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São
Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1984
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A USP: MITO E REALIDADE
Atravessando uma crise simultaneamente
existencial, política e moral, a USP chega aos seus 50
anos com a consciência de que é preciso um empenho
profundo na autonomização cultural para que se articule
uma investigação científica criadora, mas
sabendo ao mesmo tempo que a universidade não constitui
uma instituição isolada, sendo parte dos processos
globais da sociedade.
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Florestan
Fernades |
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A USP
completa cinquenta anos de existência sob o impulso de uma
crise profunda, cujo diagnóstico se impõe como o principal
problema àqueles que se preocupam fundamentalmente com a
vida cultural do País. Ela é, a um tempo, uma crise
existencial e uma crise política e moral. No fundo dessa
crise se encontram três fatores distintos: a tutela cultural
externa, que tomou novas direções e escapou ao nosso
controle depois de 1964; a exacerbação da dominação
elitista, consolidada unilateralmente depois de 1964 e posta em
questão nos dias que correm, sob o impacto das tendências
democráticas que voltaram a prevalecer nas principais categorias
humanas que compõem o corpo social da universidade (os professores,
os funcionários e os estudantes); a implosão do arcabouço
tecnocrático e fascista que tomou conta de todas as instituições
oficiais, de permeio à de orientação que prepondera
nos vários segmentos daquele corpo social, divididos e opostos
por contradições intestinas e por contradições
que lançam suas raízes na organização
do modo de produção capitalista e nas insuficiências
dele na chamada periferia da "civilização ocidental".
Não me é possível realizar uma análise
de todos esses aspectos (estruturais e históricos, culturais
e psicológicos) nos limites de um artigo de jornal. No entanto,
penso que é possível indicar os principais elementos
que ajudam a esclarecer e a compreender o "drama da USP".
As fronteiras e os limites de uma instituição-chave
estão sempre no fator humano. Não se pode ter uma
universidade rica em um mundo pobre ou uma universidade revolucionária
numa sociedade conservadora. O grau de riqueza, de avanço
e autonomia cultural de uma sociedade nacional delimita o grau de
efervescência e de dinamismo inventivo de uma universidade.
Contudo, esse condicionamento não é absoluto. Ele
é de grau, isto é, ele possui caráter relativo.
Com recursos reduzidos um punhado de professores, de estudantes
e de funcionários pode produzir e reproduzir uma universidade
criadora; basta que eles sejam movidos por um "idealismo universitário"
que "mova montanhas". Os ingredientes de uma situação
humana dessa natureza são institucionais e históricos.
É preciso um empenho profundo na autonomização
cultural, uma visão clara e firme de que a "revolução
pelo conhecimento e pela educação" exige que
se articule investigação cientifica criadora, invenção
tecnológica, filosófica, pedagógica, literária
e linguística com processos substantivos de mudança
econômica, cultural e política. A universidade não
constitui uma instituição isolada. Ela é parte
dos processos globais de organização e transformação
da sociedade. Se os que militam nos quadros humanos da universidade
perderem isso de vista, eles correm o risco de serem segregados
e de deixar, em consequência, a condição da
vida cultural nas mãos daqueles que vêem a mudança
cultural como uma ameaça política intolerável.
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Segundo
um figurino bicéfalo |
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Dessa
perspectiva, o que ocorreu na USP é uma repetição
do mesmo processo que reduziu a sociedade brasileira a um submundo
de senhores e de escravos, de casas grandes e de senzalas, de homens
"livres" destituídos e de mandonismo desenfreado.
