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São
Paulo, sexta-feira, 26 de dezembro de 1986
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PARA INTRODUZIR CÉLINE
Acusado de reacionário, racista
e pró-nazista,
o escritor francês Louis-Ferdinand Céline
(1894-1961) é sobretudo criador de um
estilo truculento e extremamente musical
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Leda Tenório
da Motta
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Não falemos de revolta, emoção
barata que pressupõe a esperança. "Minha mãe
fez tudo para que eu vivesse, era ter nascido que eu não
devia", esclarece Céline, de uma vez por todas, na abertura
de "Morte a Crédito". (1)
No segundo romance de uma obra vasta, é bem verdade, e a
25 anos de distância de "Rigodon", ou do ponto final,
em 1961, na casa deprimente do subúrbio parisiense de Meudon.
Isso importa pouco porque, como sabem os que conhecem o tom do texto
celiniano humoral, frenético, obsessivo, obsceno, demencial
- nada ali é relativo, tudo é absoluto. "Tudo
o que não é blefe". Céline é definitivo
em qualquer ponto da obra. Que já nasce madura nesse sentido,
sem precisar crescer, como a do comum dos mortais. E nesse tipo
de barbaridade, entre outras coisas, que repousa a sua presença
marcante de escritor. E do mesmo golpe, como não poderia
deixar de ser, a sua tragédia pessoal.
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Retórica
do achincalhe |
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Não se trata de questionar
isso ou aquilo. Essa tarefa o escritor deixava, cáustico
como era, para o pessoal da "gôche". Senão
para os que pensavam direito, e escreviam igual, como os chatos,
no seu entender, dos seus contemporâneos. Atrasados de 100
anos, "plagiários", "cromos" uns dos
outros. De André Gide, a quem a literatura deveria apenas
a contribuição da pederastia, a Mauriac, Romain Rolland,
Camus, Henry Miller, que muitos consideram o seu discípulo
direto. Passando por Sartre, o inimigo íntimo, a quem Céline
chama, desbocado, o "excitado da cachola" ("l'ágite
du bocal"). "Eles escrevem todos como se pintava no Grand
Salon de la Médaile d'Or de 1862", critica, com uma
severidade que só faz revelar o tamanho das suas próprias
pretensões. Céline parte para ser o melhor de todos.
O salão a que se refere é aquele, mítico, em
que foram barrados os pintores impressionistas. Por serem excelentes
e em nome de um classicismo triunfante, oficialista e cartorial.
Céline tomará lugar no oposto de todas as tendências
literárias de sua época. No oposto extremo, mais precisamente.
O escritor não é apenas um "out-sider",
é um procurado pela polícia. Na verdade, para muito
aquém da esperança - e da postura civil que costuma
coincidir com ela - o sentimento celiniano do mundo é o mais
completo niilismo. Um derrotismo, um pessimismo. O escritor é,
como ele mesmo fantasmaticamente se capta, um impressionista maior
num salão de medalhas, "loteria ignóbil",
cujo ledo engano, a prática da besteira, é definitivamente
impossível desfazer.
O que lhe resta, nestas condições, é soltar
o verbo, e em gratuidade. Não há nada a mudar, é
certo, mas muito a gritar. "O pequeno sucesso da minha existência
é ter conseguido, apesar de tudo, este feito, que todos concordem,
por um momento, direita, esquerda, centro, sacristias, lojas (2),
células, o conde de Paris, Josefina, o abade Trololó,
que eu sou o maior lixo que existe!" Esse bate-boca monologante,
essa retórica do achincalhe, por difícil que seja
aceitá-lo, é o que o século francês,
em matéria de prosa, tem de melhor a oferecer.
Alguém lembrará, com razão, que todo pessimismo
é forma de dogmatismo. Ora, ainda neste caso, Louis-Ferdinand
terá levado a pior. O pautário dogmático sobre
o qual vai se basear, se é que se pode falar em bases quando
se fala de Céline, é nada menos que o "fascio".
Se é possível ser fascista quando se trabalha com
a dúvida... Mas admitamos: os panfletos de Céline
(3), em que peso à organização em solilóquios
delirantes, "modus operandi" que coincide com o de toda
a obra de ficção, à exceção talvez
de "Voyage au Bout de la Nuit", estilisticamente embrionário,
são tematicamente nazistóides.
