a vários desafios, já começa a dar sinais de vida

Arthur Nestrovski

1. Até meados da década de 50, a teoria musical era uma disciplina de fundo de corredor, empoeirado, sem pressa, sem charme e sem sal. Hoje, no Brasil como em todo lugar, não há estudante de música que não se veja obrigado a vencer um extenso currículo de teoria e análise musical, seja a nível de graduação, de pós-graduação, ou de aperfeiçoamento. Os departamentos de teoria tornaram-se o verdadeiro centro de gravidade das escolas de música, atraindo e regulando o movimento de outros corpos.

2. A palavra teoria vem do grego "theórein", que significa observar, assistir, ou especular. A teoria musical, contudo, tem-se mostrado mesquinha na prática da especulação (do latim "speculum"), do diálogo frente ao espelho. É certo que a teoria musical contemporânea preocupa-se mais consigo mesma do que com a música propriamente dita. Mas o pecado maior dos analistas e teóricos da música não parece ser a vaidade, e sim a arrogância. O fogo que escreve textos de harmonia e análise serial não é o fogo frio de Narciso; é a vontade de verdade, de potência que mata o mundo e fixa o tempo em nome da ordem e da lei.

3. A teoria é ou deveria ser a construção autoconsciente da identidade de uma cultura. O fator fundamental aqui é a construção daquilo de que se está falando. A teoria musical pressupõe a presença prévia do objeto de que fala. Mas é precisamente a teoria que cria o objeto como é. O objeto - a "música" de que falam os analistas - é a base do trabalho analítico. Mas não existe análise independente de conceitos, o que equivale a dizer que a verdadeira base do trabalho analítico são os conceitos teóricos que instituem campo, prática e fantasias de análise. O que é preciso estudar, hoje, são as condições históricas que permitiam a aparição de tais conceitos e de uma tal teoria.

4. Pelo menos desde a Grécia antiga, a teoria musical tem sempre optado por um de dois modelos: o modelo empírico de Aristóxenos ou o modelo natural de Pitágoras. Segundo Aristóxenos, a função do analista é observar a música do ponto de vista de quem ouve. Já para Pitágoras o objetivo do analista é descobrir as leis "naturais" da música independentes de uma experiência auditiva. Aristóxenos afirma: "é assim que as coisas são". Pitágoras postula a identidade entre formas musicais e as formas do cosmos, justificadas pela razão matemática. Nem um nem outro aceita a história como agente poético. Um e outro aborda a palavra como um meio neutro, transparente, simples. Com maior ou menor autoconfiança, as correntes teóricas de hoje mantém aceso o diálogo com esses dois espectros ancestrais.

5. O ideal da teoria musical contemporânea é a construção de um sistema universal que possibilite o entendimento do particular. O ideal da análise moderna é revelar a coerência interna de cada obra em questão. Explícita ou tacitamente a teoria prevê o ponto de partida para a análise. Por outro lado, é a análise de obras isoladas que consagra autenticidade à teoria. Teoria e análise respondem de forma distinta à autoridade da estética, verdadeira responsável pela seleção das obras dignas de estudo e comentário. A teoria pretende explicar (empírica ou naturalmente) os fundamentos últimos do valor. A análise de sua parte, ignora o gosto - a história - e transforma a obra musical numa gramática muda, numa estrutura de papel.

6. Assim como não existe discurso neutro, também não existe neutralidade na audição. Onde há um ouvinte, há teoria. O que o teórico da música procura pelo menos numa primeira instância, é substituir os preconceitos da cultura por uma nova cultura de conceitos. A análise é uma forma específica de comentário que devolve a teoria às obras musicais. A análise deveria ser uma atividade crítica, semelhante neste sentido à tradução literária ou ao ensaio. Aquela análise que não questiona, mas se contenta com a descrição de uma obra, não é, na verdade, análise: é mera tautologia.

7. O esforço de objetividade que caracteriza a teoria musical contemporânea encontra expressão moral no regime de austeridade do analista. Nenhum prazer, nenhuma emoção no claustro da academia. Confiante no projeto de uma linguagem pura, o analista constrói o mito de uma ciência da música. Mas assim como a linguagem da ciência descreve um mundo que é o fruto de seu próprio interesse, histórico e particular, também a teoria da música define o objeto, a ficção de seu desejo. A fantasia do olhar objetivo é acreditar na realidade de sua própria projeção.

8. Como tantos outros territórios acadêmicos, a teoria musical está dividida, hoje, pela divergência entre suas muitas províncias. Como nenhum outro caracteriza-se por uma impermeabilidade uniforme aos efeitos da maioria das mais expressivas correntes do pensamento contemporâneo. Alienado das proezas de destruição e reconstrução que agitam toda terra a seu redor e incapaz de questionar as premissas básicas de seu projeto, o analista da música castiga a dúvida com o bastão da autoridade. A pobreza do método é tida por ele como deficiência do objeto.

9. No Brasil, a teoria da música é espetacular num sentido específico: reflete o brilho de teorias distantes. A teoria brasileira já foi caduca, hoje é fosca. Nem teoria brasileira da música nem teoria da música brasileira, a teoria que se professa nas escolas é contraditória a cada estágio de sua mimese: fundada na palavra e sem palavras serventes do ouvido e surda, vivendo no espelho e incapaz de refletir-se a si mesma.

10. Uma nova teoria da música deve responder a pelo menos três desafios: compreender as descontinuidades de um sistema teórico, compreender a teoria enquanto escrita e compreender os atributos sociais e políticos do discurso. Até agora uma tal teoria ainda não apareceu. Mas já começa a dar sinais de vida, ruído de outras mensagens, leve luz na constelação da página, murmúrio nos subterrâneos da academia.
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