São Paulo, domingo, 8 de junho de 1980



O MITO REVELADO

Os mitos existem para esconder a realidade. Por isso mesmo, eles revelam a realidade íntima de uma sociedade ou de uma civilização. Como se poderia no Brasil colonial ou imperial acreditar que a escravidão seria, aqui, por causa de nossa "índole cristã", mais humana, suave e doce que em outros lugares? Ou, então, propagar-se, no século 19, no próprio país no qual o partido republicano preparava-se para trair simultaneamente a ideologia e a utopia republicanas, optando pelos interesses dos fazendeiros contra os escravos, que a ordem social nascente seria democrática? Por fim, como ficar indiferente ao drama humano intrínseco à Abolição, que largou a massa dos ex-escravos, dos libertos e dos ingênuos à própria sorte, como se eles fossem um simples bagaço do antigo sistema de produção? Entretanto, a idéia da democracia racial não só arraizou. Ela se tornou um mores, como dizem alguns sociológos, algo intocável, a pedra de toque da "contribuição brasileira" ao processo civilizatório da Humanidade.

Ora, a revolução social que se vincula à desagregação da produção escravista e da ordem social correspondente não se fazia para toda a sociedade brasileira. Os seus limites históricos eram fechados, embora os seus dinamismos históricos fossem abertos e duráveis. Naqueles limites, não cabiam nem o escravo e o liberto, nem o "negro" ou o "branco pobre" como categorias sociais. Tratava-se de uma revolução das elites, pelas elites e para as elites; no plano racial, de uma revolução do Branco para o Branco, ainda que se tenha de entender essa noção em sentido etnológico e sociológico. Colocando-se a idéia de democracia racial dentro desse vasto pano de fundo, ela quer dizer algo muito claro: um meio de evasão dos estratos dominantes de uma classe social diante de obrigações e responsabilidades intransferíveis e inarredáveis. Daí a necessidade do mito. A falsa consciência oculta a realidade e simplifica as coisas. Todo um complexo de privilégios, padrões de comportamento e "valores" de uma ordem social arcaica podia manter-se intacto, em proveito dos estratos dominantes da "raça branca", embora em prejuízo fatal da Nação. As elites e as classes privilegiadas não precisavam levar a revolução social à esfera das relações raciais, na qual a democracia germinaria espontaneamente... Cinismo? Não! A consciência social turva, obstinada e mesquinha dos egoismos enraizados, que não se viam postos à prova (antes, se protegiam) contra as exigências cruéis de uma estratificação racial extremamente desigual.

Portanto, nem o branco "rebelde" nem a República enfrentaram a descolonização, com a carga que ela se impunha, em termos das estruturas raciais da sociedade. Como os privilégios construídos no período escravista, estas ficam intocáveis e intocadas. Mesmo os abolicionistas, de Nabuco a Patrocínio, procuram separar o duro golpe do abolicionismo do agravamento dos "ódios" ou dos "conflitos" raciais (1). Somente Antonio Bento perfilha uma diretriz redentorista, condenando amargamente o engolfamento do passado no presente, através do tratamento discriminativo e preconceituoso do negro e do mulato (2). Em consequência, o mito floresceu sem contestação, até que os próprios negros ganharam condições materiais e intelectuais para erguer o seu protesto. Um protesto que ficou ignorado pelo meio social ambiente, mas que teve enorme significação histórica, humana e política. De fato, até hoje, constitui a única manifestação autêntica de populismo, de afirmação do povo humilde como gente de sua autoliberação. O protesto negro se corporificou e floresceu na década de trinta, irradiando-se pouco além pela década subsequente (3). Foi sufocado pela indiferença dos brancos, em geral; pela precariedade da condição humana da gente negra; e pela intolerância do Estado Novo diante do que fosse estruturalmente democrático.

