São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1979

O VELHO QUE SABE TUDO

Em Natal o chamam de "o homem que sabe de tudo".
Já virou até nome de rua. Escreveu na 'Folha da Manhã' sobre musicologia, na década de 40, sendo também etnógrafo, etnógrafo, etnólogo, antropólogo, historiador, romancista, poeta e, principalmente, folclorista. Mas não gosta do termo "folclore".
Como folclorista, acho que o termo certo é "cultura popular".
Luís da Câmara só não sabe de Matemática.
Detesta, mais precisamente. É até inimigo dela.
Mas talvez por isso, é bem capaz de terminar como ministro da Fazenda - diz ele com sua risonha ironia, do alto dos 80 anos completados no penúltimo dia do ano passado, depois de uma semana de festejos em Natal.
Sentado na cadeira de balanço que pertenceu ao pai e cercado de livros, quadros e esculturas, o velho recebeu o repórter numa tarde quente de dezembro, risonho, irônico e falando muito. Sem mesmo o cuidado recomendado pelos médicos e apesar da vigilância de dona Dahlia, sua mulher.

Assis Angelo

*

- Sou o único rio-grandense do norte que não pode negar a idade, porque ela está marcada na porta de minha casa.

Mesmo que o quisesse, não poderia. Placas de bronze enfeitam a entrada da casa do folclorista mais famoso do Brasil, em Natal. Todas com a data de seu nascimento: 30 de dezembro de 1898. Ele recebe correspondência até desta forma: "Luís da Câmara Cascudo, Natal".

As placas dizem:

"Aqui, Luís da Câmara Cascudo serve ao Rio Grande do Norte pelo trabalho intelectual mais nobre e mais constante que o Estado já conheceu" (homenagem do Instituto Histórico e Geográfico do RGN).

"Aqui nesta casa, Luís da Câmara Cascudo, com sabedoria e humanidade, completou 50 anos de vida intelectual" (homenagem do Rio Grande do Norte).

Há outras, mas o homenageado parece não ligar muito, talvez porque as homenagens tenham se tornado um fato corriqueiro na sua vida. Quando disseram que iam erguer-lhe uma estátua, ele simplesmente veio com uma sugestão:

- Ah é? Pois faz muito tempo que não toco piano. E só não toco porque não tenho comigo esse belo instrumento. Deviam ter pensado um pouquinho nisso...

Passou um terço da vida fora do Brasil, correndo mundo:

- E foi, então, vendo o meu país por outro ângulo, que passei a amá-lo e a dar valor à feijoada e ao samba.

O bom humor é marca registrada nesse homem que, nas horas de leitura, que são muitas, delicia-se com Heródoto, Plinio, Tácito, Petrônio, Terêncio, Montaigne, Cícero, Aristófanes, Platão, Plauto, Homero, Ovídio, Sêneca, Anatole France etc.

- Me chamo Luís em homenagem a Luís, rei de França. Fui o terceiro filho e único sobrevivente. Meu pai era tenente da Polícia, que lutou contra cangaceiros. A rua onde nasci tinha nome lindo: rua das Virgens. Um dia, o prefeito resolveu mudar para rua Luís da Câmara Cascudo. Escrevi-lhe umas cartas desaforadas, até que ele trocou, ou melhor, acrescentou algo mais ao nome. Agora, a rua se chama "Luís da Câmara Cascudo, ex-rua das Virgens".

Um velho simples, cordial, brincalhão, irônico. Na cidade onde mora os meninos e muitos adultos dizem que "ele é o homem que sabe de tudo". O folclorista mais famoso do Brasil, e um dois mais importantes do mundo, aprendeu a ler, por esforço próprio, em vários idiomas: inglês, francês, alemão, espanhol, italiano, grego e latim. Já traduziu inúmeras obras. E diz que fala "muito mal" o português.

- Mentir é feio, mas é gostoso.

E o velho dá risada.

