Arthur
Nestrovski
Especial
para a Folha
Escrevendo
sobre Villa-Lobos em 1929, Mário de Andrade criticava
a espontaneidade do compositor, responsável pelas "muitas
repetições, desequilíbrios, facilidades e efeitos" de
sua música. Mas reconhecia que a "falta de lucidez", o
"arroubo constante" era a salvação do nosso grande músico,
sem o que teria caído no cabotinismo.
Essa
ambiguidade do espontâneo em Villa-Lobos -a recriação,
ou descoberta da brasilidade na música, contra o panorama
da música européia tradicional- é o que há de mais característico,
mais interessante e mais difícil de interpretar na obra
do maior compositor do Brasil. Para quem vê de longe,
ele não é só o maior, mas virtualmente o único compositor
brasileiro de música de concerto.
O
Brasil, musicalmente, é igual a Villa-Lobos, como o México
é Carlos Chavez, e a Argentina, Ginastera. A injustiça
de um juízo tão simplificado é equilibrada pela dimensão
verdadeira das repercussões de sua música. Entre a vanguarda,
absorvida aqui e ali, em detalhes de orquestração e harmonia,
e os componentes mais conservadores, para não dizer reacionários,
ou populistas de sua música, o modernismo de Villa-Lobos
encarna mesmo uma idéia de país. É uma terra que cativa:
menos pelo exotismo do que pelas contradições. (Sobre
este assunto, vale a pena ler "O Coro dos Contrários"
de José Miguel Wisnick, de 1977, até hoje o melhor trabalho
sobre o compositor).
Questões
como essa vêm de novo à mente por ocasião deste lançamento.
São seis CDs, reunindo as gravações realizadas pelo próprio
Villa-Lobos em Paris, nos anos de 1954 a 1958. Aqui estão,
remasterizadas, as "Bachianas Brasileiras" completas (incluindo
a famosíssima "Bachiana" número 5, para soprano e violoncelos,
e movimentos como "O Trenzinho do Caipira", "Embolada",
ou a cantiga "Ó mana, deixa eu ir"), junto a peças como
os "Choros", a fantasia "Momoprecoce" (com Magda Tagliaferro)
e o Concerto número 5 para piano e orquestra (Felicia
Blumental) "Descobrimento do Brasil", de 1937 -quatro
suítes, baseadas na trilha sonora para um filme de Humberto
Mauro- tem mais interesse documental do que musical; mas
trata-se, enfim, do nosso maior espírito da música e o
simples registro é bem-vindo num país sem memória. O mesmo
se pode dizer sobre a qualidade das interpretações: nem
sempre são ideais, mais são as dele. Outra raridade bem-vinda
é uma pequena fala em francês de Villa-Lobos, com cerca
de dez minutos, sobre o significado dos Choros.
Não
há tradução no encarte, mas para quem entende a língua
é um registro único da simpatia pessoal de Villa-Lobos.
As idéias são comuns e nem aspiram a ser mais do que isto;
universalizar o regional, transcendentalizar o popular.
Mas o carisma desta voz, seja falando ou cantando, permanece
inalterado e nos surpreende com toda a naturalidade de
uma voz dos mortos que subitamente se escuta dentro de
casa. O que fazer de Villa-Lobos? Não parece ser esta
a questão que preocupa os compositores brasileiros de
hoje. Mas não sei se, nalguma medida, não deveria preocupá-los.
A construção dessa música é, com certeza, o seu ponto
fraco, Villa-Lobos é anacrônico, repetitivo, "desequilibrado",
como dizia Mário de Andrade. Mas em seus melhores momentos,
nos grandes gestos e linhas, nas intuições fulgurantes
que ultrapassam o próprio sentimentalismo, na tristeza
alegre, ou alegria triste das melodias que vão se espalhando,
angulosamente, por enormes espaços sonoros -em tudo isto
se manifesta um gênio musical do Brasil. "Era um gênio
mesmo", escreveu seu parceiro Manuel Bandeira, "o mais
autêntico que já tivemos, se é que algum dia tivemos outro".
Se é que algum dia teremos outro, ele poderia ter dito.
Ou seja: se é que algum dia teremos alguém capaz de corrigir,
ou reinventar Villa-Lobos, medindo forças com ele em seus
próprios termos.
Os
CDs:
Disco:
composições de Heitor Villa-Lobos Intérpretes: Magda
Tagliaferro, Victoria de los Angeles
Disco:
Villa-Lobos Par Lui-Même Intérprete: Felicia Blumenthal,
e outros solistas
Discos:
Bachianas Brasileiras, Choros, Momprecoce Intérprete:
Orchestre National de la Radiodiffusion Française
Disco:
Descobrimento do Brasil e outras obras Regente: Heitor
Villa-Lobos Lançamento: EMI