O ORADOR

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 18 de outubro de 1936.

Neste texto foi mantida a grafia original

ANTON TCHEKHOV

Realizavam-se naquella manhã os funeraes do inspector municipal Kiril Vavilonov, fallecido em virtude de dois males muito frequentes: a esposa de mau genio e o alcoolismo.

Quando o cortejo funebre se poz em marcha da igreja para o cemiterio um dos gollegas do morto metteu-se num carro e fez-se conduzir apressadamente á casa do seu amigo Griogori Sapoikin, um homem de pouca idade ainda, mas que conquistara grande popularidade.

Dispunha esse moço do raro talento de improvisar discursos de casamento, orações funebres e brindes em banquetes, assim como qualquer fala de sessão solene.

Podia falar a qualquer hora: ao levantar da cama, em jejum, bebedo ou com febre. O seu discurso era sempre harmonico e prolixo; havia mais palavras piedosas no seu vocabulario do que pedras num caminho. Falava com elegancia e com tanto follego, que ás vezes era necessario recorrer á policia para o fazer parar.

- Venho buscar-te meu caro! - começou o amigo, logo que esteve na presença dele. Veste-se e anda depressa. Morreu um dos nossos amigos; vae agora a caminho do outro mundo, e é preciso dar-lhe as despedidas. Bastará que digas qualquer meia duzia de tolices... Confiamos em ti. Se tivesse morrido um dos empregados inferiores, não te incommodariamos; mas trata-se do inspector. E não se póde enterrar um cidadão assim sem discurso!

- Ah! - exclamou Sapoikin. Era aquelle inspector borrachão?

- Esse mesmo. Mas vamos, homem!

Sapoikin accedeu com todo o prazer. Alisou o cabello com as mãos, compoz a cara num gesto de profunda tristeza e sahiu para a rua.

Quando se achou entre os amigos do defunto, declarou muito ufano:

- Conheci esse homem. Era idiota como poucos. Paz à sua alma.

- Vamos ... observaram-lhe. Não fica bem insultar os mortos!

- Claro que não! Mas de qualquer maneira elle era um bom patife!

Alcançaram o cortejo, e acompanharam-no. O morto era levado muito vagorosamente, de modo que houve tempo, antes de chegar ao cemiterio, de entrar de fugida nas tabernas do caminho para beber uns copazios "a saude" do fallecido.

A sogra, a mulher e a cunhada do defunto choraram muito no campo santo, como é costume. Quando baixou o caixão á cova, a esposa gritou:

- Deixe-me segui-lo!

Mas pensando talvez na sua pensão de viuva, ficou prudentemente á beira da sepultura.

Quando tudo se acalmou, Sapoikin deu um passo á frente, abarcou com um olhar todos os presentes e principiou:

- Será possivel que os nossos olhos vêm e o que os nosso ouvidos ouvem? Não será um pesadelo este caixão, estes rostos lacrimejantes, estes soluços e estes gemidos... Ai de mim! Não é um sonho não... Os olhos não se enganam, e os ouvidos não nos mentem! Aquelle que ha pouco vimos tão forte, tão saudavel e tão alegre, aquelle que leva para os cofres municipaes, como a abelha obreira, o mel dos impostos, transformou-se num cadaver e todas as suas obras são agora um espelhismo. A morte, que desconhece a piedade, poz sobre elle a sua mão gelada no instante em que, apesar da avançada idade que tinha, sentia a plenitude de suas forças alimentando as melhores esperanças!... Que perda irremediavel! Quem ha de substituil-o. temos muito bons funccionarios, mas Prokopif Ossipitof era unico. Consagrou-se com toda a alma ao cumprimento do seu dever, e era inatacavel incorruptivel... Zeloso das suas obrigações, não conheceu os prazeres da vida e até privou da felicidade a propria familia... E quem o substituirá como amigo? Tenho ainda diante dos olhos o seu rosto sem barba, risonho... Ouço ainda a sua voz amiga, suave... Paz ao teu corpo e á tua alma, Prokopif Ossipitof! Descansa em paz, martyr da nobreza e da honestidade...

Sapoikin continuava e os circunstantes começaram a murmurar entre si. Todos gostavam do discurso que conseguira até provocar algumas lagrimas; tinha no entanto certas coisas muito estranhas...

Em primeiro lugar não se compreendia que o orador chamasse ao morto Prokopif Ossipifot quando na realidade o seu nome era Kiril Vavilonov; em segundo lugar sabia-se que o morto usara durante toda a sua vida uma barba espessa e comprida, que nunca a tinha cortado desde que nascera; e por fim era publico e notorio que elle fora sempre um carrasco para a esposa. Por que se referia então o orador ao rosto barbeado e á sua nobreza e honradez?... Os circunstantes olharam-se estupefactos, e encolheram os hombros...

- Prokopif Ossipitof! - continuou o orador, de olhos postos na sepultura aberta. O teu rosto era feio, talvez horrivel; era resmungão e maldizente, mas todos sabiamos que sob esse exterior batia um coração bello e bondoso...

Nesse momento, os presentes começaram a notar que se passava qualquer coisa estranha com o orador. Este olhou fixamente para um ponto determinado; as suas pupilas dilataram-se; começou a mover-se com inquietação, e a encolher os hombros tambem. De repente, calou-se, abriu a bocca assombrado e voltou-se para o amigo que o fora chamar.

- Escuta, meu velho... Elle está vivo! - gritou aterrorizado.

- Quem é que está vivo?

- Prokopif Ossipifot! Esta ali, junto daquelle tumulo! Olha... ali!

- Mas aquelle não é o morto! Este cadaver é de Kiril Vavilonov!

- Não me disseste que tinha morrido o inspetor municipal?

- Decerto! Kiril tambem era inspetor... Agora já sabes... Por que ficas assim?... Vamos continua... Que vae pensar essa gente?

Sapoikin voltou-se para a cova aberta, e proseguiu a sua oração funebre com a mesma eloquencia de antes.

Prokopif Ossipitof, que se approximara ao ouvir citar o seu nome, mostrava em silencio a sua cara iracunda...

Depois desse dia, nunca mais Sapoikin fez um discurso. O homem que elle enterrava vivo era um admirador da sua eloquencia, mas nunca lhe perdoou o ter dito que elle era incorruptivel e inatacavel. Allegava que, de uma pessoa viva, isso só se póde dizer com intenção ironica...

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