São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1977

MINGUS


"Por que as balas têm medo das palavras?"

Por João Marcos Coelho

Há duas unanimidades acerca de Charles Mingus, o compositor e contrabaixista negro de 55 anos que tocou, com seu Jazz Workshop, para algumas cidades brasileiras esta semana. A genialidade de sua música premonitória - a suíte "Pithecanthropus Erectus", por exemplo, gravada em 1956, prefigura, em todos os seus contornos, a revolução do free jazz nos anos 60 - os críticos lhe acrescentaram a pecha de intratável, agressivo, egocêntrico e contraditório.

Embora nascido em Nogales, Arizona, Mingus viveu a infância e a adolescência no gueto negro de Watts, perto de Los Angeles. Trocou o nobre violoncelo pelo contrabaixo, "instrumento de negro", aos 16 anos. Depois de participar das bandas de Louis Armstrong, Kid Ory e Lionel Hampton, na década de 40, atingiu a maturidade como instrumentista em 1950, integrante do trio de Red Norvo, que também incluía o guitarrista Tal Farlow.

Subitamente, abandonou tudo e se empregou nos Correios em Nova York. Quem o devolveu ao jazz, poucos meses depois, foi o saxofonista Charlie Parker. Sua admiração por Bird é tão forte hoje como em 1955, quando, enfocado no "Blinfold Test" de Leonard Feather (uma espécie de jogo de adivinhação, em que o entrevistado ouve o disco mas não tem nenhuma informação sobre ele), Mingus atribuiu a Parker a cotação de 50 estrelas - normalmente, a maior cotação da revista "Down Beat" é cinco.

Os encontros e a música feita com Bird marcaram o início de uma vida incrivelmente atribulada, cujos traços se podem detectar em sua obra - o principal deles, uma imensa liberdade, exercida até o limite da contradição pura, algo que o dogmático pensamento ocidental raramente apreende, porque impregnado da oposição verdade/falsidade, certo/errado.

Construiu sua liberdade na meia centena de discos gravados nesses trinta anos; na crítica áspera a políticos americanos racistas (como o ex-governador do Arkansas, Orval Faubus, em 1959, no LP "Original Fables Faubus", ou Rockefeller, que, em 1974, no motim da prisão de Attica, ordenou a repressão, cujo saldo foi 41 mortos, na faixa "Remember Rockefeller at Attica", do álbum duplo "Changes One - Changes Two", a ser lançado pela WEA no Brasil no começo de junho); na defesa constante da música negra contra a pilhagem branca quando isto ainda não era moda (década de 50); nos projetos impossíveis (gravadoras independentes, como a Debut, escolas de música nos anos 60, um festival paralelo contra o de Newport, em 1960); na busca incessante de fuga do circuito da indústria cultural e do show business.

Sua música se inscreve como a síntese dos rastros essenciais do jazz (o blues, Duke Ellington e Charlie Parker), simultânea à antecipação do exercício da liberdade total de improvisação coletiva (o free jazz de Ornette Coleman, Cecil Taylor e outros).

A revolta contra a pilhagem dos brancos hoje é atitude praticamente comum aos negros (veja o depoimento de Archie Schepp), resultado, sem dúvida, da luta de Mingus e outros poucos pioneiros.

"Os músicos negros sabem que, desde o começo do jazz, sua música foi explorada de tal maneira que se beneficiam economicamente muito pouco com ela. Tentam, inclusive, retirar-nos o privilégio de tê-la criado" (Lucky Thompson, saxofonista tenor negro).

"Na América, a música dos negros foi aviltada e comercializada em função do sucesso "popular". A indústria musical americana explorou, enganou, roubou, desprezou, excluiu, plagiou, durante décadas, os cantores e músicos de jazz, os compositores negros. A apropriação, pelos brancos, no começo deste século, da música folclórica afro-americana foi a primeira manifestação racista no domínio econômico ligado à cultura. Este racismo propagou-se ao teatro, à comédia musical e à dança. E é mais atuante do que nunca, hoje, no jazz" (Harold Cruse, escritor negro).