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Dinamites
na literatura |
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Mais uma vez, é aí que
está o ponto. Porque Céline ideólogo é
uma convergência de aversões, uma crise de vômitos,
antes que um programa político. A idéia nazi, cuja
passagem ao ato se consumará em fogo justamente, sob suas
vistas, numa Alemanha acuada, lugar de exílio e auge da danação,
é uma fantasia de apocalipse. Céline vai aperfeiçoar
essa idéia. Em termos, como sempre, discursivos, já
que, como se tem hoje por estabelecido, Céline político
nunca foi homem de ação. Aos anticomunismo e antissemitismo
hitlerianos, ele vai acrescentar a sua verve anti-negra, anti-católica,
anti-maçônica, anti-colonialista, anti-militarista,
anti-industrialista, anti-alcóolica. Entre outras.
O objetivo último, nesta série persecutória,
reverte facilmente a primeiro. Em se tratando, como é o caso,
de um escritor de primeiro plano: a respeitável língua
francesa escrita, veículo de uma auto-imagem nacional idealizada
e, de preferência, intocável. Céline vai dinamitar
o espaço literário francês do entre-guerra -
e do que resta do século, que já fora proustiano -
ao trazer para o seu venerável interior a carga pesada da
gíria, o "argot", língua do ódio,
como diz; do calão mais baixo, mais "França profunda";
do acanalhado; do "parigot". (4).
Vai contrapor-se, dessa maneira, vigorosamente, a um certo embuste
naturalista, que recebe a sujeira da língua nos diálogos
mas a mantêm à distância do pivô da narração
- ou do escritor. Vai estilizar, por luxo, esse material, num duplo
movimento poético, marcando também o abismo que vai
desse seu esteticismo ao "gauchismo" escrevente, à
la Barbusse.
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Veia
suicidária |
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Contra tudo e contra todos o Dr. Destouches.
Inimigo do gênero humano - no fim, além de Lucette
Destouches, Céline só se aproximava dos gatos e dos
cachorros - e, por incrível que pareça, um médico
de profissão. Médico de ambulatório de periferia.
A medicina, neste caso, propicia sobretudo a perspectiva do asqueroso.
E confirma o sentimento de perseguição. Nas últimas
linhas do último romance, a sua gana destruidora aponta para
um último perigo: o amarelo. Os chineses, alucina, vão
tomar conta de todo o planeta. Por uma feliz coincidência,
que os comentaristas não deixam escapar, o fim da nação
francesa "bate" com o fim do escritor. De tal forma o
catastrofismo celiniano, o antissemitismo, por exemplo, representam
um movimento auto-direcionado, uma veia suicidária. Ao terminar
"Rigodon", na constatação da invasão
da França por hordas de asiáticos, o escritor, pessoalmente,
está morrendo.
O resgate da dívida que Céline terá contraído
então, na observância quotidiana da blasfêmia,
vai ser diretamente proporcional. Mais que à morte vindicativa
que lhe impõe, à revelia, um tribunal da Liberação,
mais que a condenação à prisão, posteriormente,
e a um "estado de indignidade nacional", mais que ao confisco
da metade dos seus bens, aquela metade certamente que escapou ao
saque da casa de Montmartre... o escritor vai ser condenado à
supuração do seu lirismo desandado. Ou, o que talvez
signifique o do veneno que secreta, profundamente entranhado.
Céline, em outras palavras, é um condenado à
literatura. Entendida como único lugar de se estar. "Que
comece a festa!". "Os que vão morrer vos saudam!",
escreve, nos últimos meses da Ocupação, de
dentro de "Féeries pour Une Autre Fois". Antecipando
assim o que será o auto-da-fé ultra-ofensivo, o espetáculo
histérico do instinto popular. Entregue às feras -
dos males o menor para quem está, antes, entregue a si mesmo
- mas romanescamente instalado. Essa não seria a primeira
vez, em todo caso, nem muito menos a última, em que o escritor
estaria, entre frágil e onipotente, em desacordo perfeito
com a voz geral.
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Equívocos
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Da morte física, Céline
vai escapar - fugindo. O que não tem tempo de fazer seu editor,
Denoel, executado em plena rua. O caminho do escritor, depois do
Desembarque, é na direção da bússola.