O encontro com o velho começou assim. Dona Dahlia, sua mulher, atendeu à porta, convidou para entrar e pediu; - Espere alguns minutos. Não demorou muito, mestre Câmara apareceu vestindo pijama e arrastando sandálias, fumando um charuto que parece nunca se apagar, olhar penetrante e fingindo cara feia. Depois dos cumprimentos de praxe, senta-se na cadeira de balanço, que pertenceu ao pai, e diz:

- Não posso me expressar como fazia em 1906... Fui professor durante toda a vida e mudo a linguagem e a lógica de acordo com o centro de interesses dos meus ex-alunos, que foram mais de dois mil, em 50 anos. A minha preocupação como professor era dar a disciplina como matéria útil, diária, e não como decoração a ser dependurada na sala. Sempre procurei uma linguagem que fosse assimilada. Eu me misturo com as pessoas para aprender alguma coisa. Isso de ver de palanque não é comigo... A minha felicidade consiste em valorizar a vida alheia. Assim, aprendi muito.

Em seguida, pede as perguntas por escrito, porque não é mais um homem que ouve bem. Primeira pergunta:

FOLHETIM - Mestre Câmara, o senhor acha que o Brasil vai bem?

CÂMARA CASCUDO -
(repetindo para si mesmo a pergunta) Vai maravilhosamente. O Brasil vai tão bem que os políticos não puderam acabar com ele... Todo mundo diz que o Brasil está à beira do abismo. Mas eu acho que a minha pátria está numa das melhores situações. Pelo seu povo. Pela alegria do seu povo, pelo poder de desorganização do seu povo. O brasileiro dá nó em pingo d'água. De maneira que não tem jeito pra ele. Costumo dizer a todo mundo que nesta terra não existe ladrão, especuladores ou mau-caráteres. É mentira, mas é gostoso de ouvir...

FOLHETIM - O que o senhor espera do governo Figueiredo?

CÂMARA CASCUDO -
Santo Deus! Muitos anos eu sonhei, e mesmo trabalhei para que o general Euclides Figueiredo, o pai, fosse presidente da República. Era uma figura completa de homem e de cidadão. Alegre, emocional e tudo o mais. Não vi o pai, vou ver o filho assumir. Que Deus o proteja...

FOLHETIM - Recentemente, o senhor pediu a anulação do seu título de eleitor. Por quê?

CÂMARA CASCUDO -
É que a lei eleitoral manda dispensar do exercicio as pessoas que já tenham 70 anos. Eu tenho 80. Há sessenta anos que eu participo das estrelas e das constelações do Parlamento brasileiro... Agora já basta de escolher as suas excelências. Surdo, vendo pouco, sem poder ir para a rua, é necessário, pois, que eu tenha o meu programa de casa, e nesse não está incluída a escolha de suas excelências. Por isso, eu que fui professor de Direito, em vez de não votar amparado na lei, fiz junto com um ex-aluno meu, hoje um grande advogado, Di... Dinarte... como é o nome dele? (dona Dahlia dá o nome do ex-aluno) pois bem, Diógenes da Cunha Lima... Pedi que ele requeresse o cancelamento do meu titulo. Justamente por isso, jornais do Rio e de São Paulo fizeram um bafa danado, dizendo que "o mestre Cascudo não quer mais votar", "mestre Cascudo não quer e tal". Não foi nada não. Apenas optei pelo direito lógico de repousar.

FOLHETIM - O que o Sr. diz sobre a tão falada emancipação dos índios? E sobre o desmatamento da Amazônia, para saldar a nossa divida externa?

CÂMARA CASCUDO -
(repete a pergunta, como se estivesse sozinho) Os índios são os donos da casa. Nas minhas pesquisas eu tive o maior contato com eles. Sou um apaixonado por eles. O mal é torná-los brasileiros sem ajudá-los ao momento presente em que eles largam as malocas amazônicas e mato-grossense e vão pra Brasília ser funcionários públicos... O desmatamento da Amazônia para salvar a nossa dívida externa faz me lembrar do sujeito que vendeu o automóvel para comprar gasolina... Nós vendemos a mata, meu filho, e ficamos com outro problema. Não teremos mais a divida externa, mas teremos o problema de uma região mista sem mata. Vem a erosão, vem a terra que não produz, vem a mudança do clima...

FOLHETIM - ... do oxigênio...

CÂMARA CASCUDO -
(fazendo sinal de silêncio)... aí você bote umas coisinhas suas. Outro problema tão sério, tão nacional, tão ofensivo e premente como a divida externa...