Só que a reprodução não nos colocou
de volta ao passado, ao colonialismo ibérico. Ela nos projetou
na órbita da contra-revolução preventiva da
era atual. As tenazes que operavam a partir do império central
e dos tentáculos do capitalismo financeiro, se combinaram
aos tacões com esporas dos donos do poder, os quais não
precisaram de muito tempo para encurralar os universitários,
reduzi-los ao silêncio e à impotência, e para
pulverizar a reforma universitária em processo, convertendo
a universidade brasileira em um centro de retórica abstrata
e centrífuga. A própria reforma universitária
foi reformada, segundo um figurino bicéfalo, plasmado pela
usaidização (um composto híbrido, MEC-USAID)
e imposto centralizadamente pelo braço militar do regime
ditatorial. Configura-se, assim, o tríplice movimento que
estilhaçou a nossa florescente universidade. Os Estados Unidos
forneceram o cérebro com as fórmulas inovadoras seguras,
o Estado brasileiro entrou com os técnicos títeres
e a vontade "revolucionária", que impôs de
cima para baixo - como óleo de rícino - as novas normas
da "institucionalização" da vida universitária
e a própria universidade brasileira forneceu a retaguarda,
que garantiu o êxito do conformismo "institucionalizado".
Os profissionais liberais, principalmente nas principais "escolas
superiores tradicionais" - faculdades de direito, de engenharia,
de medicina, de farmácia e odontologia - erigiram-se no eixo
da referida retaguarda (na verdade, uma vanguarda da contra-revolução).
Tome-se um exemplo marcante e indiscutível. A Congregação
da Faculdade de Medicina da USP decide por maioria e impõe
ao governador Ademar de Barros a cassação dos seus
professores, incluídos numa lista de candidatos ao inquérito
policial-militar e à exclusão, elaborada por sua vez
em colaboração, por agentes do serviço de segurança
das forças armadas e por professores "democráticos"
da própria USP. Antes de ser posta em "seu lugar",
a universidade brasileira fora empolgada por elementos "conservadores"
que conspiravam dentro do meio universitário mais seleto
e com os paladinos nacionais e estrangeiros da contra-revolução
preventiva.
A USP revela a sua vitalidade e a sua franqueza quando é
posta em conforto com os "idos de 64". A vitalidade é
patente. Nela não vingou a atitude que eu próprio
defendia - "por nós não passarão".
Mas manifestou-se uma dupla capacidade de resistência, que
amolgou a instituição aos seus algozes internos e
externos, permitindo-lhes, porém, a médio prazo, preservar
o patamar de desenvolvimento atingindo e ganhar a batalha política
travada contra a ditadura. Os leitores de Tolstoi devem lembrar-se
da estratégia Kutuzov, recolher-se, hibernar, crescer sob
a adversidade não equivale a uma derrota. É uma reação
orgânica de autodefesa coletiva, às vezes instintiva,
outras vezes calculada. No caso da USP houve um complexo amálgama
de sentimentos, orientações de comportamento e de
cálculo ocasional. O produto final revela-se hoje. O que
a USP perdeu sob a ditadura é algo que não deve desalentar
ninguém. Os gerentes do novo modelo universitário
"autoritário" foram, de fato, derrotados. Sua reforma
da reforma está aí, sob condenação geral,
em vias de desagregação e sob o impacto de uma condenação
total insuperável. A universidade continuou a crescer, com
ritmos mais lentos e difíceis, mas hoje é possível
assinalar que as feridas estão sendo curadas (ou serão
curadas nos próximos anos) e que o regime ditadorial saiu
derrotado e desmoralizado dessa aventura, na qual lançou
todo o peso da "institucionalização". Tudo
isso foi produto de um processo que os sociólogos chamam
espontâneo, de tendência ao crescimento incoercível
de uma instituição. Ao lado dele desabrochou uma resistência
efetiva, em alguns aspectos ostensiva, em outros necessariamente
encoberta. As proporções dessa resistência podem
parecer desalentadoras, especialmente para os que encaram as universidades
de uma perspectiva falsa e simplista. Elas não só
existiram, elas galvanizaram os avanços que se deram através
dos processos orgânicos de autodefesa espontânea. A
sua principal função consistiu em ligar passado e
presente, em manter a continuidade (em níveis possíveis,
muito baixos) da conquista de novos rumos e de novas fronteiras
intelectuais e políticas, em engrenar a deliberação
de resistir à oposição direta e à revitalização
dos "espaços democráticos" internos. Por
isso, nem bem o regime ditatorial entrou em crise, uma parcela da
universidade saltava para a linha de frente, retomando posições
antigas de lutas e procurando soldar a adesão dos universitários
à revolução democrática in flux.
