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São
Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1977
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CORTAZAR UM CONCERTO EGOÍSTA
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J.
B. Natali/Paris |
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Julio
Cortazar detesta dar entrevistas. Entre os jornalistas latino-americanos
em Paris, é comum a curtição de certo respeito
pelos que já conseguiram, no passado, entrevistá-lo.
Coisa digna de ser colocada no curriculo profissional. Neste último
domingo, o escritor argentino aceitou participar de um programa
de relativo sucesso numa das emissoras estatais de rádio.
Chama-se "Concerto Egoísta". Durante duas horas,
Cortazar comentou e ouviu três dezenas de gravações
- de partituras medievais ao tango que ele próprio escolheu.
E, sem querer, a coisa acabou virando uma entrevista em torno do
leque enorme de intérpretes e compositores que integram seu
universo musical. Discófilo refinado, ele recheou de menções
musicais um quilo de novelas e romances. "El Perseguidor"
tem por exemplo, como personagem central, o jazz-man Johnny que
ninguém teve dificuldades em associar a Charlie Parker. Em
seu "Libro de Manuel", é absolutamente fantástico
o texto desencadeado a partir de Prozession, montagem eletroacústica
de Stockhausen. A relação entre Cortazar e o jazz
é abordada pelo livro que Davi Arrigucdi Jr. dedicou há
quatro anos ao escritor ("O escorpião encalacrado",
Editora Perspectiva).
Eis algumas das opiniões que Cortazar expressou, num francês
impecável com uma pontinha de sotaque portenho, e a voz grave
de um locutor da Radio Eldorado entremeada de tiradinhas de bom
humor.
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Ritmo
e literatura |
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"Sempre
fui sensível à problemática do ritmo de uma
frase, e sempre procurei dar às minhas uma musicalidade.
Entro em pânico ao saber que, numa tradução,
ela pode se perder. Em minhas novelas, o ritmo da última
frase foi sempre uma constante em minhas preocupações.
O ritmo é tão importante quanto o sentido."
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Chopin
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"Eu
o conheci quando adolescente, estudando piano aos 15 anos. De vez
em quando, digo para mim mesmo que é meio chato conhecer
praticamente de cor todas as peças de Chopin. Mas no fundo
é maravilhoso andar nos passos de uma música que se
adquiriu há muito tempo. Outro dia, descobri uma gravação
de Rubinstein com três partituras de Chopin para piano ainda
inéditas. Foi bom ouvi-las pela primeira vez".
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A
forma |
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"A
forma não é uma espécie de molde que envolve
o conteúdo, seja na música ou na literatura. Todo
conteúdo legítimo contém também sua
forma. Eterna e absurda discussão em Literatura sobre a distinção
entre forma e conteúdo: questão felizmente ultrapassada.
Toda obra que me seduz e me emociona é uma forma. Ou melhor,
mostra-se como forma. Não poderia ser "informe".
Esta é uma concepção meio intuitiva. Não
consigo imaginar a forma como categorias ou códigos que possam
ser impostos normativamente. Diz-se, por exemplo, que o soneto possui
uma forma. Mas quando um poeta o escreve, não o faz para
que ele "entre" na forma do soneto; o poema já
surge como soneto, o que é diferente. O mesmo ocorre quando
um compositor produz uma sonata ou um instrumentista de jazz parte
para uma improvisação segundo sua forma pessoal, sabendo
direitinho quando a começará e quando a terminará.
A novela é para a literatura o que a música de câmara
é para a música. A sinfonia seria o equivalente do
romance. Para mim, a música de predileção é
a de câmara. Talvez seja por isso que me dediquei tanto à
novela. Vejamos o caso de Webern (companheiro de Berg e Schonberg
na chamada Escola de Viena): suas peças orquestrais são
marcadas por uma economia incrível e quase cruel da partitura
reduzida ao essencial. São exceções no quadro
de obras compostas para grandes formações instrumentais".
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Charlie
Parker |
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"Não
teria nada a acrescentar à aparição que ele
fez, sob a cobertura de um pseudônimo, num de meus contos.
Parker é algo fantástico, genial".
