ARTISTA BAIANO FORMULA A "ESTÉTICA DO ARRASTÃO"

Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 19 de setembro de 1998


da Reportagem Local


Tom Zé lança, na música e em textos do encarte de "Com Defeito de Fabricação", um manifesto e alguns novos conceitos. O disco não contém faixas, mas "defeitos". "Aos olhos do Primeiro Mundo, nós das favelas e periferias do Terceiro Mundo somos andróides muito mais econômicos que os robôs da Alemanha, do Japão. Mas temos defeitos de fabricação horrorosos, que são esses que o CD enumera", procura explicar. Seria Tom Zé então um andróide de David Byrne? "Sim, sem dúvida, essa idéia está contida. Somos menos humanos que eles, uma subraça. Alguns defeituosos como eu chegam a fazer alguma coisa, aí o perigoso é o cérebro da comunidade crescer. Esses se misturam, são cooptados, se tornam capatazes do Primeiro Mundo." Outro conceito lançado no álbum é o da "plagicombinação". Para Tom Zé, trata-se de uma coleção de "arrastões". "Determinadamente, em todas as músicas eu tinha a preocupação de tirar alguma coisa de outro lugar. A era do compositor, do autor acabou. Agora é o plagicombinador", proclama. Seus "plágios", assumidos e decupados no encarte do CD, contemplam Santo Agostinho, Tchaikovsky, Flaubert, Jorge Luis Borges, poesia concreta, Ernesto Nazareth, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé (sim, ele mesmo), Martinho da Vila. "Somos um alfabeto de referências. Uso esse alfabeto em pequenas células, como plágios ou citações. Essa é a estética do arrastão, da bricolagem." Ele nega que tais elementos consistam numa atualização dos procedimentos neo-antropofágicos dos tropicalistas, preconizadores da devoração das influências estrangeiras da moda pelo artista brasileiro, "subdesenvolvido". "Não é, de jeito nenhum. Posso dizer que nunca fui antropofágico. Meu trabalho não tem nada a ver com Oswald de Andrade, não tem influência de Beatles, das coisas que influenciaram a tropicália." Ele continua: "Não é antropofagia que pratico, porque na antropofagia o sujeito pega um negócio que acabou de ver agora e começa a botar para fora. Não, eu agora quero naturalmente botar para fora todas as velhas coisas que meu espírito aprendeu dos 0 aos 8 anos de idade. Sou 'destropicalista'." Seria o tropicalismo uma maldição, uma sina para ele? "Não, acho uma coisa adorável. Você nem pode imaginar o Brasil que era antes, a tristeza... O tropicalismo deu muita velocidade à configuração do que o Brasil é hoje. Passaram a existir MPB e tropicalismo, que era a traição, o entreguismo, a babaquice nacional. Não foi fácil." Embora sua atividade tropicalista lhe atraia camadas de consumidores e artistas norte-americanos e europeus hoje influenciados pelo movimento, cedo Tom Zé se isolou daquela vertente, partindo para experimentalismos mais radicais. "Em 1978, eu já estava o mesmo que os inimigos de Stálin, estava fora das fotografias. Quando aconteciam os aniversários do tropicalismo, eu era cada dia menos chamado. Então eu desapareci." "Pensava que havia algo errado com esses trabalhos, que não eram bons. Não sou tão presunçoso para querer dizer que eu era a verdade diante de tudo. Mas fui reouvir 'Estudando o Samba' (76), era lindo. Para mim era tudo tocável, mas me enganei completamente." Diz que esteve prestes a desistir definitivamente da carreira. "Em 1986, quando Byrne estava comprando meu disco no Rio de Janeiro, porque tinha a palavra 'samba' escrita grande na capa, passei por uma que me tirou da profissão." Foi por causa de um show na Praia Grande, para o sindicato dos bancários. "Ninguém nem sonhava quem era eu. Fui um fracasso. Quando cheguei em casa, deixei o choro sair, chamei minha mulher e disse: 'Vamos largar, eu não aguento mais'." "Desisti e comecei a procurar um trabalho em Irará. Ia trabalhar com meu primo no posto de gasolina dele em Irará. Mas aí soube que Byrne estava interessado. Liguei para Caetano para perguntar, ele disse: 'Não, Tom Zé, deve ser Tuzé de Abreu, que ele conhece'. Mas parei o negócio de ir para Irará, até resolver isso aí." Era Tom Zé, e mais uma vez o homem civilizado descobriu o Brasil.

(PEDRO ALEXANDRE SANCHES).


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