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São
Paulo, domingo, 6 de dezembro de 1981
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ENTRE O ELITISMO E O POPULISMO, O ÁRDUO CAMINHO DAS ARTES
PLÁSTICAS
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"Artes plásticas
no Brasil hoje" foi o tema de debate realizado a 10 de novembro
último no auditório desta "Folha".
Centrado preferencialmente sobre as relações do artista
e da obra de arte com a sociedade e a cultura que o circundam, ele
abrangeu, entretanto, um espectro bem mais amplo, com a participação
do público. Na mesa, estavam a artista plástica Anésia
Pacheco e Chaves (coordenadora), o arquiteto Paulo Mendes da Rocha
e os críticos Aracy Amaral, Olívio Tavares de Araújo
e Fábio Magalhães, diretor da Pinacoteca do Estado.
Damos a seguir um resumo dos principais momentos da discussão.
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ANÉSIA - Se todos concordarem, gostaria de dedicar este
debate à memória de Mário Pedrosa, recentemente
falecido. Acho mais apropriado lhe dedicar um debate do que um minuto
de silêncio, já que ele batalhou a vida inteira pela
livre discussão e livre expressão do pensamento. Nosso
tema é o papel social das artes plásticas no Brasil
hoje, isto é, aqui e agora. Significará isso que renunciaremos
a uma abordagem mais generalizadora da questão artística
para só falar de problemas imediatos e locais, como por exemplo,
o mercado de arte no País ou a profissionalização
do artista ou a arte nacional? Penso que não e mesmo que
falemos só disso não se falará só disso.
Como separar a chamada realidade dos conceitos e preconceitos? Falaremos,
portanto, daquilo que aqui e agora é arte para nós,
isto é, de todos os invólucros culturais que, através
do tempo, constituíram a experiência artística
que vivemos: nós somos os gregos, o racionalismo francês,
a metafísica alemã, o índigo, o negro, o imigrante
e até as vagas noções de cultura oriental que
assimilamos à nossa maneira. A propósito, lembro que
Bob Wilson, numa peça que retrata o cotidiano de uma família
americana de classe média, coloca como personagens figuras
históricas como Cleópatra ou Freud. Nosso debate está,
pois, aberto em todas as direções.
Vivemos agora os resíduos de muitas culturas e em nossa cultura
em crise esses resíduos ao mesmo tempo que são queridos
- afinal também somos esses resíduos - tornaram-se
asfixiantes e entravam o caminho do futuro. O que fazer com eles
já que são principalmente o resultado de uma cultura
oficial sempre vinculada ao poder?
Os resíduos das culturas chamadas populares não entraram
para a história com H maiúsculo, constituindo uma
outra história. Existem, é claro, inúmeras
formas de expressão criativa não institucionalizadas
e que não são cúmplices da dominação
e do classismo. Até que ponto elas podem ser independentes
e até que ponto são influenciadas pela cultura oficial
é a pergunta que se coloca. Se a cultura oficial esbarra
hoje num impasse é porque está vinculada a um poder
opressivo que não cria mais nada, apenas repetindo os esquemas
anteriores com pequenas variações.
Mas em relação às outras formas afastadas do
poder, a que autonomia poderão aspirar, e se liquidarem os
resíduos do poder cultural, como resolverão o problema
da separação entre uma arte de elite, que repete os
valores da classe dominante servindo aos seus interesses, e uma
arte popular, terminologia que reproduz o padrão de submissão
como forma de existência. Para muitos, a "boa arte"
é aquela da elite cultura; a outra é pitoresca ou
incomum.
Comum falar de arte e identidade nacionais, quando essa divisão
permanece neste País, em que a elite só pode ser aquela
cúmplice da economia multinacional e da cultura importada?
O popular, por sua vez, ou torna-se caricatura dessa elite ou é
relegado ao gueto folclórico ou é eliminado pela força,
quando coloca questões menos alienantes e pitorescas. Como
reivindicar o nacional quando o pensamento que nos permitiria constituir
um País de fato independente, se dá em termos internacionais?
É óbvio que o questionamento da economia alienante,
da cultura e sociedade de dominação não é
apenas nacional, embora possa ter características próprias.
