São Paulo, domingo, 28 de junho de 1981



MASCULINO/FEMININO
(cenas contemporâneas)

Modesto Carone

Rodeio

Eu acabava de fechar os olhos quando Estela entrou trotando pelo quarto. Era fim de tarde e o sol do outono brilhava nas venezianas; eu tinha ido dormir cedo para compensar as noites em claro dedicadas à minha primeira novela de televisão. Apesar das dificuldades o entrecho estava armado e eu podia imaginar seu impacto sobre o público; mesmo assim as pesquisas de opinião me atormentavam, uma vez que dependia delas o êxito do meu trabalho. Estela não participava dessa ansiedade porque desconfiava das minhas personagens ao ponto de negar-lhes qualquer fundamento; além do mais estava assegurada desde criança por uma herança de família. Nessas circunstâncias era natural que minha irritação crescesse à medida que a história chegava ao desenlace. Isso explica que eu tenha me inflamado quando Estela entrou trotando pelo quarto tanto é verdade que ao enxergá-la de costas pulei da cama pronto a cavalgá-la. Evidentemente ela se assustou com o peso do corpo e começou a corcovear no assoalho; mas eu a mantive sob controle segurando-a pelas orelhas, lembro-me de soltar gritos de júbilo enquanto conservava as pernas enganchadas nas suas ancas; Estela só me derrubou no chão quando a noite caía sobre as janelas. De qualquer forma levantei-me esperançoso, pois ao voltar para a cama mal percebi meu nariz ensanguentado num close do vídeo.

Chamas

Quando abri a porta do chalé o cheiro de mofo me fez recuar. Marina estava a um passo de mim, mas não deu a menor importância ao movimento das pernas andando para trás. Excitada com a subida da serra ainda retinha nos olhos a seiva da mata: notei isso ao voltar para o carro, apanhar nossas malas. Elas não pesavam quase nada e eu não precisava de ajuda; no entanto demorei mais que o necessário para erguer o capô e carregá-las até o quarto. Minha justificativa era aproveitar o intervalo para respirar o ar montanha, mas no fundo eu temia aquele encontro na armação de madeira. Não que ela fosse precária ou desconfortável; pelo contrário, tinha a solidez de um bangalô. O que me inquietava era a promessa de Marina de vestir a camisola vermelha: certamente iria usá-la logo na primeira noite. Eu estava ciente de que ela atendia a um apelo meu - o que não me impedia de avaliar o perigo que o gesto representava. Pois a experiência mostrava que o traço de caráter mais manifesto de Marina era o desejo de anulação. Tanto que não hesitou em desfazer a mala na minha frente e estender a camisola em cima da colcha. O choque foi tão poderoso que tive de caminhar até o banheiro, travar a fechadura e sentar-me na tampa do vaso. Enquanto isso ouvia as chamas crepitando nos caibros. Ao reparar que a fumaça se infiltrava por baixo da porta e ameaçava me asfixiar, girei o trinco e saltei sobre a cama como quem se salva através do sacrifício.

Determinação

Lívia estava de cócoras na cama e eu a observava do meu ângulo predileto quando os flashes estouraram e ela desapareceu entre as cobertas. Naturalmente procurei acalmá-la o quanto pude, mas meus esforços foram inúteis: afinal ninguém vê a própria intimidade violada sem ao menos se retrair. Percebendo a nuance é que me voltei para os fotógrafos e os intimei a sair do quarto; apesar da intrusão entretanto eles estavam tão entretidos com as suas máquinas que não deram a mínima resposta. Hoje atribuo ao zelo profissional aquela distorção de comportamento; o inconcebível era a insistência numa situação inusitada. Foi pensando isso que me aproximei da guarda da cama e enfiei a mão sob o travesseiro onde conservo a arma indispensável à minha segurança. Nesse lapso os fotógrafos continuaram testando os fotômetros e trocando os filmes por outros mais sensíveis; quando levantaram a vista já estavam na minha mira e iniciaram a fuga para os cantos do quarto. Como não perco a calma nessas ocasiões esperei que se acomodassem nos seus refúgios e só então comecei a atirar. Os disparos foram certeiros menos pela destreza do que pela excelência das balas; de fato o material que uso é suficientemente moderno para corrigir imperfeições pessoais. Não admira que em alguns segundos os invasores estivessem estendidos no chão ao lado das suas poças. Assim mesmo tive o cuidado de examiná-los de perto e de abater os que ainda agonizavam uma vez que o sofrimento prolongado parecia supérfluo; só me dei por satisfeito no instante em que a imobilidade geral coincidiu com a fumaça expelida pela janela. Faltava contudo chamar Lívia de volta à superfície e a tarefa se complicava porque ela tinha adormecido no calor das cobertas. Mal despertou, porém, pedi que ficasse na antiga posição e constatei lisonjeado que ela se punha de cócoras com o sorriso costumeiro nos lábios. Sem dúvida as coisas já não eram as mesmas, pois com o passar do tempo o crepúsculo escorria pelas vidraças. Seja como for sentei-me na poltrona aos pés da cama e me fixei em Lívia como num espetáculo. É possível que ainda estivesse excitado, mas não posso negar que naquela hora a cena recente valorizava a contemplação: a tanto leva o poder do fato consumado.
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