São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1980



INTELECTUAL INVENTA MODA

O filósofo Gerard Lébrun critica os modismos intelectuais e desmente que exista uma estratégia ideológica por trás da moda

"Não acredito que as modas sejam, por princípio, expressões de interesses ideológicos distribuídos para divertir o público e gerar conformismo. Algumas até podem ter esse resultado, mas, no estado de anarquia cultural em que vivem nossas sociedades, seria superficial explicar a coisa assim. Acima dos interesses ideológicos estão os econômicos, que não vêem a ideologia do produto, mas seu potencial de venda."

O pensamento é do filósofo Gerard Lébrun, para quem é preciso desmistificar a crença de que por trás de cada modismo existe uma estratégia ideológica. Na verdade, como disse ao repórter Laerte Ziggiatti, na Universidade de Campinas, onde leciona, ele duvida mesmo que as classes dominantes tenham uma ideologia própria. Quem procurar um "conjunto de idéias, um mínimo ideológico entre as classes burguesas, só vai encontrar idéias de esquerda".

Pouco afeto às nuances do vestuário, Gerard Lébrun sente-se mais à vontade para falar sobre os modismos intelectuais. Mas, mesmo nestes casos, ele não admite uma vinculação direta com a ideologia: "A moda intelectual não reflete uma ideologia, apesar de constituir-se para uma platéia com um mínimo ideológico".

O sentimento do rebanho

O professor Gerard Lébrun, define moda: "Um complexo de idéias, de temas e, às vezes, de chavões articulados num certo sistema que se tornam moda à medida que atingem uma parcela do público". E ressalva: "Essa questão só poderia ser respondida com uma averiguação a respeito da razão do sucesso de tal ou qual moda. Há, para cada caso, a necessidade de uma análise psico-sociológica".

Por que certos temas são rejeitados pelo público e outros recebem acolhida imediata? A pergunta é do próprio entrevistado que, no entanto, não tem uma resposta completa, o que "só seria possível em casos específicos, nunca no abstrato".

No caso da moda feminina, ele é capaz de perceber certos indícios. "Acontece por decisões de certos criadores como Yves St. Laurent e Pierre Cardin. O criador deve levar em conta certos desejos inconscientes do público que ele pensa perceber. Por seu lado, o público acolhe certas modas motivado pelo esnobismo, que num segundo momento a maioria vai seguir como um rebanho de carneiros. O esnobismo encerra, paradoxalmente, a vontade de se distinguir e é, ao mesmo tempo, o ponto de partida da formação do rebanho, da padronização maciça."

O processo é semelhante na formação dos modismos intelectuais: "Isso é mais evidente com referência às pessoas que adotam a linguagem e os temas de uma certa seita ou escola, num desejo de se distinguir dos outros, num desejo de ser depositário de um saber que os outros não têm".

A padronização via modismo não é indício de que algo semelhante pode ocorrer com as idéias políticas! Gerard Lébrun acredita que nas democracias é muito difícil impor uma padronização de idéias entre pessoas de certo nível social e cultural. Neste caso, ele equipara o Brasil e as democracias ocidentais. No entanto, reconhece que os governos estão interessados na "massificação e padronização de atitudes quando se trata de classes populares de baixa renda".

Este procedimento é facilmente avaliado na diferença de liberdade existente nos jornais e na televisão. "Na maioria dos países, mesmo nas democracias, há uma tendência em se fiscalizar a televisão de modo que certos padrões não sejam ultrapassados. Mas nos países democráticos um esforço de controlar a difusão das idéias é muito difícil."

Para o poder, afirma Gerard Lébrun, não é tão importante que o marxismo ou o esquerdismo, enquanto ideologias, sejam ensinados na Universidade, como não é importante que a imprensa de oposição ataque o governo, "à medida que só as pessoas que possuem certos recursos podem comprar jornais".


Os modos do intelectual

O que hoje se conhece por moda intelectual começou no final do século 17. Foi nesse período que se formou um grupo de intelectuais - os produtores de idéias - e o público consumidor - a burguesia. É nesse momento, segundo Gerard Lébrun, que surge a opinião pública, na Inglaterra. Ou seja, um público com certa liberdade de expressão. É o estopim da moda: "Em função dessa liberdade de pensamento, certos temas começaram a ser produzidos pelo grupo dos intelectuais para serem consumidos pelo público interessado em formular opiniões sobre política, religião etc.".

Os modismos intelectuais nos países não-totalitários acontecem com liberdade. Afinal, no século 20, ocorreu uma mudança significativa no âmbito das democracias: "Os governos perceberam que não é preciso, para dar respaldo a um Estado, se ter o equivalente a uma religião ou a uma ideologia oficial repressiva. Esse foi um tema muito enraizado na cultura política ocidental até o século 19, quando até um espírito liberal como Toqueville pensava que um povo sem religião não pode constituir um Estado. Era a convicção de que é preciso um mínimo de padronização ideológica para que o Estado possa ser mantido em base estável. Esse foi o modo de pensar desde Platão até o século 19".

Gerard Lébrun diz que "poder, hoje, é uma palavra que não significa quase nada. Eu sou muito nominalista. É preciso examinar cada tipo de organização do poder, captar sua especificidade. Talvez nas democracias ocidentais nos defrontemos com uma espécie de poder que prefira jogar com as rivalidades entre os grupos de interesses do que tentar constituir uma ideologia comum, uma padronização para assegurar a coesão de um país".

Com isso, Gerard Lébrun não quer dizer que o poder tenha se tornado "tolerante e bonzinho". Em sua opinião há, agora, outros meios de controlar a difusão de idéias que não necessariamente o rígido controle sobre os mass-media. O exemplo seria a televisão norte-americana, que afirma ser a mais livre do mundo. "É preciso acabar com a lenda de que o setor privado está na origem da padronização e massificação ideológica."

O livro vendido pela televisão

Uma moda intelectual, hoje, pode ser criada pela televisão. Gerard Lébrun cita o exemplo de um programa literário da televisão francesa. O apresentador do espetáculo, Bernard Pivot, convoca cinco autores e, no dia seguinte, os livros discutidos no programa estão em todas as vitrines do país e as vendas aumentam substancialmente. "E o nível da discussão, no programa, é baixo", esclarece o filósofo. "Os livros vendem mais ou menos em função da simpatia do autor."

Para Gerard Lébrun este é um sintoma de decadência, pois há muitas modas intelectuais apoiadas em obras fracas. Como exemplo, ele coloca os chamados "novos filósofos franceses", que vêm obtendo muito sucesso "porque foram lançados, há dois anos, pela mass-media, pela televisão, pelos jornais".

Antes, lamenta o professor da Unicamp, uma nova moda era lançada por um livro, nascia da própria obra. "Há vinte anos, o consumidor podia julgar um produto pelo contato direto. Hoje, a principal autoridade é a mass-media, ocorrendo a manipulação de todas as camadas da população, tanto da burguesia como das classes populares em função de imperativos econômicos."
 
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