Na lei, a ordem é uma; nos fatos, é outra

O principal feito do protesto negro configura-se na elaboração de uma contra-ideologia racial. Por um jogo dialético, o farisaismo do branco rico e dominante era tomado ao pé da letra: e o liberalismo vazio, acima de tudo, via-se saturado em todos os níveis. O negro assume o papel do burguês conquistador (ou do "notável" iluminista) e comporta-se como o paladino da causa da democracia e da ordem republicana. Não era propriamente um teatro popular, que se montava com o Tribunal dos justos. Porém, tudo se desenrola através de dois planos, por meio dos quais o jogo cênico e a realidade se interpenetram. O que resulta é uma cabal e indignada desmistificação: na lei, a ordem é uma; nos fatos, é outra; na consciência, as variações não são registradas. O negro desmascara e, ao mesmo tempo em que ergue a sua denúncia e mostra a sua ira, exige uma Segunda Abolição. Em suma, clama por participar da revolução social que não o atingiu, levantando o véu de uma descolonização que ficara interrompida desde a Proclamação da Independência e indicando sem subterfúgios os requisitos sine qua non da democracia racial. O protesto se confinara à ordem estabelecida. Mas era autêntico e revolucionário, pois exigia a plena democratização da ordem republicana - através das raças contra os preconceitos e privilégios raciais.

A eclosão liberal de após Segunda Guerra Mundial não liberou as forças sociais que alimentaram o protesto negro. Ao contrário, este refluiu e apagou-se, enquanto as energias da gente negra forçavam a democratização e a igualitarização progressiva pelos subterrâneos da porosidade de uma sociedade capitalista em crescimento desigual. O talento negro condena-se à seleção ao acaso, à venda no mercado e às duas regras da acefalização das raças dominadas, perdidas nas classes subalternas. O novo negro, que se afirma como categoria social, e assusta o branco conformista, tradicionalista ou autoritário, não constitui um rebento do protesto negro, mas da luta pela vida e do êxito na competição inter-racial numa sociedade de classes multi-racial. Por aí, a modernização generaliza-se às elites em formação do meio negro e cria um "novo começo" (4) que procurei descrever sob alguns de seus aspectos mais importantes ou fascinantes.

Essa evolução faz com que, em pleno fim do século, a descolonização não tenha penetrado profundamente na esfera das relações e das estruturas raciais da sociedade brasileira. No último censo em que o levantamento racial foi contemplado, o de 1950, os números demarcavam que o desenvolvimento desigual era ainda mais desigual no que diz respeito à estratificação racial. De Norte a Sul, dos Estados tidos como "tradicionalmente mais democráticos" aos que foram contemplados como representativos de um "racismo importado", prevalece a mesma tendência estrutural à extrema desigualdade racial - à centralização e à concentração raciais da riqueza, do prestígio social e do poder (5). Tanto a estrutura ocupacional quanto a pirâmide educacional deixam uma participação ínfima para o negro e o mulato, assinalando uma quase-exclusão e uma marginalização sistemática e desvendando, inclusive, que, na luta pelas oportunidades tão desiguais e sonegadas, há uma desigualdade adicional entre o negro e o mulato (pois este vara relativamente melhor várias das barreiras raciais camufladas).

Os fatos - e não as hipóteses - confirmam que o mito da democracia racial continua a preencher as funções de um retardador das mudanças estruturais. As elites que se apegaram a ele numa fase confusa, incerta e complexa de transição do escravismo para o trabalho livre continuam a usá-lo como expediente para "tapar o sol com a peneira" e de autocomplacência valorativa. Pois consideremos: o mito - não os fatos - permite ignorar a enormidade da preservação de desigualdades tão extremas e desumanas como são as desigualdades raciais no Brasil; dissimula que as vantagens relativas "sobem" - nunca "descem" - na pirâmide racial; e confunde as percepções e as explicações - mesmo as que se têm como "críticas", mas não vão ao fundo das coisas - das realidades cotidianas.

Onde não existe sequer democracia para o dissidente branco de elite haveria democracia racial, democracia para baixo, para os que descendem dos escravos e libertos negros ou mulatos?! Poderia existir democracia racial sem certas equivalências (não digamos igualdades) entre todas as raças?

