É claro que extravasa para os resultados a alegria de
Tom Zé por poder finalmente fazer à vontade as maluquices
musicais em que continuava acreditando por todas as
décadas de vaivém. "Jogos de Armar - Faça Você Mesmo"
é um disco à vontade, o que transparece, metaforicamente,
no uso e abuso de pilhérias e palavrões, muitos deles
de conotação sexual (mas ainda o reverso do axé; "tiraram
os colhões do rock/ enrabaram o iê-iê-iê", brinca a
certa altura) antes ele parecia envergonhado de
explicitá-los. A experimentação é acelerada, e às vezes
até incorre em certa interrupção de fluência (em "Passagem
de Som", por exemplo). Tom Zé sai comendo sílabas mundo
afora, e desmembra o bicho clássico "Asa Branca", despregando
suas sílabas populares. Mas quase sempre o experimentalismo
é aveludado por melodia ("Peixe Viva"), por construções
meticulosas de arranjo, por pura musicalidade ("Jimi
Renda-Se", original de 70, e "Conto de Fraldas", de
84, são espantosas nesse aspecto), por intensas abordagens
do Nordeste agreste (a engraçadíssima "Medo de Mulher",
"Desafio", outras várias). A pena poética também constrói
novos dardos, às vezes cruéis. "Meus
senhores, vou lhes apresentar/ a figura do homem popular/
esse tipo idiota e muquirana/ é um bicho que imita a
raça humana", canta em "Desafio", para então desatarraxar
aqueles versos em irônico protesto. Nos extremos de
"Moeda Falsa" ("o dólar é moeda falsa") e "A Chegada
de Raul Seixas e Lampião no FMI" ("o FMI viu que não
tinha mais jeito/ e entregou todo o dinheiro/ para o
pobre dividir"), chega a encenar uma utopia do subdesenvolvimento,
sem prescindir de descrente sarcasmo. Bem, a trilha
é tortuosa, e Tom Zé desfruta das vantagens de não haver
se desgastado na coisificação da MPB sua inquietação
deve ser a mais visível delas. O CD vem num corpanzil,
e talvez a história estivesse mesmo se desenrolando
como era para ser.
Jogos
de Armar Bom Artista: Tom Zé
Gravadora: Trama