Mas passemos adiante: o que fazer para não afundar no pessimismo
e nos resíduos ou apostar no surgimento do possível
por entre os resíduos? Se o artista como personagem parece
destinado a acabar talvez ainda lhe reste uma função:
ajudar a abrir uma brecha nesses resíduos, arcando com a
dor de sacudir dentro e fora de si mesmo a nostalgia de sua vida
histórica a eles amarrada artística e existencialmente.
Como será possível fazer isso dentro do sistema, já
que estar fora dele não parece possível? Tentei levantar
algumas questões, pois penso ser este o sentido de um debate
e o começo de qualquer possibilidade de dizer.
ARACY - Acho que a Anésia tocou em alguns pontos que
interessam a todos nós aqui, especialmente esse problema
de arte de elite e arte popular. Há cerca de um ano, escrevendo
sobre a situação das artes plásticas no Brasil,
coloquei que elas ocorriam em nosso País em três níveis:
no nível de arte ou criatividade popular, no nível
de arte regional e no nível de arte que denominamos erudita.
Dentro de arte popular eu incluía as expressões artesanais
de criatividade indígena, que ocorrem em sociedades ainda
tribais para fins de sobrevivência desses grupos, como uma
renda que pode vir de fora; também colocava a obra artesanal
como um trabalho que ajuda a renda familiar e é fruto de
uma atividade realizada sem intenções artísticas
entre aspas. Como arte regional, eu colocava aquela que ocorre nas
cidades do interior de todos os nossos Estados; quase toda cidade
possui os seus artistas locais, que têm o seu mercado, que
dão aulas para jovens ou futuros artistas e que podem, inclusive,
encaminhar-se para grandes centros urbanos.
No nível da arte popular, ela existe ou localmente ou para
fins de turismo ou para vendas em butiques de artesanato ou lojas
de arte indígena, que se multiplicam hoje, criando uma espécie
de esnobismo novo pelo produto artesanal popular retirado de seu
contexto. Num País onde grande parte da população
não tem sequer a possibilidade de ganhar o salário
mínimo, não é de estranhar que esse artesanato
seja produzido de forma qualitativamente inferior, desde que dê
possibilidade de sobrevivência do ponto de vista humano, para
aqueles que o praticam. Quanto à arte regional, ela pode
ter ou não o reconhecimento dos grandes centros nacionais.
Não vejo, porém, qual a importância de delimitar
se isso é arte com maiúsculo ou só arte regional,
ou seja a diluição da diluição da informação
internacionalista veiculada de Paris, Nova York, Londres ou Milão.
Esses artistas estariam sempre relegados a serem artistas que se
poderia denominar de segunda classe, como também se pode
chamá-los de cidadãos de segunda classe ou terceira
classe? Essas são perguntas cujas respostas só podem
ser muito relativas.
Mesmo os artistas que se consideram eruditos até que ponto
também não são versões provincianas
da informação internacionalista e até que ponto
são realmente eruditos? Vejo o Brasil como uma sociedade
de classes que não têm vinculação entre
si. Dentro delas, há também a prática da arte
ou do ato criador em níveis que não têm uma
intercomunicação: arte que é feita por grupos
de população que se satisfazem com isso e sobrevivem
a partir disso, mas cujos produtos podem ou não ser considerados
como obras de arte em outros níveis. Para mim, o reconhecimento
nacional ou internacional não tem maior relevância;
o importante é que esses criadores produzem e o resultado
do seu trabalho é vendido, apreciado ou consumido como arte
utilitária ou como arte de decoração.
Hoje, tenho muitas dúvidas a respeito da validade da pura
arte de especulação. Acho que nós vivemos num
País em que há tantos desníveis sociais, tantas
realidades, que seria descabido exigirmos que exista aqui um único
tipo de expressão. Há dois problemas que me preocupam
hoje em arte brasileira - falo em arte brasileira porque não
me interessa falar em termos de arte universal e sim sobre o que
se passa aqui e agora, e podemos ser universais na medida em que
possamos expressar o nosso particular. São eles: a incomunicabilidade
da obra de arte, especialmente a das chamadas expressões
artísticas mais de ponta, e a desvinculação
do artista de seu meio. Os dois implicam, evidentemente o isolacionismo
do artista.
