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São
Paulo, domingo, 3 de abril de 1977
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O PÃO FRANCÊS
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J.B.
Natali
de Paris |
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O historiador que se preza costuma associar as revoltas populares
a uma equação rudimentar pela qual o poder aquisitivo
do Zé povinho se exprime em pão. Exemplo: os artesães
pobres ganhavam 20 vinténs por mês na França
em 1789. Um quilo de pão custava quatro vinténs. Um
salário medio equivalia, assim, a cinco quilos mensais de
pão. É pouco. Muito pouco. Lembrem-se que 1789 foi
o ano da queda da Bastilha e do início da Revolução
em que o povo esteve mais ou menos por cima durante um período
agitado que se prolongou por cinco anos.
Qualificar uma coisa como trivial corresponde muitas vezes a não
prestar atenção a tudo o que ela pode esconder de
interesse social, econômico e histórico. É o
que acontece, como se vê, com o pão. Fabricado há
milênios como alimento de base e seguindo um número
incontável de formas e receitas, o pão corre o risco
de passar desapercebido. Foi por isso que há cinco anos um
grande comerciante francês de farinha, Jacques Lorch, deu
uma de mecenas e instalou no sotão de sua empresa, num suburbio
de Paris, as peças de sua coleção particular
de objetos diretamente ligados a este alimento. Fundou um Museu.
O Museu Francês do Pão. E a coleção se
amplia a olhos vistos com doações do mundo inteiro.
Beleza de museu.
Numa vitrina em lugar de honra, há sete pães assados
por volta de 2.400 antes de Cristo. foram encontrados em 1913 junto
ao sarcófago de um comerciante egipcio. Pãozinho velho
pra danar. Mais antigo até que os pães citados pela
Biblia, e que fizeram as delicias simbólicas de qualquer
linguagem religiosa. Santo Honório e São Roque, aliás,
associam-se biograficamente ao pão. O primeiro deles surgiu
abundantemente em esculturas empunhando instrumentos de padeiro.
Recuperação religiosa a parte, vale a pena conhecer
o mecanismo comercial e industrial do pão antes mesmo que
se inventasse o capitalismo. Naquela época, o padeiro era
na Europa um artesão que não atuava nem um pouco como
pequeno empresario (comprando uma mateira prima - a farinha - e
vendendo-a no varejo depois de um processo de transformação).
A coisa funciona em outros moldes. Os detentores de estoques de
farinha de trigo entregavam suas sacas ao artesão que, para
garantir a procedência da materia prima, era obrigado a comercializar
o produto final devidamente "carimbado". Assim, os filões
traziam o sinal do dono da farinha da mesma maneira com que nossos
fazendeiros marcam a ferro suas rezes. Tratava-se de peças
metálicas ou de madeira, esculpidas em alto relevo e pressionadas
contra a massa do pão antes que ela fosse ao forno.
Detalhe importante: o carimbo também distinguia o pão
utilizado para a alimentação popular do pão
(devidamente bento) consumido em abadias e mosteiros.
Há ainda forminhas metálicas para a fabricação
de bolos. Elas não serviam apenas para padronizar o formato
do produto final, mas também para identificar o artesão
que o assou. Já no século 18 antes de Cristo - vejam
como faz tempo - os sirios já apelavam para o macete. Dois
mil anos depois, badalava em Roma um padeiro chamado Dulciarius,
cuja forma - hoje exposta no museu francês - trazia a inscrição
abreviada "Dulc" e, de lambuja, uma escultura da deusa
Vitoria.
Estes exemplos permitem descobrir no pão todo um valor simbólico.
De uma simbologia ligada à própria existência
individual do homem, já que durante séculos a idéia
de vida significava alimentação e o consumo se reduzia
à satisfação de necessidades elementares (comer
é a principal delas).
O pão como símbolo está igualmente presente
em toda uma linguagem política. Basta ver a maneira com que
ele aparece na época da Revolução Francesa.
Na cidade de Lyon, em 1793, a administração baixou
um decreto proibindo a feitura de dois pães de qualidades
diferentes - um de teor nutritivo mais pobre, para os proletas,
e outro mais sofisticados para os burgueses e nobres que acabavam
de perder seus títulos de nobreza mas ainda mantinham os
cofres bem guarnecidos de dinheiro. Criava-se assim, por lei, o
"pão da igualdade". O artigo oitavo do decreto
é implícito: "Na medida em que a riqueza e a
pobreza devem desaparecer num regime de igualdade, não mais
se fabricará um pão de farinha de trigo para o rico
e um pão de debulha para o pobre".