Na falta, aparentemente, de qualquer outra direção.
O caminho é para o "Norte", como chamou o penúltimo
livro da trilogia final. (5) Rumo à Dinamarca, via Baden-Baden,
enclave petainista alemão. Ao longo desse caminho, o escritor
vai errar - e urrar. Vai derivar como o "outro" execrado
justamente, como esse duplo deslavado de si mesmo: o judeu.
No entretanto, é de revolta, pior, de revolução
que falam seus leitores, progressistas, em 1932. E é com
base nesse equívoco que as letras francesas vão saudar,
no ano da publicação de "Voyage au Bout de la
Nuit", o jovem Dr. Destouches, herói da primeira guerra,
aliás como Petain. Céline perde o prêmio Gouncourt
desse ano. Mas fica com o Renaudot. "Voyage au Bout de la Nuit"
explode como uma bomba. Desmorona o sistema de equilíbrio
francês dos anos 14-30, montado sobre a guerra, a exploração
colonial, o taylorismo industrial, o conservadorismo da burguesia
nacional.
Os críticos começam a procurar, envolvendo nessa busca
a literatura francesa toda, e um bom recorte da ocidental, os que
seriam os seus antecessores. Rimbaud, Lautréamont, Jarry,
Dada pela iconoclastia, Juvenal, Bocaccio, o romance picaresco espanhol,
Swift, Valles pelo satirismo, Zola, Huysmans, D H Lawrence pelo
naturalismo, Tallement des Réaux, Froissart, Sévigné,
Saint-Simon pela crônica.
"Voyage au Bout de la Nuit" - e de resto toda a obra de
Céline - seria panfleto? romance? autobiografia? epopéia?
Céline escreveria em língua falada? Falaria como o
povo? Seria um falso populista? Um gauchista? Um reacionário?
Um poeta? Um monstro? Alimentando a polêmica criada desde
logo em torno do seu nome, Céline responde em pessoa, e em
disposição, como sempre, extática: "Je
suis un raffiné, un aristocrate!". Quando não:
"Je suis un styliste, Monsieur!". Ou ainda, paradoxalmente:
"J'ai écrit 'Voyage', pour payermon appartement".
Sobretudo, ele tem consciência de que a sua é uma descoberta
inaudita, um estilo truculento e, ao mesmo tempo, supremamente musical.
Decepcionando os primeiros admiradores, recrutados, diga-se, à
direita e à esquerda, o que joga a favor da habilidade do
escritor, isto é, da sua indecisão ideológica,
a bomba celiniana era essencialmente destruidora. Letal, arrasante.
Virtudes de que o estilista de Meudon, na verdade, nunca abriu mão.
"Eu não envio mensagens ao mundo", escreve em alguma
parte. E acrescenta: "Eu não cogito para o planeta".
O planeta, é o que Céline espera ver acabar, e em
fogo. Ele chegou muito perto disso, nas adjacências do Reischtag,
durante o fim da segunda guerra mundial. A guerra, essa "imensa,
universal gozação", escreve em "Voyage au
Bout de la Nuit".
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Decepção
geral |
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A repousar sobre os louros do primeiro
reconhecimento - "Voyage" será levado para o cinema
por Claude Autant-Lara - Céline haveria de ser tomado por
aquilo que nunca foi. E nem podia ser, dada a sua envergadura: mais
um escritor de esquerda. Aragon e Elza Triolet apressam-se em traduzi-lo
para o russo, no afã de sublinhar um namoro bolchevique.
Inutilmente. Céline visita a URSS em 1936 e volta fazendo
o que nenhum "intelectual", na época, teria tido
a coragem de fazer: falando mal. Tanto quanto critica as indústrias
Ford, que conhece numa missão médica e cujo funcionamento
diabólico descreve no romance, atacando os EUA em bloco.
Em "La Force de l'Age", Simone de Beauvoir considera o
anarquismo de Céline muito próximo do seu - e do de
Sartre. E note, o que é ainda mais significativo, a diferença
fundamental entre a escrita celiniana - "tão viva quanto
a palavra" - e o tom "marmóreo" de Alain,
Gide e Valéry.
