SEIS CDs REÚNEM GRAVAÇÕES DO COMPOSITOR VILLA-LOBOS EM PARIS

Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 7 de novembro de 1995


Arthur Nestrovski

Especial para a Folha

Escrevendo sobre Villa-Lobos em 1929, Mário de Andrade criticava a espontaneidade do compositor, responsável pelas "muitas repetições, desequilíbrios, facilidades e efeitos" de sua música. Mas reconhecia que a "falta de lucidez", o "arroubo constante" era a salvação do nosso grande músico, sem o que teria caído no cabotinismo.

Essa ambiguidade do espontâneo em Villa-Lobos -a recriação, ou descoberta da brasilidade na música, contra o panorama da música européia tradicional- é o que há de mais característico, mais interessante e mais difícil de interpretar na obra do maior compositor do Brasil. Para quem vê de longe, ele não é só o maior, mas virtualmente o único compositor brasileiro de música de concerto.

O Brasil, musicalmente, é igual a Villa-Lobos, como o México é Carlos Chavez, e a Argentina, Ginastera. A injustiça de um juízo tão simplificado é equilibrada pela dimensão verdadeira das repercussões de sua música. Entre a vanguarda, absorvida aqui e ali, em detalhes de orquestração e harmonia, e os componentes mais conservadores, para não dizer reacionários, ou populistas de sua música, o modernismo de Villa-Lobos encarna mesmo uma idéia de país. É uma terra que cativa: menos pelo exotismo do que pelas contradições. (Sobre este assunto, vale a pena ler "O Coro dos Contrários" de José Miguel Wisnick, de 1977, até hoje o melhor trabalho sobre o compositor).

Questões como essa vêm de novo à mente por ocasião deste lançamento. São seis CDs, reunindo as gravações realizadas pelo próprio Villa-Lobos em Paris, nos anos de 1954 a 1958. Aqui estão, remasterizadas, as "Bachianas Brasileiras" completas (incluindo a famosíssima "Bachiana" número 5, para soprano e violoncelos, e movimentos como "O Trenzinho do Caipira", "Embolada", ou a cantiga "Ó mana, deixa eu ir"), junto a peças como os "Choros", a fantasia "Momoprecoce" (com Magda Tagliaferro) e o Concerto número 5 para piano e orquestra (Felicia Blumental) "Descobrimento do Brasil", de 1937 -quatro suítes, baseadas na trilha sonora para um filme de Humberto Mauro- tem mais interesse documental do que musical; mas trata-se, enfim, do nosso maior espírito da música e o simples registro é bem-vindo num país sem memória. O mesmo se pode dizer sobre a qualidade das interpretações: nem sempre são ideais, mais são as dele. Outra raridade bem-vinda é uma pequena fala em francês de Villa-Lobos, com cerca de dez minutos, sobre o significado dos Choros.

Não há tradução no encarte, mas para quem entende a língua é um registro único da simpatia pessoal de Villa-Lobos. As idéias são comuns e nem aspiram a ser mais do que isto; universalizar o regional, transcendentalizar o popular. Mas o carisma desta voz, seja falando ou cantando, permanece inalterado e nos surpreende com toda a naturalidade de uma voz dos mortos que subitamente se escuta dentro de casa. O que fazer de Villa-Lobos? Não parece ser esta a questão que preocupa os compositores brasileiros de hoje. Mas não sei se, nalguma medida, não deveria preocupá-los. A construção dessa música é, com certeza, o seu ponto fraco, Villa-Lobos é anacrônico, repetitivo, "desequilibrado", como dizia Mário de Andrade. Mas em seus melhores momentos, nos grandes gestos e linhas, nas intuições fulgurantes que ultrapassam o próprio sentimentalismo, na tristeza alegre, ou alegria triste das melodias que vão se espalhando, angulosamente, por enormes espaços sonoros -em tudo isto se manifesta um gênio musical do Brasil. "Era um gênio mesmo", escreveu seu parceiro Manuel Bandeira, "o mais autêntico que já tivemos, se é que algum dia tivemos outro". Se é que algum dia teremos outro, ele poderia ter dito. Ou seja: se é que algum dia teremos alguém capaz de corrigir, ou reinventar Villa-Lobos, medindo forças com ele em seus próprios termos.

 

Os CDs:

Disco: composições de Heitor Villa-Lobos Intérpretes: Magda Tagliaferro, Victoria de los Angeles

Disco: Villa-Lobos Par Lui-Même Intérprete: Felicia Blumenthal, e outros solistas

Discos: Bachianas Brasileiras, Choros, Momprecoce Intérprete: Orchestre National de la Radiodiffusion Française

Disco: Descobrimento do Brasil e outras obras Regente: Heitor Villa-Lobos Lançamento: EMI


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