Não obstante, no decorrer dessa penosa evolução,
o mito da USP foi desmascarado e as realidades provaram-se duras
demais para a tensa relação entre meios e fins que
se delineou com a crise da ditadura (que seria melhor designar como
a crise prolongada do poder burguês no Brasil). Diga-se de
passagem: o mito da USP não foi criado e reforçado
pelos filhos rebeldes dessa instituição. Ele foi montado
e reforçado pelos vários expoentes do nosso "pensamento
liberal", envolvidos com a fundação da USP e
da sua Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (ou com o
culto dessa fundação). Esse mito é inconsistente
e tão mentiroso quanto outros mitos elitistas, disseminados
a partir da situação de interesses dos estratos dominantes
das classes possuidoras, como os mitos da democracia racial, da
consciência nacional cristã, da identificação
democrática da livre iniciativa, do caráter nacional
do intervencionismo estatal, etc. Os debates sobre o projeto de
lei sobre as diretrizes e bases da educação nacional
e sobre as reformas de base (incluídas entre elas a reforma
universitária) desmascararam as falsas bandeiras do elitismo
crioulo e puseram em evidência que os egressos da USP - especialmente
aqueles que formavam os quadros mais ou menos radicais de professores
e estudantes - pretendiam criar um fosso completo entre as primitivas
estruturas e as premissas filosóficas originárias
da instituição e as novas formas organizativas, impostas
pelas condições reais de existência prevalecentes
no Brasil. Os "ideais dos fundadores" eram sob muitos
aspectos retrógrados e eles desaguavam numa água morna,
num imobilismo cultural, cuja principal motivação
consistia em realimentar as elites das classes dominantes com os
"progressos do saber", isto é, sua mira se voltava
para a dominação cultural, realidade que era dissimulada
sob véus mais ou menos fantasiosos de europeizar (ou norte-americanizar)
a formação intelectual e "humanística"
dos estudantes universitários.
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O
predomínio da conciliação de interesses
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Ora,
a fraqueza da USP não está onde muitos pensam, no
fato de ela ter sido vergada pelos donos do poder de fora e de dentro
da instituição. Ela se evidencia em um plano mais
alto e complexo. No fato de o primitivo mito ter se esfarelado sem
provocar uma crise da dominação dos interesses econômicos,
sociais e políticos dos representantes mais ousados e reacionários
dos profissionais liberais (os quais endossaram aquele mito sem
compartilhar da crença em sua eficácia ou malgrado
hostilizarem a própria idéia de universidade). Ou,
em outras palavras, no fato doloroso de não ter havido combate
sem tréguas pelos que optaram pela mudança cultural
e pela reforma universitária autêntica contra os seus
adversários. Prevaleceu uma posição de barganha,
de conciliação de interesse, quando, na verdade, a
única composição que os adversários
de uma posição mais avançada aceitavam era
a de rendição passiva dos antagonistas. Como aconteceu
na esfera do poder político, na esfera da cultura repetiu-se
a propensão de não levar as coisas até a mesa
de cirurgia. Essa fraqueza é sintomática. Ela indica
que a instituição não tinha uma reserva de
poder de decisão que conferisse aos universitários
uma capacidade de luta congruente com a causa de defesa da própria
universidade. As forças que dominaram na sociedade global
tornaram-se automaticamente vitoriosa no âmbio da sociedade
menor, composta pela USP, independentemente das patranhas do mito
em que ela era sustentada ideologicamente. É preciso dar
a maior atenção a este fato. Os universitários
têm de aprender com ele e através dele. Cabe aos elementos
humanos que povoam e dão vida à USP engendrar essa
base de poder de decisão. É capcioso dizer-se que,
não possuindo autonomia financeira, a USP não pode
ter nenhuma espécie de autonomia cultural e política.
No entrechoque entre correntes antagônicas, a margem do poder
de decisão tanto poderia ter ficado presa à inspiração
conservadora de manter e fortalecer os controles externos anti-universitários
dentro da USP, quanto poderia ter se vincado à inspiração
inovadora e autonomizadora de estabelecer elos fortes entre a transformação
da universidade e a transformação da sociedade. A
revolução democrática não é uma
realidade que passa por fora da USP, por ter seu centro principal
no seio da sociedade nacional. Por ser essencial à sociedade
nacional, ela constitui uma condição sine qua non
da forma de existência e do rendimento institucional da USP.