Claro que tal lei não foi cumprida. Um ano depois de sua
publicação - na contra-revolução de
8 Thermidor - punha-se fim a essa subversão danada e voltava-se
a produzir pães que correspondessem aos diferentes graus
de poder aquisitivo da população. O pão chique
continuou a ser consumido pelos imbecis que acharam adorável
a tirada da rainha Maria Antonieta, que ao ser cercada em Versalhes
pelo povinho faminto que exigia pão, respondeu que "se
eles não tinham pão, que comessem bolo".
E no falar em reis e rainhas, o Museu possuiu em seu acervo documentos
intitulados "comptes de bouche": orçamentos da
despensa da côrte, com a relação detalhada da
farinha comprada e da quantidade de pães que se fabricou
com ela. Muito menos que uma documentação para a posteridade,
essas "comptes" serviam de instrumento burocrático
de controle. Era preciso saber se os artesões não
roubavam para consumirem em surdina. Catarina de Medicis e Luís
XIV eram bem conscienciosos em relação ao assunto.
Mas não é apenas de museus e dados históricos
que se constroi um quadro realista sobre a importância do
pão na vida francesa. É bem verdade que o produto
continua definindo em fotografias e charges um dos esteriótipos
preferidos do cidadão local. A imagem não corresponde
mais ao nível de consumo de hoje em dia (66 quilos por ano
para cada um dos 50 milhões de franceses, quantidade inferior
em dois terços à consumida há 80 anos).
Corriqueiro, o pão possui seus produtores perfeitamente enquadrados
nos parâmetros do esnobismo. É o caso da família
Poilaine, proprietária de duas padarias disputadíssimas
em Paris, elas produzem diariamente de 800 a 1000 pães diferentes
(com variações de receita e de dimensão). Não
toleram o aquecimento a gás para seus fornos. Tudo a fogo
de lenha. Na matriz - rue du Cherche-Midi - aquecem a 230 graus
um forno de pedra construído no século XI no subsolo
de uma abadia.
Mas o aspecto inédito das padarias Poilaine consiste na pureza
dos ingredientes. O trigo é moído em mós de
pedra (nada de moedores mecânicos!), e o fermento natural
não contém nenhum aditivo químico. As pás
com que oito artesões trabalham são de madeira. Dizem
que as de metal prejudicam a uniformidade da assadura. Para compensar
essas frescuras todas, muita gente não hesita em pagar 20
a 30 por cento a mais que numa padaria normal, onde - detalhe importante
para o público brasileiro - sempre foi proibida a confecção
de pães com outro ingrediente de base a não ser farinha
de trigo puríssima.
A Poilaine tem entre seus clientes toda a turma que os cronistas
sociais sem imaginação designam como "top-jet".
O presidente da Coca-Cola recebe mensalmente por avião uma
leva de massa congelada para que sua empregada vá fabricando
seu pãozinho paulatinamente. Salvador Dali certa vez comprou
quilos da massa para fabricar uma enorme escultura. Catherine Deneuve
e alguns emires árabes estão entre os que se nutrem
diariamente "chez" Poilaine.
O caso deste padeiro bem sucedido exemplifica a capacidade da sociedade
francesa de valorizar seu pão em termos de requinte. Um requinte
muitas vezes importado de outro países europeus e imediatamente
incorporado aos hábitos locais. É o que ocorreu com
o "croissant", pãozinho em forma de meia-lua, feito
com bastante manteiga. Pouca gente sabe que ele é de origem
austríaca. Aliás, a palavra "croissant"
é uma tradução do alemão "hornchen"
(pequena lua). A historinha é a seguinte. Em 1689 os turcos
cercavam Viena mas não chegaram a se apoderar da cidade.
Foram derrotados por Sobieski. Mas os padeiros vienenses tinham
mesmo assim produzido pãezinhos em forma de quarto-crescente.
Talvez para badalar os invasores. A moda pegou e hoje num monte
de lugares dos quatro cantos do mundo encontra-se "croissants"
apresentados como um produto genuinamente importado da tradição
francesa. |
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