Sartre, por sua vez, vai extrair de Céline a epígrafe
de "La Nausée". Para anos depois, em 1945, no "Portrait
de l'Antisémite", acusar: "Se Céline pode
defender as teses sociais dos nazis, é que era pago para
isso". (6) Sarte não fornece provas do que afirma, nem
alude a um testemunho sequer. Este é o momento em que, em
Paris, começa a instrução do processo Céline.
Por isso também, o escritor nunca o perdoará: "Ele
precisava de dois anos de cadeia, três anos de trincheira
para aprender o verdadeiro existencialismo, e uma boa invalidez
para parar de divagar". (7)
Trotski, Lévi-Strauss, então ligados aos socialistas,
os homens do "L'Humanité", o jornal do Partido
Comunista Francês, homenageiam, no momento do seu aparecimento,
o jovem autor. Fazendo coro com vozes de procedências outras.
Como a do bravo Leon Daudet, da ultra-direitista Action Française:
"Seus dons extraordinários podem e devem elevá-lo
agora aos Alpes, quer dizer, às alturas a que alguém
pode chegar depois de passar por charcos tão nauseabundos".
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Reabilitação
tardia |
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De "Mort à Crédit"
em diante, e progressivamente, ninguém mais vai se ocupar
de Céline. Os panfletos são recolhidos em 1939. O
escritor entra no "Index Librorum Prohibitorum". "Eu
tinha tudo o que era preciso para me tornar interessante",
trata de explicar, em 1957, de volta da Dinamarca, a uma jornalista
da revista "L'Express". A curiosidade em torno do escritor
caído em desgraça é imensa, nessa hora. Céline
está sendo reabilitado aos poucos, dificilmente, e seus livros
publicados pela editora da Nouvelle Revue Française, dirigida
durante a fase da Ocupação, por Drieu La Rochelle,
que se suicida na Liberação. Céline está
também, então, prestes a entrar para a "Pléiade".
Ainda assim, o que predomina é o achaque: "Eu acabei
cedendo a mania sacrificial!... Antes tivesse ficado quieto, eu
teria feito uma carreira gloriosa, mas não! Acabei virando
o objeto preferido da sanha racista". Paranóico, ele
não distingue entre ofensor e ofendido. É ele Céline,
perseguidor (de boca) de judeus, o perseguido. É ele o crucificado.
Teria sido por total acaso, ademais, que pegou a fila dos acontecimentos
"pela direita". Deixando de se encaixar assim numa corrente
literária destinada ao sucesso - e ao lado bom da história:
a "série Sartre-Camus". "Esses naturalistas
modernizados, freudizados...", escarnece, num lamento.
Ora, que importância pode ter hoje, sobretudo literária,
diante da obra deixada por Céline, e com um recuo de quase
meio século, o "pensum" humanista de um Camus?
__________
(1) Os romances de Céline traduzidos no Brasil
são, por enquanto, só dois: "Morte a Crédito"
e "Norte", respectivamente o segundo e o penúltimo
do autor. Existe ainda uma tradução portuguesa do
primeiro romance: "Viagem ao Fundo da Noite".
(2) Céline refere-se às lojas maçônicas.
(3) Os panfletos - "Bagatelles pour un Massacre",
"École des Cadavres" e "Beaux Draps"
- foram escritos entre 1937-1941 e assinados por Céline com
o seu nome civil: Louis-Ferdinand Destouches. Por força da
lei francesas que proíbe a circulação de propaganda
racista, essa parte da obra de Céline, dificilmente separável
da ficção, é interdita.
(4) O "parigot" é o parisiense, a língua
das ruas de Paris.
(5) Escritos entre a Alemanha, a Dinamarca e a França,
os três últimos romances, todos em torno da sua própria
trajetória durante a guerra, são: "D'un Chateaul'Autre";
"Noro" e "Rigodon".
(6) Esse artigo de Sartre, que é publicado em dezembro
de 1945, na revista "Les Temps Modernes", será
mais tarde inteiramente retomado em "Refletions sur la Question
Juive".
(7) Céline foi ferido no braço quando servia
durante a Primeira Guerra Mundial. Exagerando a extensão
do seu problema, ele reivindica até o fim da vida um ferimento
na cabeça, das sequelas do qual, imaginariamente, nunca se
recuperou.
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