O fazer artístico, sobretudo na arte erudita, sempre foi
considerado como uma atividade solitária em que o artista
só sai do seu ateliê quando chega o momento da apreciação
através de uma galeria, de um museu ou de uma bienal. Essa
é uma das razões pelas quais o artista tem muita dificuldade
em se vincular com o meio dentro do qual vive. Desde o Brasil-colônia,
temos uma tradição de considerar cultura como sinônimo
de elite; disso não fugiam os nossos bacharéis que
iam estudar em Coimbra e, quando voltavam, sentiam-se estrangeiros
aqui e desprezavam o meio ambiente. Essa desadaptação
é já uma constante em nosso comportamento artístico.
Mesmo o movimento modernista, que ocorreu a partir de uma pequena
elite na década de 20, não fugiu, em sua ânsia
de atualização, ao hábito de se vincular às
novidades internacionalistas que ocorrem em Paris. Foi só
numa segunda etapa que surgiram o nacionalismo e as tentativas de
expressar o que é nosso.
Houve, entretanto, uma década, a de 60, que sacudiu o mundo
em vários aspectos e sacudiu também o Brasil. Então,
nossos artistas plásticos participaram e se fizeram presentes
através de sua obra. Jovens artistas, sobretudo de São
Paulo e do Rio de Janeiro, questionavam a cidade, o dado político,
o autoritarismo vigente, e isso transparecia em seus trabalhos.
Mas a partir da década de 70 cujo início coincide
com o chamado "milagre brasileiro" e que teve certas consequências
no mercado de arte local, os artistas voltam ao ensimesmamento e
começam a produzir muito mais vinculados ao mercado de arte
ou à projeção de sua interioridade. Nada tenho
contra aqueles que o fazem, mas acho que o artista, ao mesmo tempo
que projeta essa interioridade, deve também poder manter
uma ligação efetiva com seu meio ambiente, através
de formas diferentes de participação. Essas maneiras
existem e constituem uma das formas de se sentir vivo, atuante.
No entanto, é raro encontrar um artista plástico em
espetáculo de teatro, em manifestações, em
debates sobre outros assuntos que não os ligados à
arte. Não sei por que existe esse isolacionismo do artista
plástico em relação à realidade do meio
em que vive. Onde estavam eles e de que forma transparecia em sua
obra, por exemplo, a emergência do sindicalismo em fins da
década de 70? Onde estão em suas obras, as greves,
o desemprego, o problema do transporte, da habitação
popular, do menor abandonado? Não existe porque o artista
não está presente e tudo é sempre justificado
porque ele projetaria uma outra realidade e participaria digamos
assim, da preocupação universal pela renovação
de linguagem. Em nome disso, ele se defende dizendo que não
tem nada a ver com a realidade do seu meio ambiente. Os que têm
essa preocupação são muito raros.
PAULO - Eu vou tentar, para que tenhamos mais uma conversa
com caráter de debate, costurar algumas das questões
que já foram levantadas. Sobre a questão da produção
artística, diria que ela pode ser também compreendida
como um trabalho do homem e que pode apresentar seus desvios e suas
dificuldades numa situação repressiva, que a humanidade
inteira vive hoje, com muita angústia e muita preocupação
em organizar outras situações de vida. Mas é
preciso também acentuar que vivemos um momento extraordinariamente
interessante, porque é de grandes modificações.
É uma época em que se pode dizer que o homem conhece
a si mesmo como nunca se conheceu antes. Nós conhecemos a
natureza, que tem sido historicamente um objeto da preocupação
artística, mas também conhecemos muito de nós
mesmos, como nunca antes na história. E o que é interessante
ressaltar é a questão da criatividade e da liberdade,
porque a manifestação artística é, na
verdade, uma manifestação que o homem exige para o
próprio exercício da vida. Ela é tão
diretamente ligada à invenção da vida, que
até se pode dizer que a história do homem é
a própria história da arte. Se o homem inventa a vida
que tem, o exercício da criatividade pode ser entendido como
o próprio exercício da liberdade. A produção
artística sob o aspecto formal, traduzida nos objetos de
arte, é apenas um testemunho, uma parte da manifestação
artística global. Esta última está em nossa
vida, na construção da vida do homem, no estabelecimento
de sua dimensão no mundo e no registro dessa dimensão.
FÁBIO - O caráter revolucionário implícito
na arte é o seu próprio meio de produção,
que é, como Paulo acentuou, um processo eminentemente livre.