Essa fraqueza foi dinamizada e ampliada pelo confusão que
paira sobre as relações das classes neste momento
de crise da ditadura. Há um esforço enorme na direção
de conter o envolvimento de professores, estudantes e funcionários
na crise atuais de instauração de novos padrões
políticos de democracia real. Os próprios estudantes,
professores e funcionários procuram saídas novas,
mas esbarram em fragmentos políticas que fortalecem os "paladinos
da ordem". Nesse ponto, é preciso sepultar o passado.
Os velhos ideais de reforma universitária enterrados pela
histórias e o que sobrou deles, na prática "autoritária"
vigente, merece também a lata de lixo. Começar de
novo, superar os enganos (e os acertos ocasionais) da experiência
acumulada, eis o busílis. A nossa universidade concentrou-se
econômica, social e racialmente de tal maneira, que ela não
vale uma missa. Professores e estudantes, congregados em torno da
Andes, já deram um bom salto nessa direção.
No entanto, impõe-se ir além. Ao "mito original",
cumpre opor as fórmulas que respondem a uma sociedade que
se abre para a luta de classes, para a revolução democrática
e para a autonomia da Nação. Não se pode apenas
pensar cicatrizes: o que a universidade perdeu no campo da pesquisa,
na esfera do ensino, na deterioração dos níveis
de salários e no rebaixamento da condição humana
do professor. Essas calamidades, produzidas por uma ditadura que
foi batida e precisa ser extinta, não podem definir objetivos
de médio e de largo prazos. Esses objetivos têm que
ver com um novo engajamento intelectual e político, que obrigue
professores, estudantes e funcionários a se definirem diante
dos dramas materiais e humanos candentes da sociedade brasileira,
vinculadas à miséria de mais de um quarto da população,
a formas predatórias persistentes de espoliação
da força de trabalho e de alienação do trabalhador,
de prepotência dos donos do poder e de seu Estado tirânico,
seja ele "democrático" ou "ditatorial",
etc.
A USP sempre extraiu de São Paulo - da cidade, diretamente;
do Estado, por vários canais concomitantes - uma grande parte
de sua vitalidade. É necessário que os elementos humanos
mais ativos dentro dela tomem consciência das possibilidades
(e dos deveres) que essa condição favorável
encerra. Os derrotados de 1932 punham à frente de tudo a
reciclagem das elites e de seu potencial de auto-realização.
Nos dias que correm, no ano do cinquentenário, sobem à
tona outros vínculos - com as classes trabalhadoras, o exército
de miseráveis soterrados nas favelas, as exigências
da conquista de um Estado democrático (como mero ponto de
partida de um novo desenvolvimento histórico), do combate
à dominação imperialista, etc. - e, como consequências
menores mas urgentes, as exigências gritantes de recuperação
institucional, de democratização da vida universitária,
de conquista das eleições diretas, de repulsa à
política econômica suicida acordada com o FMI, etc.
Em conjunto, tudo isso põe à frente o ideal de uma
universidade aberta e democrática, fundida aos interesses
da maioria, isto é, da massa da população pobre
e trabalhadora. Esse é o desafio do fim do século
20 e da transição para o século 21. O evolver
histórico deixa para trás, portanto, seja a fórmula
oligárguico-liberal da "grande universidade", seja
a fórmula democrático-burguesa de defesa da escola
pública e da "universidade crítica". Os
quatros humanos da universidade vêem-se na contingência
de forjar as armas de luta intelectual que se adequam a essa realidade.
Não basta mais o radicalismo intelectual do passado - da
década de 40 ou dos idos de 60. O socialismo revolucionário
delineia-se, naturalmente, como o fundamento filosófico e
a pedra de toque da concepção emergente de universidade.