"Há três homens em mim - diz Charles Mingus - Um deles ocupa sempre o meio: indiferente, impassível, ele observa, espera que os outros dois o deixem se exprimir e dizer-lhes o que vê. O segundo é como um animal acuado que ataca por causa do medo de ser atacado. E, depois, há um homem doce e amante, amante demais, que permite que os outros penetrem até o mais íntimo do seu ser, absorve os insultos, confia e assina os contratos sem ler, deixa-se convencer a trabalhar por pouquíssimo dinheiro e que, quando percebe que foi enganado, tem vontade de matar e destruir tudo o que o cerca, inclusive ele próprio, punindo-se, assim, por ter sido tão estúpido. Não se decide, porém - e volta a se fechar em si mesmo" (Do primeiro parágrafo de sua autobiografia, "Beneath the Underdog" - "Menos que um pobre-diabo", publicada em 1971.)

Charles Mingus só se decidiu a dar a entrevista no final do show de domingo. Instalado no camarim dos maestros, inverteu os papéis e perguntou, apontando para uma garrafa de Antarctica: "It is a beer?" A resposta afirmativa, bebeu de um só gole mais da metade da cerveja.

*

Pergunta - Passada a explosão violenta dos movimentos negros da década passada, como você define a situação do negro atualmente nos Estados Unidos?

MINGUS -
A mesma que sempre existiu. Acontece que os brancos continuam ricos, enquanto os negros e porto-riquenhos, as minorias raciais, enfim, permanecem pobres.

P - Então o problema não é racial, mas econômico?

MINGUS -
É econômico também, mas fundamentalmente racial. Há músicos brancos, oriundos do sul dos Estados Unidos, Tennessee, por exemplo, no caso do saxofonista branco Lee Konitz, que são pobres, vivem uma realidade muito semelhante a dos negros. Portanto, também têm alguma coisa a dizer, ao contrário dos brancos ricos, como Stan Getz (sax-tenor), que, descaradamente, se apropriam da nossa música e acabam obtendo mais dinheiro e sucesso do que nós, os verdadeiros criadores.

P - Quando esteve recentemente em São Paulo, Stan Getz declarou que o jazz prescinde tranquilamente dos negros, adotando uma postura bastante racista.

MINGUS -
Esse judeu era tão burro que quando criança querendo apanhar alguma coisa do armazém de seu pai, em vez de pedir a chave, não tinha a mínima inteligência e arrombava a porta. Zoot Sims e Al Cohn, além de Getz, também são imitadores do grande Lester Young - mas Getz, além de desonesto, é cínico. Aliás, você sabe que ele escreveu um artigo sobre o sax-tenor argentino Gato Barbieri, afirmando que este não é músico, mas sim um político? Não? Ora, um reles imitador como Stan Getz não pode dizer nada sobre ninguém, quanto mais sobre Barbieri, um músico de que a América do Sul deveria se orgulhar, pela genial fusão que realiza entre a música latino-americana e o jazz. E o pior disso tudo é que Gato Barbieri está proibido, por causa deste artigo, de tocar no Brasil. Sempre os motivos políticos...

P - Então deve ser esta a razão por que ele passou praticamente todo o mês de janeiro deste ano no Rio de Janeiro e não tocou em absolutamente nenhum lugar. Nas entrevistas, inclusive, deu uma de desligado. E o jazz branco, Mingus, existe de fato?

MINGUS -
Jazz branco não. Há músicos brancos que se identificam com a nossa música, mas nós é que fizemos o jazz. Agora, gosto muito de Gerry Mulligan, por exemplo, porque ele não tenta imitar nenhum músico negro; antes, faz uma música como ele sente. Se partisse para a imitação, soaria como Harry Carney, da orquestra de Duke Ellington. Note que também não há muito negro tocando em sinfônicas por aí. Não há nenhum Pablo Casals negro do violoncelo. Isto é natural. Eles que fiquem com a música deles, e deixem-nos fazer a nossa, coisa que quase nunca nos permitem.

P - Como anda o teu instrumento? Quais os bons atualmente?