FOLHETIM - Que contribuição o senhor acredita ter dado ao Brasil, ao povo brasileiro?

CÂMARA CASCUDO -
Eu dei ao meu país uma bibliografia leal e legítima, porque não foi feita de imaginação e de livros, mas do contato direto com o povo. Com a legitimidade do apurado, com a confissão e a contribuição de um pesquisador direto, levando aos quadros brasileiros os elementos fundamentais da sua marcha para o progresso (e fala grifando, silaba por silaba, a palavra fundamental).

FOLHETIM - O que é cultura popular?

CÂMARA CASCUDO -
Cultura popular é a que vivemos. É a cultura tradicional e milenar que nós aprendemos na convivência doméstica. A outra é a que estudamos nas escolas, na universidade e nas culturas convencionais progmáticas da vida. Cultura popular é aquela que até certo ponto nós nascemos sabendo. Qualquer um de nós é mestre, que sabe contos, mitos, lendas, versos, superstições, que sabe fazer caretas, apertar mão, bater palmas e tudo quanto caracteriza a cultura anônima e coletiva.

FOLHETIM - Quando o senhor decidiu pesquisar o folclore brasileiro?

CÂMARA CASCUDO -
Muito novo, em 1915, com 17 anos, eu era repórter do jornal de meu pai. "A Imprensa", que durou de 1914 a 27. E já nesse tempo fui, irresistivelmente, chamado pela cultura cotidiana; feira, mercado, festas religiosas na rua, cantos populares alusivos às distrações populares, a indumentária, a alimentação, a linguagem... Essas coisas me seduziram até os oitent'anos.

FOLHETIM - Diga uma coisa: o que o senhor acha da crítica literária?

CÂMARA CASCUDO -
Eu não creio em crítica literária. Por mais que se escreva sobre doutrina e outras coisas da crítica literária, eu acho que a crítica se reduz à sensação da opinião a reação pessoal de cada um de nós diante do livro que lemos. Tanto mais durável quanto mais alto o dom de quem escreva isso. Mas cada um de nós tem, indelevelmente, o direito da percepção, o direito de sentir e reagir de acordo com a sua sensibilidade, o direito de gostar ou não. Isso é eterno e deve ser respeitado.

FOLHETIM - Qual seria o seu último desejo?

CÂMARA CASCUDO -
O meu último desejo (irônico) é não ir para o inferno. E ir por pouco tempo para o purgatório... que eu acho muito interessante. Queria ficar pouco tempo no purgatório para fazer as minhas reportagens, não é? Sobre a situação de lá, sobretudo para não perder comunicação com os meus leitores brasileiros: não é?

FOLHETIM - O senhor é cristão?

CÂMARA CASCUDO -
Sou católico, fumo e bebo tanto quanto deixam (solta uma baforada do charuto Havana e pigarreia).

DONA DAHLIA - O médico não quer que ele fume, mas ele fuma assim mesmo...

FOLHETIM - Como é o seu dia-dia?

CÂMARA CASCUDO -
O meu dia-dia, meu caro confrade, é que eu preciso me ocupar para não me preocupar, especialmente aos oitenta'anos. Para eu não estar mal-humorado, irritante, intolerante, devo ter um programa de realização dentro das minhas possibilidade. As possibilidades são muito limitadas. Eu já não sou o Otinor de Campos, o homem que vai prá Africa, ao interior africano, ou ao americano. Tenho que ficar em casa, logo, criar algo no mundo da casa: reminiscências, livros. Agora, você sabe, nunca estamos sozinhos quando pensamos. Está ao redor de nós o nosso passado o que nós pensamos, o que nós conversamos, lemos, enfim, o patrimônio pessoal da lembrança. E é isto que me mantém vivo e bem-humorado. Todos os jornais, toda a gente fala do meu bom-humor. Sou bem-humorado, porque trabalho. Se não trabalhasse, estaria perpetuamente mal-humorado... Depois de todas essas minhas respostas afetuosamente dadas a você, você agora vá baixar noutro terreiro...

DONA DAHLIA - ... ele é assim mesmo. Não toma prumo. Isso que ele disse, "vá baixar noutro terreiro", já é uma frase conhecida de todo mundo aqui...

