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São
Paulo, domingo, 6 de maio de 1984
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O SILÊNCIO DA SEREIAS
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Franz
Kafka |
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Prova de que até meios insuficientes - infantis mesmo podem
servir à salvação:
Para se defender da sereias, Ulisses tapou o ouvidos com cera e
se fez amarrar ao mastro. Naturalmente - e desde sempre - todos
os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles
a quem as sereias já atraíam à distância;
mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar
em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos
seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém
não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse
respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes
e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus
pequenos recursos.
As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível
que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido
isso, é imaginável que alguém tenha escapado
ao seu canto; mas do seu silêncio certamente não. Contra
o sentimento de ter vencido com as próprias forças
e contra a altivez daí resultante - que tudo arrasta consigo
- não há na terra o que resista.
E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não
cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia
conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar
de felicidade no rosto de Ulisses - que não pensava em outra
coisa a não ser em cera e correntes - as fez esquecer de
todo e qualquer canto.
Ulisses no entanto - se é que se pode exprimir assim - não
ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só
ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um
instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração
funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semi-abertas,
mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que
soavam inaudíveis em torno dele. Logo, porém, tudo
deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias
literalmente desapareceram diante da sua determinação,
e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já
não as levava em conta.
Mas elas - mais belas do que nunca - esticaram o corpo e se contorceram,
deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam
as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir,
desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o
brilho do grande par de olhos de Ulisses.
Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então
aniquiladas. Mas permaneceram assim e só Ulisses escapou
delas.
De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se
que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina,
que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo.
Talvez ele tivesse realmente percebido - embora isso não
possa ser captado pela razão humana - que as sereias haviam
silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo
o jogo de aparências acima descrito.
Tradução de Modesto Carone |
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