MINGUS -
Sem dúvida, o melhor, depois de mim, é claro, é Eddie Gómez, o contrabaixista de Bill Evans (pianista), porque faz uma música puramente negra aliada a uma técnica portentosamente refinada. O que não dá para aguentar são as empulhações: há tempos, surgiu um contrabaixista, Scott La Faro, que simplesmente comprava discos meus, de Ray Brown e de Oscar Pettiford, ouvia-os muito e copiava. Então as revistas de jazz dos brancos, como "Down Beat" e "Metronome", saíam em manchetes: "eis o novo gênio". Ora bolas, era um imitador.

P - Num ensaio encartado no disco "Let My Children Hear Music", de 1972, você escreveu um longo ensaio sobre as relações entre o jazz e os demais tipos de música, inclusive a erudita. Nada mudou?

MINGUS -
"Let My Children" é provavelmente o maior engodo de todos os tempos. Coloquei os instrumentos tipicamente sinfônicos assim como macacos, tigres, leões e elefantes, ao lado de instrumentos de jazz livremente tocados por bons músicos. E o que aconteceu? Os paquidermes tentavam, todo o tempo, seguir as mudanças harmônicas e melódicas dos solistas, mas nada conseguiam. E o pior é que todo mundo levou isso a sério.

P - Mas você dizia lá que se Art Tatum e Duke Ellington, por exemplo, tivessem escrito rigorosamente suas composições, estariam colocados hoje no mesmo nível de um Bela Bartok ou um Claude Débussy, não?

MINGUS -
Claro. Veja, um solo de Charlie Parker é tão complicado quanto uma partitura de Bach. E com a agravante de que, mesmo escrito, um músico clássico não sabe tocá-lo, enquanto executar Bach é só uma questão de técnica de leitura. Escrevi certa ocasião uma peça para a Filarmônica de Nova York - pois bem, os músicos clássicos, experimentadíssimos, não conseguiam ler minha partitura. Ou melhor, liam, mas tocavam com o mesmo ardor as notas certas quanto uma errada, por exemplo. Não os chamo de músicos, mas sim de estenógrafos. E, finalmente, há o problema da síncope, da batida, do "swing". Olha, se você pegar músicos de sinfônicas que já tenham tocado um pouco de jazz, e se você escrever detalhadamente a partitura, então, quem sabe, eles possam tocá-la regularmente.

P - Neste caso, o que está faltando essencialmente?

MINGUS -
"Swing". Meu tio tinha um pequeno conjunto que tocava no "Savoy Ballroom" de Nova York, um boteco de quinta categoria. O negócio é que ele tinha de brigar com grandes bandas, como as de Count Basie, Duke Ellington e King Oliver. Seu único recurso era apelar para o "swing", a batida, que é, afinal de contas, a essência da música negra. "It don't mean a thing/if it ain't got that swing". Isto é, nada significa se não tiver aquele balanço (Mingus cantarola, batendo na mesa, a célebre composição de Duke Ellington da década de 30, popularizada por Ivie Anderson). Você pode até tocar as notas certinho, sem nenhum erro, como um violinista clássico, Stern ou Heifeitz, mas nada disso vai significar algo se não tiver swing.

P - Toda a sua música possui grande carga política. A música inevitavelmente carrega consigo uma carga política, manifesta ou não?

MINGUS -
Acho que sim. Em minha música, digo o que penso sôbre tudo o que, desta ou daquela maneira, me afeta. "Fables Faubus", "Remember Rockefeller at Attica". Acontece que na América, ao contrário do Brasil, há inteira liberdade de expressão. Então posso dizer tudo que penso. Veja Malcolm X, Stokely Carmichael, eles disseram e fizeram tudo o que pensavam.

P - Algo mais a dizer sobre Brasil?