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O
tango |
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"Dentro
daquilo que eu gosto, o Tango é muito mais que uma simples
manifestação musical. O tango se define um pouco como
a vida sentimental de qualquer argentino. Proust demonstrou melhor
do que qualquer um de nós a carga extra musical que uma música
pode ter em nossas recordações. Um tango sempre desencadeia
em mim um retorno ao passado, às vezes brutal, às
vezes tenro. Aprecio, por exemplo, o trabalho de Suzana Rinaldi
que vem renovando o tango ao despi-lo de ornamentos repetitivos.
Há um penca de pseudos-renovamentos do tango que se parecem
um pouco ao que Gerschwin fez com o jazz: todos saem perdendo. Com
Suzana Rinaldi, não é isto que acontece. Mas o tango
é sobretudo Gardel, por quem sinto muito mais que uma pura
estima. Sinto amor mesmo. Em Buenos Aires, as pessoas quando o escutam
- e lá se vai um tempão que ele morreu - dizem para
si mesmos depois de um disco na vitrola ou de um tango tocado no
radio: "Cada dia esse cara canta melhor". Isto prova a
imortalidade no sentido bem amplo da palavra. Concordo com meu patricio
Lavelli (um diretor de teatro ultra badalado em Paris) para quem
o Tango, muito mais do que uma música para ser dançada,
corresponde a um sofrimento que os europeus puderam expressar musicalmente
apenas pelo fado. A morte e o amor traído são duas
constantes nas letras de tango".
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Perotin
(compositor da Idade Média) |
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"Sempre
fui atraído de uma maneira estranha pela música que
ele fez. Ela parece alheia à tendência medieval que
talvez se defina por certa tristeza, com os aspectos negativos da
vida pesando bastante sobre as pessoas. Há uma parcela muito
reduzida de partituras alegres na Idade Média. Perotin se
inclui entre estes compositores: sua expressão de alegria
é quase selvagem".
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Canto
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"Eu
gostaria de cantar. Não chego a ser desafinado mas a tristeza
é que canto mal. Se fosse cantor, incluiria em meu repertório
baladas escocesas e norte-americanas".
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Cronópios
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"Eric
Satie é para mim um destes compositores que correspondem
a uma maneira de ser que eu classifico como própria aos cronópios.
Como classificar de outro jeito um homem que se aproxima de Debussy
no dia da primeira execução de "La Mer"
e diz para ele: adorei aquele pedacinho das 10h45m...?"
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Armstrong
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"Como
solista de jazz, é ele que eu escolheria se um dia precisasse
levar um só disco em minha bagagem ao partir para uma ilha
deserta. Há nele uma carga enorme de recordações;
seus primeiros discos chegaram a Buenos Aires por volta de 1927,
e eu cresci ao som desta trompeta maravilhosa que escutava pelo
rádio. Se Louis Armstrong e Perotin tivessem sido contemporâneos,
aposto como seriam desses amigos que tomam porres juntos".
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Gesualdo
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"A
vida que ele levou corresponde com perfeição ao Renascimento
italiano. Há condimentos biográficos como duelos,
assassinatos e traições. Mas ao mesmo tempo é
uma vida de artista. Não é bem o lado anedótico
de Gesualdo que me fascina, embora não me possam falar nele
sem que eu me lembre que ele matou a própria esposa. O importante,
em Gesualdo, é que o madrigal por ele composto modifica toda
a linguagem dos madrigalistas de sua época. Como principe
(ele tinha muito dinheiro), podia se dedicar à musica em
tempo integral, sem se submeter ao esquema comercial em que os artistas
que lhe foram contemporâneos produziam sob encomenda."
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Barbara
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"Se
tomarmos a canção francesa em seu conjunto, não
encontraremos alguém que represente, tanto quanto Barbara,
esta coisa extraordinária que consiste em compor sua própria
musica e executá-la de maneira admirável. Suas partituras
são de uma complexidade verificada por qualquer estudante
de solfejo. Ela mantém, ao mesmo tempo, um contato bem grande
com o público, apesar da sofisticação de sua
música ter permitido teoricamente, que ela se transformasse
numa compositora de elite, por causa de seu grande refinamento musical".
Além de Gesualdo, Perotin, Chopin e Parker, Julio Cortazar
escolheu para a difusão, em seu "Concerto Egoísta",
peças de Schumann, Rameau, Delius, Duke Ellington e Ravel.
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