Ele é extremamente particular em relação ao
conjunto das demais produções, pois é o artista
que controla todo o conjunto, desde a idéia inicial até
o produto final. Este é um tipo de trabalho que já
não vamos encontrar em muitas áreas da produção
hoje. A pessoa envolvida num processo industrial perde a noção
do que está produzindo e há sempre a separação
entre quem decide e quem produz.
É nesse contexto que a questão do artesanato, focalizada
pela Aracy, assume especial importância, pois na arte erudita
se negligenciou uma coisa, que passou a ter um aspecto pejorativo,
que é a reprodução de uma experiência
através da cópia e sua socialização.
Essa é uma das características fundamentais do artesanato,
pois nele o conhecimento se socializa e passa a ser de todos. Cito
o exemplo do pintor Chico da Silva, cujo estilo foi imitado, fazendo
surgir em todo o Nordeste vários Chicos da Silva.
Enquanto o artesanato valoriza a reprodução, a arte
erudita mostra verdadeiro pavor a isso, tem horror da semelhança
com outra experiência, pois a valorização do
artista nesse âmbito está ligada a um compromisso radical
com a inovação. Em consequência disso, a leitura
dessa obra de arte é cada vez mais difícil, assim
como sua comunicação, dando origem a um processo de
contradição muito dinâmico, que é interno
à própria linguagem. Creio que é em função
disso que o artista só consegue agrupar em torno de sua obra
parcelas cada vez menores da sociedade.
No entanto, em relação às relações
do artista com o processo político, creio que a Aracy foi
um pouco radical, porque inúmeros artistas têm atuado
em ambas as áreas e se preocupado em fazer pronunciamentos,
hipotecar solidariedade etc. Mas de toda forma, creio que é
extremamente difícil para um certo tipo de produção
artística dar nas obras uma resposta imediata a questões
políticas, o que foi possível entre nós, com
os expressionistas da década de 40. Um caso mais próximo,
mas bem diferente, é o de Antônio Henrique Amaral,
com o quadro "A morte no sábado" em homenagem a
Vladimir Herzog. Ele não reproduz a figura de Herzog torturado
e nem transmite de forma realista a situação da tortura
e da morte, mas é tal a sua dramaticidade, que só
nos permite fazer dele uma leitura política. A questão
de como isso seria possível mesmo em obras abstratas é
o que eu coloco para o debate.
OLÍVIO - Eu gostaria de ressaltar que estamos discutindo
o papel social das artes plásticas dentro de um conceito
específico da palavra social, esquecendo um outro sentido,
igualmente válido etimologicamente. Social vem de sócio,
o que significa a presença de uma outra pessoa e a possibilidade
de um diálogo. Então, pode-se dizer que qualquer obra
de arte está cumprindo um papel social no momento em que
alguém a contempla. Mas o sentido que estamos dando aqui
é de certa forma o de um papel de interferência, modificação
ou atuação sobre uma realidade política dada.
Não o considero menos válido que o outro, mas tenho
algum ceticismo sobre a possibilidade de uma obra do âmbito
das artes visuais desempenhar um papel modificador da realidade
social.
A Aracy destacou o aspecto da incomunicabilidade e temos que concordar
com o fato de que a produção erudita é de reduzido
consumo e de reduzidíssima compreensibilidade, porque circula
numa esfera extremamente restrita da sociedade. Por isso mesmo,
suas possibilidades modificadoras são mínimas, a não
ser num sentido muito genérico. Ela modificaria como qualquer
outra atividade do espírito humano, no sentido de que pensar
sobre um problema já é modificá-lo, mas não
no sentido estrito de mudança da realidade. O mero registro
do problema social pelo artista não tem esse poder. Mesmo
se tomarmos o exemplo de um artista profundamente preocupado com
o registro do contexto social brasileiro, pode-se indagar se seu
trabalho muda alguma coisa desse contexto. Quantas pessoas vêem
o que ele pinta e destas quantas já não conheciam
o problema antes? Nesse ponto, eu gostaria de repetir uma frase
que li em alguma parte e acho que é do crítico Frederico
Morais: uma arte efetivamente democrática só é
possível na medida em que se democratiza o próprio
processo de sua fabricação. Então, o que nós
temos que fazer é lutar para tornar acessíveis os
processos de produção dessa arte, para que muitos
outros a executem e não cair na ilusória suposição
de que arte social é aquela que fala de problemas sociais.