MINGUS -
O povo é muito estranho. As pessoas agem, andam nas ruas como se estivessem sob a mira de metralhadoras vigilantes em cima. Há um medo inexplicável de se fazer as coisas errado. Vi um bêbado num bar; quando pôs o pé na calçada, se aprumou e olhou para os lados com temor de ser punido. Aliás, por que você não coloca em seu artigo este título: "Por que as balas têm medo das palavras?" É, é isso mesmo, porque as balas têm medo das palavras? No aeroporto, um brasileiro começou a me censurar por falar coisas politicamente inconvenientes em tom alto. Aí eu disse que meu país é livre, eu sou livre para dizer e fazer o que quero e penso. E um país sem liberdade de expressão, para mim, não é nada.

P - E a música brasileira nos Estados Unidos?

MINGUS -
Gosto muito de Aírto, principalmente quando ele está com sua mulher, Flora. Durante o período em que ela esteve presa, sua música decaiu muito. Recentemente, eu os ouvi em Boston, e gostei muito. Aliás, Flora me pediu algumas composições para gravar, e vou mandá-las para ela, porque gosto de sua voz e de seu jeito de cantar.

Jazz, testemunho do negro

"Já se disse que o povo negro da América adotou uma posição política mais reflexiva nesta data. Quanto aos outros grupos étnicos que coexistem nos Estados Unidos e participam do que se designa como Terceiro Mundo - mexicanos, americanos da costa oeste, índios, porto-riquenos -, penso que são guiados pela luta do povo negro. Aliás, creio que a classe operária negra sempre esteve na liderança da classe operária nos EUA, pela simples razão de que ela sempre foi a mais oprimida, e reagiu cada vez mais à medida que a repressão tornava-se mais severa. O que é perfeitamente lógico, já que chegamos a este país na condição de escravos, isto é, na condição humana mais abjeta possível.

Ora, conseguimos sobreviver, evitamos a dizimação, como os índios, ou a assimilação, como ocorreu na América do Sul. O povo afro-americano, ao longo de sua história, permaneceu intacto, física e culturalmente - e o que se chama jazz é o maior testemunho disso.

Sempre recorremos a esta capacidade africana de adaptação às mais miseráveis condições de vida. E, apesar da droga, do alcoolismo, da prostituição, da criminalidade do gueto negro, sobrevivemos, conseguimos até formar famílias. A tal ponto que alguns brancos conservadores - conservadores (como Rockefeller, George Wallace e Ronald Reagan) aqui, é um eufemismo que significa, na verdade, racistas - consideram o controle da natalidade o único meio de frear a multiplicação do nosso povo, evitando sua fecundidade, sua vitalidade.

Este é um dos aspectos do que eu classificaria como genocídio sistemático perpretado contra nosso povo.

Quando, no final dos anos 20, King Oliver chegou a Chicago, os músicos brancos quiseram marginalizá-lo, ele e Louis Armstrong, de seu sindicato. Já naquela época, a classe operária branca, cega pelo racismo, não via qualquer vínculo entre os trabalhadores - incidentalmente, trabalhadores culturais.

Assim, gente como Bix Beiderbecke, e outros músicos brancos hoje considerados heróis do jazz, tentaram desesperadamente proibir Oliver e Armstrong de participar do sindicato. Acabaram obrigando, pois, os negros a formarem seu próprio sindicato. Depois, veio o período swing - e o rei do swing não foi nem Duke Ellington nem Count Basie, mas o branco Benny Goodman. Houve em seguida o bebop - e as honras não foram para Charlie Parker, mas para os brancos Stan Getz, Gerry Mulligan, e outros.

Não tenho nada contra esses músicos, eu só quero mostrar como o racismo penetra na música quando há reais inovações".

(Extraído de um depoimento do saxofonista negro Archie Schepp, nascido em 1937 na Flórida e um participante ativo do movimento free jazz da década até 60.)

Veja também:
 
Crítica jornalística deve ser estridente e opinativa
 
 
Elis Regina fala ao Folhetim
 
 
Navio ao embalo de jazz e wisky
 
 
Poeta exalta a mulher e critica o poder
 
 
"Feliz 2001" por Clóvis Rossi
 
 
"Jantar para os amigos" por Moacyr Scliar
 
 
Exibindo posição contra o abstracionismo
 
 
Um debate oportuno sobre artes plásticas
 
 
Jeremias e os falsos profetas
 
 
Erich Fromm e a Liberdade