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Universidade
e socialismo |
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Existe uma distância enorme entre tais exigências e
as confusões que grassam no meio universitário. A
"consciência culpada" faz vítimas no campo
errado. Uma tendência à evasão, à autopunição
ou à autopiedade são frutos podres de uma opressão
concentrada e institucionalizada, que o universitário - especialmente
se for professor ou estudante - só pode compensar ou suplantar
se ele se colocar contra a corrente. Por isso, a questão
da responsabilidade intelectual e do papel político do universitário
se cruza, hoje, com o socialismo revolucionário e o que ele
representa para a libertação de todo um povo. Não
se pode enfrentar tal questão com posições
importadas, made in Europa ou Estados Unidos, através das
equações que desembocam em um ativismo intelectuais
abstrato e utópico. Por maior respeito que se tenha pelos
"grandes nomes" que dominam a rebeldia predominantemente
compensatória, que está em ebulição
nesses países capitalistas avançados, os nossos problemas
práticos são outros e não começam na
liberdade de catedra nem terminam na preservação de
certos níveis de democracia já instaurados. O intelectual
universitário, dissidente ou revolucionário, não
pode ignorar a massa de miséria e de miseráveis e
o que representa a necessidade de difundir o socialismo como requisito
do tornar-se humano, do nascer para o mundo e da participação
política no movimento de transformação revolucionária
da economia, da cultura e da sociedade. Não é possivel,
nos limites históricos de nossa condição humana,
dissociar a universidade do socialismo revolucionário ou
supor que a democracia possa brotar e crescer sem que as massas
mais humildes da população trabalhadora tenham o seu
horizonte cultural e sua consciência social alterados pela
absorção de ideais e valores socialistas.
Dessa perspectiva, ao defrontar-se com a destruição
de um mito funesto, desorientador, a USP vê-se face a face
com os contornos do mundo do futuro, da sociedade democrática
a ser criada pela atividade das massas trabalhadoras. É óbvio
que a realidade imperativa, que se desenha nitidamente, tem que
ver com a relação da universidade com essas massas,
com o uso que a sociedade tem feito e deverá fazer da universidade,
e com o papel que os universitários devem desempenhar em
ambas as direções. Ou aceitar a segregação
em um nicho aparentemente dourado, que antigamente se chamava de
"torre de marfim", ou arregaçar as mangas e meter-se
denominadamente na construção simultânea do
socialismo revolucionário e da universidade liberada da servidão
à ordem vigente e às suas iniquidades. Não
existe meio termo neste fim de século, pois a equação
é exclusivista, não por culpa dos intelectuais e da
universidade: ou contra-revolução preventiva e universidade
confinada; ou revolução socialista e universidade
autônoma. Os paralelos com o "socialismo real",
servidos na mesa de propaganda ou nascidos de convicções
respeitáveis, não nos deve afastar do caminho certo.
A universidade da especialização, da educação
de uma minoria e da formação de elites culturais,
administrativas e políticas nada oferece à revolução
democrática que abala o Brasil e toda a América Latina.
A época da revolução chegou para USP e, se
ela não souber discerni-la, enfrentá-la e servi-la,
ela sofrerá o destino que nem a ditadura conseguiu impor-lhe
- converter-se numa gigantesca instituição morta.
Esta discussão pode parecer irrealista. Os últimos
vinte anos demostram que a ordem social vigente prefere castrar
a universidade, sufocar sua contribuição ao pensamento
e degradar todo o sistema de ensino superior a admitir maior tolerância
no fluxo do conflito cultural e educacional. A USP serve como teste
exemplar, pois ela foi a universidade brasileira que sofreu mais
a fundo esses processos destrutivos de resistência brutal
à mudança. Como fundamentar, pois, a alternativa apontada?