CÂMARA CASCUDO - Vá baixar noutro terreiro sabendo que só dei isto (as respostas) porque sede vós quem sodes, caso contrário eu não daria, eu não me levantaria da cama .

Mas o velho brincalhão continuou a falar...

CÂMARA CASCUDO - Estudei medicina na Bahia. O meu pai, que era milionário quando nasci, estava meio empobrecido nessa época, e não consegui montar o meu próprio laboratório. Por isso fui para a advocacia e me formei em 1928. Fui advogado de sindicatos de bancários e trabalhava praticamente de graça, ganhando apenas 300 mil réis por mês...

Eu conservo toda a mecânica psicológica dos meus cincoent'anos. Generais, brigadeiros, almirantes, reitores, ministros de Estado, universitários, o repórter da "Folha" e outras pessoas as trato de senhor... mas dentro de dois minutos começo a dizer: mas menino eu tô te dizendo, deixa de ser jumento... Chamei de menina a senhora do presidente da República, dona Lucy Geisel, que veio me visitar. Durante dois minutos, chamei de senhora, madame. Depois veio o reflexo condicionado da minha vida de professor. Fui professor de todo mundo. Cincoent'anos de professor em Natal. Nunca aceitei os convites insistentes nem para o Rio de Janeiro. Fiquei na Faculdade de Direito até me aposentar. De maneira que por mais importante que seja a pessoa, para mim ela é sempre menina, menino de 16, 17 anos. Agora, eu vou deitar e você vá baixar noutro terreiro...

E o velho vai-se deitar. Fica dona Dahlia, que é uma história à parte. No começo, ela não gostou muito da idéia de fazer uma entrevista com o mestre.

DONA DAHLIA - Ele está cansado, adoentado e precisa de repouso. Ele não liga pra isso não, e quando começa a falar não tem no mundo ninguém capaz de fazê-lo parar. Se não fosse eu, ele ficava o tempo todo falando.

FOLHETIM - Como é que se porta o mestre Câmara em casa, sozinho?

DONA DAHLIA -
Da forma como você acabou de ver. Ele nunca está, sozinho, tem os livros... O homem culto, de letras, folclorista, escritor, se iguala à figura humana que é: uma figura maravilhosa. A simplicidade dele é uma das coisas que o tornam ainda mais grandioso. No próximo ano faremos bodas de ouro, pois já temos 49 anos de casados.

FOLHETIM - Agora me conte a senhora, como é o dia-dia dele?

DONA DAHLIA -
Recebe muitas visitas. Só não recebe mais porque eu vou controlando um pouco. Às cinco horas da manhã já está acordado, lendo. Fuma charutos Havana que um amigo manda do Rio. Bebe uisque e vinho "tanto quanto me permitem" ele diz. Reza sempre o terço, mas dificilmente vai à igreja. Lê histórias em quadrinhos e vê Chacrinha na tevê. Detesta os formalismos e sempre que pode fica à vontade, de pijama e sandália. Seus cabelos prateados estão eternamente despenteados. Gosta muito de apreciar a natureza.

FOLHETIM - O que ele está escrevendo atualmente?

DONA DAHLIA -
Um livro sobre superstições.

*


Há dez anos, os escritores Aurélio Buarque de Holanda, Joracy Camargo, Renato de Almeida, Mozart de Araújo e o radialista Almirante, entrevistaram Câmara Cascudo para o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Na ocasião, ele contou:

- A minha mulher se chama Dahlia. Podem dizer que sou um homem que conseguiu se unir a uma flor. Tive o prazer de possuí-la, e ela a paciência de me aturar. Já me submeti a uma análise e descobri que se tivesse de me casar de novo, eu me casaria com ela. Pretendo me desquitar, entretanto. Só assim poderei cortejá-la novamente...


DONA DAHLIA - Tem vez que a gente saí por aí de mãos dadas, como dois jovens enamorados. Nessas ocasiões, olhamos as estrelas e o luar...

Ela conta isso orgulhosa e sorrindo. Dona Dahlia Freyre Cascudo. Uma mulher baixinha, risonha e simpática, de gestos largos e uma beleza que o tempo ainda não esqueceu.

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