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São
Paulo, sábado, 13 de fevereiro de 1982
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NOITE DE VAIA E DE VITÓRIA
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Abaixo
um fragmento das memórias de Menotti Del Picchia, relatando
um dos momentos de maior antagonismo entre o público presente
no Teatro Municipal, no dia 15 de fevereiro de 1922, e os artistas
modernistas que ali se apresentavam.
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Chamei Oswald de Andrade.
Foi então que, sob o comando dos piquetes de vaia, rompeu
no Teatro Municipal a maior assuada que me foi dado ouvir na vida.
Uivos, gritos, pateadas no assoalho, risadas, dichotes chistosos
ou impertinentes. Um caos!
Oswald não se perturbou. Marchou, impávido, para a
frente da ribalta. Tomou entre as mãos gordas mas firmes
as tiras datilografadas de um capítulo de "Os Condenados"
e pôs-se a ler fundindo-se sua voz na gritaria. Em vão
tentei restabelecer silêncio e ordem.
- Escutem e julguem antes de vaiar! - gritava eu inutilmente. Ninguém
obedecia - Atenção! Silêncio!
Como um herói numa trincheira visada por todos os lados pela
fuzilaria inimiga e revidando com o esvasiar a carga da única
arma, Oswald, calmo, com o sorriso mordaz com que fazia suas travessuras
literárias, continuava a ler a história de Alma, das
criaturas fatalizadas e torturadas que animavam seu romance 'Os
Condenados". Ao terminar, o estrondo de vaias aumentou.
Foi minha vez de tentar serenar o tumulto. Agora ninguém
me obedecia. A sessão, porém, não podia parar.
Então chamei Mário de Andrade.
À vista de Mário - do grande Mário - a platéia
pareceu ficar alucinada: o clamor atroou com a violência com
que os escribas, os fariseus e a patuléia judaica gritavam
"crucifige" no átrio de Pilatos, quando o covarde
legado de César entregou à turba a figura sanguinolenta
do Cristo após a flagelação. Era contra Mário
de Andrade que a revolta da assistência explodia com maior
veemência.
Como no Horto o Filho do Senhor, Mário de Andrade pela primeira
vez fraquejou. Adivinhei nos seus olhos a súplica que o Cordeiro
dirigiu ao Pai celeste na hora suprema de sua agonia: "Afasta
de mim esse cálice..." Não havia ceder. Compreendi
a angústia do mártir - pois Mário tornou-se
o Tiradentes da nossa Inconfidência - e vendo que ele recuava
ao impacto estertóreo da platéia, segurei-o pelo paletó
e disse:
- Mário! Que é isso?
O grande artista - glória da geração - reagiu
já sereno e heróico. Vi-o voltar-se para a platéia,
fronte larga como uma praça coruscante de sol rebrilhante
à luz dos refletores, mão nervosa premendo o original
amassado, voz que procurava tornar dominadora e declamar.
"São Paulo! Comoção da minha vida..."
Declamou até o fim o seu canto arlequinal, pórtico
desse desafio genial do Verbo Novo que é "A Paulicéia
Desvairada". Essa bravura tocou a platéia mas a tempestade
não amainou. Foi a vez de Guilherme de Almeida, de Plínio
Salgado, de Renato de Almeida... A multidão não dava
trégua. Por fim surgiu Ronald de Carvalho.
O então jovem poeta dos "Epigramas Sentimentais"
era uma figura aristocrática e bela. Vestido com apuro britânico,
cabelo repartido por um risco nítido em duas massas luzidias
e negras impressionou a assistência, notadamente a feminina,
a qual não era pequena. Nessa hora, porém, das galerias
onde se haviam entrincheirado os estudantes, um deles latiu como
cachorro:"Bau! Bau! Bau!". Foi o bastante para desviar
a atenção da massa e fazer-se um curto silêncio.
Dele se aproveitou atrevido e sorridente o saudoso Ronald:
- Senhoras e Senhores! Todos são testemunhas de que há
um cachorro nesta sala e todos verificaram que êle não
está aqui no palco mas no lado de lá... - e apontou
as galerias.
A gargalhada desfez a atmosfera de prevenção da platéia.
A presença de espírito do autor de "Toda a América"
amainou a tempestade. Ouviram-no com atenção e interesse
recitar as estrofes por onde passa o mesmo generoso sopro de fraternidade
humana que também sacode as "Folhas" do poema de
Walt Withman. Ronald operara o milagre de dominar o monstro uivante.
Já se estabelecia uma simpatia entre a assistência
e o heróico grupo modernista que suportara tão esportivamente
os achincalhes e as assuadas. Ele registrava nossa vitória.
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