A época atual, dizem os especialistas, não se caracteriza,
historicamente, pela eliminação do conflito por qualquer
meio? Eu não compartilho esse ponto de vista e penso que
tanto sob o "capitalismo tardio", quanto sob o socialismo
de transição vivemos uma fase provisória de
contenção e de dissuasão do conflito. É
da natureza de ambos os regimes que eles alimentam contradições
que só podem resolver-se pela via do conflito. Supor o contrário
seria o mesmo que admitir a extinção da história
e do dinamismo das civilizações. Por mais prolongada
que seja essa fase, meio século, um século ou mais,
enquanto não forem suprimidas socialmente as causas dos conflitos,
estes não desaparecerão historicamente. Por isso é
que os quadros humanos contam como fatores essenciais das tendências
ao conservantismo e ao reacinarismo ou ao reformismo e ao revolucionarismo
na dinâmica institucional das universidade. A USP atravessou
um período de forte contenção conservadora
e reacionária, de verdadeiro assalto à razão.
A própria ordem social que fomentou essa evolução
certamente será levada a fomentar uma evolução
inversa: é como se existissem várias universidades
dentro da USP, que respondem a diferentes "idades da inteligência".
A pressão do capital criou problemas que só podem
ser resolvidos através da pressão antagônica
do trabalho. O socialismo aparece como a única via que pode
retirar tais problemas do agravamento contínuo e deslocá-los
para uma esfera de solução racional.
Desse ângulo, sem qualquer reducionismo simplificador, ao
estilhaçar a USP, a mão armada da burguesia plantou
um processo que não pode ser detido. Professores, estudantes
e funcionários aprenderam rapidamente - não por via
ideológica, mas pela experiência cotidiana, direta
- quão facilmente se fecha a ordem social vigente, quais
são as solidariedades com que podem contar e por onde passa
o eixo da revolução democrática em nosso meio
ambiente. O que se chamou, por equívoco, de o projeto crítico
de reforma da USP, na década de 60, não traduzia mais
que um momento de euforia da classe média radical. Existem
vários projetos possíveis, todos conjunturais e provisórios
e a própria valorização da universidade como
instituição-chave constitui uma realidade histórica
e contingente. Os setores mais estáveis dos quadros humanos
arcam com o peso maior do questionamento negativo da instituição;
os setores mais instáveis, por sua vez, equacionam as insatisfações
mais voláteis, as quais contribuem para alterá-la
de geração a geração (ou de uma fração
de geração a outra). Se a luta de classe se torna
presente nesse envolvimento político da universidade com
a história, revolução e contra-revolução
se manifestam como pólos orientadores da qualidade da mudança
ou da estabilidade provocadas. A USP foi sugada nessa voragem e
aparentemente destrocada. No entanto, ela ressurge da violência
arrasadora que lhe foi imposta e da amargura do tolhimento com as
marcas da idade madura e da liberação política
da razão: ela não pode enganar-se de novo, mergulhar
no mito de suas origens castradoras, porque foi despertada para
as suas funções reais, que dizem respeito à
consciência e à defesa da liberdade maior, a liberdade
igualitária.
Os quadros humanos que se mantiveram divergentes sob as condições
apontadas ou que se formaram sob os embates com as irracionalidades
externas do subcapitalismo financeiro fazem parte das forças
que - como os proletários - constroem o futuro no presente,
dentro e fora da universidade. Eles são naturalmente socialistas,
enquadram-se como trabalhadores intelectuais, apelam para a sindicalização
e se percebem como força de trabalho, quadros intelectuais
da massa de trabalhadores da Nação e do mundo. A ruptura
com o mito não é meramente ideológico. O sonho
não é posto na USP, mas no que a USP pode fazer concretamente,
seja para adequar o socialismo revolucionário ao Brasil e
à América Latina, seja para apoiar a luta das classes
trabalhadoras contra as iniquidades do capital e da sociedade de
classes, seja para converter o socialismo revolucionário
em realidade histórica. Em suma, a USP deixa de ser um fim
em si para constitui-se em um meio para vários fins, todos
vinculados ao combate do trabalho alienado e da sociedade alienante.
Parecia que o pesadelo da burguesia desaparecera graças à
repressão que pusera a USP "em seu lugar". Todavia,
a história reservou à USP a oportunidade para forjar
o seu próprio lugar e de recomeçar, cinquentona, uma
nova trajetória em busca de espaços e de liberdades
que não existiam quando ela foi instituída e que,
ainda hoje, só povoam os sonhos dos anarquistas, dos socialistas
e dos comunistas. |
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