O realismo socialista, que se institucionalizou na URSS, não
é arte política só porque mostrar camponeses
dirigindo tratores ou ceifadeiras. Tenho certeza de que a arte de
um Pollock, pelo impacto que produz em nós e em outros seres
humanos é muito mais política, porque revoluciona
muito mais coisas.
ARACY - Apenas para responder a algumas das observações
feitas pelo Fábio e pelo Olívio, gostaria de dizer
que não posso considerar aceitável um realismo socialista
soviético, assim como me incomoda o desejo de americanização
das elites polonesas ou a tentativa de sovietização
de Cuba. Acho que não precisamos pegar modelos de fora para
saber o que devemos ou podemos fazer. Também não acho
que a figuração seja indispensável para obter
uma expressão dramática, embora não se possa
negar que a figura tem um maior poder de comunicação
e de impacto. Devido à minha preocupação com
a comunicabilidade, que está cada vez menor em relação
ao que chamamos de obras experimentais que se destinam a um público
restrito, creio que é muito importante uma arte vinculada
ao nosso cotidiano.
ANÉSIA - Concordo com você, mas gostaria de
acentuar que o problema do hermetismo não pode ser dissociado
de uma questão política. Uma determinada arte chamada
de elite dirige-se à elite, a um segmento da sociedade que
corresponde às classes dominantes e enquanto não for
rompido esse esquema, dificilmente o problema será resolvido.
Quem consome a arte de elite é quem tem poder econômico,
cultural etc. Passo agora a palavra ao público.
PLATÉIA - Não entendo toda essa mitificação
em torno do artista. Ele é apenas alguém que faz desenhos,
gravuras e pinturas e vive de sua venda.
OLÍVIO - É óbvio que existem quem faça
gravura e viva disso, assim, como é óbvio que um artista
pode sê-lo sem fazer nada disso. Gostaria de fazer algumas
observações de senso comum sobre o que se entende
por artista, que certamente nada tem a ver com a mera produção
de objetos consumíveis. A arte pressupõe a colocação
de um mecanismo artesanal a serviço de alguma coisa que é
mais que isso. O artista cria um processo de percepção
do mundo que é distinto do processo de percepção
de outros sistemas. O que distingue o homem é a sua capacidade
de simbolização, tanto que hoje não se fala
mais em "animal racional", mas em "animal simbólico",
pois é essa capacidade que o distingue do resto dos animais.
Há muitos processos de simbolização como a
linguagem, o mito, a ciência. A arte é um desses sistemas,
não redutível a nenhum outro. É um processo
de conhecimento através do qual o processo se apossa de um
dimensão do universo.
PLATÉIA - A respeito das observações
de Aracy sobre a necessidade de uma arte brasileira, acho que não
é tão fácil dividir o que é brasileiro
e o que é universal. Há uma troca constante, pois
a gente vai pra fora, aprende e volta para cá, mas também
leva coisas daqui para fora. O que eu sinto é uma falta de
reflexão dentro do espaço onde se estuda essas coisas.
Será que arte brasileira é bumba-meu-boi, arte "pop"
ou tudo isso?
ARACY - Minha posição a respeito é de
perplexidade. No entanto, creio que só interessamos aos de
fora, na medida em que nos diferenciamos deles, na medida em que
expressamos o que somos. Mas certamente um dado muito importante
que você assinalou é o da heterogeneidade das realidades
brasileiras, pois vivemos num mosaico de culturas diversas. É
nessa heterogeneidade que está a nossa riqueza e é
por isso que insisto em que se deve respeitá-la e rejeitar
a possibilidade de adotarmos um padrão uniformizador, como
ocorreu nos EUA, que apresentam diferenças regionais bem
menores. Quanto ao bumba-meu-boi, o problema não é
o de reproduzi-lo na universidade, mas de aceitar nossas manifestações
de arte periféricas ou regionais. É isso que se faz
muito pouco. Eu sou professora de história da arquitetura
na FAU e posso dizer que a história que aí se estuda
é apenas a da arquitetura assinada, o que deixa de fora uns
95% daquilo que se constrói em nossas cidades. Em vez de
considerar essas outras formas como igualmente válidas, há
uma tendência a desvalorizá-las, porque foram feitas
em mutirão ou por um empreiteiro anônimo.
