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Conheça os
personagens da Semana de 22:


- Mário de Andrade
- Graça Aranha
- Oswald Andrade
- Anita Malfatti
- Manuel Bandeira
- Villa Lobos
 
 
São Paulo, sábado, 13 de fevereiro de 1982

NOITE DE VAIA E DE VITÓRIA

Abaixo um fragmento das memórias de Menotti Del Picchia, relatando um dos momentos de maior antagonismo entre o público presente no Teatro Municipal, no dia 15 de fevereiro de 1922, e os artistas modernistas que ali se apresentavam.

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Chamei Oswald de Andrade.

Foi então que, sob o comando dos piquetes de vaia, rompeu no Teatro Municipal a maior assuada que me foi dado ouvir na vida. Uivos, gritos, pateadas no assoalho, risadas, dichotes chistosos ou impertinentes. Um caos!

Oswald não se perturbou. Marchou, impávido, para a frente da ribalta. Tomou entre as mãos gordas mas firmes as tiras datilografadas de um capítulo de "Os Condenados" e pôs-se a ler fundindo-se sua voz na gritaria. Em vão tentei restabelecer silêncio e ordem.
- Escutem e julguem antes de vaiar! - gritava eu inutilmente. Ninguém obedecia - Atenção! Silêncio!

Como um herói numa trincheira visada por todos os lados pela fuzilaria inimiga e revidando com o esvasiar a carga da única arma, Oswald, calmo, com o sorriso mordaz com que fazia suas travessuras literárias, continuava a ler a história de Alma, das criaturas fatalizadas e torturadas que animavam seu romance 'Os Condenados". Ao terminar, o estrondo de vaias aumentou.

Foi minha vez de tentar serenar o tumulto. Agora ninguém me obedecia. A sessão, porém, não podia parar. Então chamei Mário de Andrade.

À vista de Mário - do grande Mário - a platéia pareceu ficar alucinada: o clamor atroou com a violência com que os escribas, os fariseus e a patuléia judaica gritavam "crucifige" no átrio de Pilatos, quando o covarde legado de César entregou à turba a figura sanguinolenta do Cristo após a flagelação. Era contra Mário de Andrade que a revolta da assistência explodia com maior veemência.

Como no Horto o Filho do Senhor, Mário de Andrade pela primeira vez fraquejou. Adivinhei nos seus olhos a súplica que o Cordeiro dirigiu ao Pai celeste na hora suprema de sua agonia: "Afasta de mim esse cálice..." Não havia ceder. Compreendi a angústia do mártir - pois Mário tornou-se o Tiradentes da nossa Inconfidência - e vendo que ele recuava ao impacto estertóreo da platéia, segurei-o pelo paletó e disse:

- Mário! Que é isso?

O grande artista - glória da geração - reagiu já sereno e heróico. Vi-o voltar-se para a platéia, fronte larga como uma praça coruscante de sol rebrilhante à luz dos refletores, mão nervosa premendo o original amassado, voz que procurava tornar dominadora e declamar.

"São Paulo! Comoção da minha vida..."

Declamou até o fim o seu canto arlequinal, pórtico desse desafio genial do Verbo Novo que é "A Paulicéia Desvairada". Essa bravura tocou a platéia mas a tempestade não amainou. Foi a vez de Guilherme de Almeida, de Plínio Salgado, de Renato de Almeida... A multidão não dava trégua. Por fim surgiu Ronald de Carvalho.

O então jovem poeta dos "Epigramas Sentimentais" era uma figura aristocrática e bela. Vestido com apuro britânico, cabelo repartido por um risco nítido em duas massas luzidias e negras impressionou a assistência, notadamente a feminina, a qual não era pequena. Nessa hora, porém, das galerias onde se haviam entrincheirado os estudantes, um deles latiu como cachorro:"Bau! Bau! Bau!". Foi o bastante para desviar a atenção da massa e fazer-se um curto silêncio. Dele se aproveitou atrevido e sorridente o saudoso Ronald:

- Senhoras e Senhores! Todos são testemunhas de que há um cachorro nesta sala e todos verificaram que êle não está aqui no palco mas no lado de lá... - e apontou as galerias.

A gargalhada desfez a atmosfera de prevenção da platéia. A presença de espírito do autor de "Toda a América" amainou a tempestade. Ouviram-no com atenção e interesse recitar as estrofes por onde passa o mesmo generoso sopro de fraternidade humana que também sacode as "Folhas" do poema de Walt Withman. Ronald operara o milagre de dominar o monstro uivante. Já se estabelecia uma simpatia entre a assistência e o heróico grupo modernista que suportara tão esportivamente os achincalhes e as assuadas. Ele registrava nossa vitória.