Um mito para dissimular as coisas

A tenacidade do mito e a importância de suas funções para a "estabilidade da ordem" exigem uma reflexão política séria. De um lado, fica patente que o negro ainda é o fulcro pelo qual se poderá medir a revolução social que se desencadeou com a Abolição e com a proclamação da República (e que ainda não se concluiu). De outro, é igualmente claro que, no Brasil, as elites não concedem espaço para as camadas populares e para as classes subalternas de motu próprio. Estas têm de conquistá-lo de tal forma que o avanço apareça como "fato inevitável e consumado". O que quer dizer que, em sua tentativa de desmascaramento e de auto-afirmação, o protesto negro antecipou a substância da realidade histórica do presente que estamos enfrentando com tantas angústias e sobressaltos. Cabe às classes subalternas e às camadas populares revitalizar a República democrática, primeiro, para ajudarem a completar, em seguida, o ciclo da revolução social interrompida, e, por fim, colocarem o Brasil no fluxo das revoluções socialistas do século 20. O que sugere a complexidade do formoso destino que cabe ao negro na cena histórica e no vir a ser político. A revolução da qual ele foi o motivo não se concluiu porque ele não se converteu em seu agente - e, por isso, não podia levá-la até o fim e até ao fundo. Hoje, a oportunidade ressurge e o enigma que nos fascina consiste em verificar se o negro poderá abraçar esse destino histórico, redimindo a sociedade que o escravizou e contribuindo para libertar a Nação que voltou as costas à sua desgraça coletiva e ao seu opróbrio.

Essa interpretação global contém uma mensagem clara aos companheiros que tentam refundir e reativar o protesto negro. É preciso evitar o equívoco do "branco de elite", no qual caiu a primeira manifestação histórica do protesto negro. Nada de isolar raça e classe. Na sociedade brasileira, as categorias raciais não contêm, em si e por si mesmas, uma potencialidade revolucionária. De onde vinha o temor dos brancos, nos vários períodos escravistas? Do entroncamento entre escravidão e os estoques raciais dos quais eram retirados os contingentes que alimentavam o trabalho escravo. Essa superposição ou paralelismo (como a descreveu Caio Prado Junior) ou essa estrutura simultaneamente racial e social conferia ao escravo a condição do "vulcão que ameaçava a sociedade". A realidade histórica de hoje não é a mesma. Não obstante, desvinculada da estrutura de classes da sociedade brasileira atual, da marginalização secular que tem vitimado o negro nas várias etapas da revolução burguesa e da exploração capitalista direta ou da espoliação inerente à exclusão, os estoques raciais perdem o seu terrível potencial revolucionário e dilui-se o significado político que o negro representa como limite histórico da descolonização (negativamente) e da revolução democrática (positivamente). Portanto, para ser ativada pelo negro e pelo mulato, a negação do mito da democracia racial no plano prático exige uma estratégia de luta política corajosa, pela qual a fusão de "raça" e "classe" regule a eclosão do Povo na história.

Notas

(1) Para documentar, ver F. Fernandes. "A Integração do Negro na Sociedade de Classes", São Paulo, Editora Ática, 3a ed., vol. 1, pp. 258-259.

(2) Idem, pp. 82-83.

(3) Sobre o assunto, ver op. cit., vol. 2, todo o capítulo 1.

(4) Sobre o assunto, ver idem, todo o capítulo 2.

(5) Ver a respeito F. Fernandes, "O Negro no Mundo dos Brancos", São Paulo, Difusão Européia do Livro, esp. cap. 3 Sobre o assunto, de outra perspectiva, veja-se C.A. Hasenbalg, "Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil", Rio de Janeiro, Graal, 1979, cap. 7.

Florestan Fernandes é sociólogo, professor aposentado pelo AI-5, autor, entre outros, de "A Revolução Burguesa no Brasil" e um dos primeiros pensadores a levantar a questão da discriminação racial no Brasil.
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