ANÉSIA - Quando você diz, Aracy, que devemos
aceitar a arte popular, gostaria que você respondesse, quem
deve aceitar e se isso significa dar acesso às bienais, exposições,
universidades etc.
ARACY - Todos devem acertar, mas creio que o termo mais adequado
não é esse; tomar consciência da existência,
seria mais exato.
PAULO - Toda vez que se faz distinção entre
erudito e popular, estabelece-se uma terrível confusão.
Do ponto de vista da criatividade, não existe essa distinção.
Isso não quer dizer que o intelectual deve fugir à
sua responsabilidade e negar a informação que tem.
Creio que nossa arquitetura atual se beneficiou e se informou com
o movimento chamado moderno. Mas tem traços peculiares de
uma capacidade inventiva que corresponde às necessidades
de nosso País. Essas necessidades influenciam da mesma forma
a arte popular. E se examinarmos a questão por um outro ângulo,
verificamos que a produção erudita de certos artistas
como Picasso ou Volpi, também se populariza.
FABIO - A fronteira é realmente artificial e por isso
acho perfeito o conceito que o Olívio colocou de que arte
é uma forma de conhecimento ligada a determinadas estruturas
simbólicas. A arte popular, isto é, aquela que é
produzida espontaneamente em ambientes populares, pode apresentar
um elevado grau de sofisticação formal, o que invalida
qualquer conotação pejorativa.
A esse respeito, gostaria de contar a história do guarda
Benedito da Pinacoteca do Estado e de como ele se tornou artista.
Ele veio do Nordeste e foi contratado através de uma dessas
firmas que fornecem segurança. O que ele deveria guardar
era um edifício cheio de imagens, que contrastavam fortemente
com as que ele conhecia em seu lugar de origem. Como as pessoas
que ali vão, demonstram admiração ou respeito
por essas imagens, o guarda Benedito começou a tentar reproduzi-las
por meio do papel e do lápis. Mas ele escolhia não
aquelas que têm mais contato com imagens já vistas
e sim aquelas que lhe pareciam mais estranhas como obras modernistas
de Tarsila, Lasar Segall ou Gomide. Era uma forma de mostrar a sua
perplexidade, mas ele não as copiava literalmente: as recriava
e reinterpretava. O seu senso de perplexidade se dirigiu a seguir
para o próprio instrumento que lhe permite produzir as imagens
e ele desenhou o próprio lápis, reproduzindo cuidadosamente
um nome complicado - Johann Faber - embora não saiba escrever.
A etapa seguinte de Benedito foi a da perplexidade diante da nova
realidade urbana e ele começou a desenhar o túnel
da 9 de Julho, a avenida São João, o que é
uma forma de ajudá-lo a conviver com essa nova realidade.
E por fim, o próximo passo foi o de recuperar o seu passado
e começou a pintar cenas com pequenas casas rurais e vegetação
que lembra a do Nordeste. Ele está agora nesse momento, mas
fez tudo isso sem a menor interferência de alguém da
Pinacoteca. Creio que essa história ilustra bem como a arte
pode ser um processo de conhecimento e de apropriação
de uma realidade.
PLATÉIA - Pergunto a Aracy Amaral como introduzir
a arte popular num universo de cultura de elite? Através
da universidade?
ARACY - Creio que a tomada de consciência sobre o valor
da arte das diversas camadas sociais é de suma importância.
As formas de se chegar a isso já existem e não são
nenhuma novidade. Em países como o México se desenvolve
há muito tempo uma política cultura nesse sentido.
E ela também é uma das preocupações
da Unesco. Aqui, acho que é uma experiência inovadora
nesse sentido, a criação de Museus de Rua por Júlio
Abe, que estabelece uma dialética nos dois sentidos, pois
os habitantes participam da criação das exposições.
OLÍVIO - De repente, ocorreu-me uma idéia um
pouco doida que lanço aqui para o debate, sem pretender que
ela seja uma verdade. Ao ouvir a Aracy falar em trazer a arte popular
para o âmbito do erudito, através da recuperação
por universidades, museus e outras instituições, eu
tive a sensação brusca de que estava vendo um fenômeno
já visto, com sinal contrário. Há vinte anos
atrás, a tendência era tomar a arte erudita para levá-la
ao povo, uma coisa que obviamente não deu certo.
Fico pensando até que ponto não corremos o risco de
mergulhar numa profunda nostalgia do pitoresco, disfarçada
sob a forma de uma pesquisa profundamente séria. A visão
que eu tenho a respeito de alguns especialistas da Unesco é
o de pessoas com uma mentalidade bastante colonizadora, que vão
à África para curtir o exotismo africano e depois
voltam falando em "recuperação" de bens
culturais perdidos. Só que eles não estão nada
perdidos em seu contexto original.
PLATÉIA - Já que se falou tanto no problema
da incomunicabilidade de certas formas de arte, gostaria de perguntar
se vocês consideram o que se faz nos meios de comunicação
de massa como arte popular.
OLÍVIO - Meios de comunicação de massa
não produzem arte: quando muito, veiculam alguns processos
artísticos já conhecidos e codificados.
ANÉSIA - Voltando um pouco atrás, quando a
Aracy disse que a arte popular deve ser aceita no âmbito de
universidades, museus, bienais e outras instituições,
parece-me que há uma certa contradição em relação
a uma resposta anterior em que ela disse que todos devem aceitar,
isto é, os brasileiros em geral. Acontece que quem está
por trás dessas instituições não são
os brasileiros em geral, mas um segmento pertencente a determinada
classe.
ARACY - Creio que a minha preocupação maior
agora não é com a arte "strictu sensu",
mas a comunicação em geral. Muitos artistas hoje preferem
se chamar de comunicadores. Por isso, não descarto a possibilidade
de os meios de comunicação produzirem formas de arte.
O Ferreira Gullar, por exemplo, aceitou escrever novelas para a
TV Globo.
OLÍVIO - Discordo totalmente. Quando o Gullar aceita
escrever para a Globo não está optando por uma forma
de criação de arte popular. Está simplesmente
optando pela fabricação de um produto de consumo a
nível do gosto popular, o que é coisa muito diferente.
Ele está lá fazendo um produto dentro das regras ditadas
pela sociedade que vai consumir esse produto e se não seguir
os códigos do padrão Globo, dançará.
FABIO - Realmente, programas como "O Homem do Sapato
Branco", Zé Bétio ou Gil Gomes não produzem
cultura popular. Eles são apenas o resultado da manipulação
de uma elite, que usa canais poderosos para alienar o povo. Na verdade,
por trás dessa aparência "popular", há
padrões extremamente sofisticados, como pesquisas de mercado
e de audiência. Isso não é cultura popular,
pois esta não é manipulada, mas produzida pelo povo
para seu próprio consumo. Quando o Olívio falou em
inversão de sinais, ele quis colocar o perigo de uma visão
paternalista de intelectual pequeno-burguês, que quer ser
messiânico em relação à arte popular,
mas que pode também esconder a intenção de
manipulação do processo cultural. Nós vemos
isso claramente com o uso político que se faz da música
sertaneja, que perdeu toda a autenticidade, desde que os seus cantores
passaram a se apresentar em comícios de políticos
no poder.
Na verdade, muito mais importante do que essa distinção
entre erudito e popular é constatar que a arte, assim como
a forma como a definimos e encaramos depende inteiramente do contexto
em que está inserida. E é esse contexto que vai nos
dizer se se trata de algo inovador ou reacionário. Voltando
ao exemplo dos artistas soviéticos, no contexto deles, fazer
arte abstrata é algo progressista, mas a mesma coisa não
ocorreria em outros contextos sociais em que essa mesma manifestação
de arte esgotou, num momento dado, as suas potencialidades. Pode-se
dar uma leitura artística ou incorporar à arte manifestações
muito diferentes e é o contexto social mais amplo que vai
traçar os parâmetros dessa leitura. Não se pode
falar em arte como uma entidade abstrata separada do contexto em
que se insere. As conclusões absolutas não existem,
mas se quisermos tirar a arte das salas em que está confinada,
um dos caminhos é justamente o de multiplicar os debates
e tentar levar para fora o que se discutiu hoje aqui.
ANÉSIA - Acho que para fazer com que o debate saia
desta sala, é preciso mudar a sociedade. |
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