A CONDECORAÇÃO

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 5 de outubro de 1952.

Neste texto foi mantida a grafia original

ANTON TCHEKHOV

O mestre-escola Leon Pustiakof mora ao lado da casa de seu amigo, o tenente Ladenzof. Para lá se dirige na manhã do dia de Ano Novo.

- Verás de que se trata, amigo Gricha - diz-lhe depois das felicitações de boas-festas usuais. - Não te aborreceria se não se tratasse de um assunto urgente. Empresta-me, por hoje, tua condecoração de Santo Estanislau. Fui convidado para cear em casa do comerciante Spitchkin, aquele imbecil que conheces. É louco por condecorações. Alem disso tem duas filhas: Nastia e Zina... E... como és amigo, compreendes, meu caro? Rogo-te, pois, que ma emprestes.

Todo este discurso é balbuciado timidamente. Pustiakof, vermelho de confusão, a cada palavra volta-se, olhando ansiosamente para a porta de entrada. O tenente diverte-se, porem cede-lhe a condecoração.

Naquela mesma tarde, às duas horas, Pustiakof, num carro de aluguel, dirige-se para a casa de Spitchkin. Leva o capote entreaberto e contempla o peito, onde, com esmalte de cor e pontas douradas, resplandece a condecoração alheia.

- Qualquer cidadão sente-se mais considerado graças a esta coisinha - pensa. - Um traste tão insignificante custará, quando muito, cinco rubros, e quanta importancia tem!

Ao chegar em frente da casa de Spitchkin, abre completamente o casaco e tira o dinheiro para pagar a condução, parecendo-lhe que o homem aturdira-se ao ver suas ombreiras, os botões reluzentes e a condecoração. Pustiakof tosse satisfeito e entra na casa. Ao tirar o casaco na antecamara, olha o salão, onde já se acham uns quinze convidados. Ouve-se o rumor das vozes e o barulho de pratos.

- Quem é? - pergunta o anfitrião. - Olá! É você, Leon? Boas Festas! Chega um pouco tarde, porem, isso não importa. Acabamos de nos sentar.

Pustiakof, com o peito alçado e cabeça erguida, entra esfregando as mãos. No mesmo instante vê algo desagradavel: ao lado de Zina senta-se um companheiro seu, o professor de francês Tramblin. Deixá-lo ver a condecoração seria expor-se a uma infinidade de perguntas e averiguações importunas. Seu primeiro impulso é arrancar a condecoração ou pôr-se a correr, mas ela está fortemente presa, e não é mais possivel retroceder.

Tapando o peito com a mão direita e encolhendo-se o mais que pode, entra rapidamente, faz uma saudação geral e senta-se na primeira cadeira vazia que encontra, que, por coincidencia, fica em frente ao francês.

- Certamente bebeu um pouco - pensa Spitchkin ao notar seu rosto contrafeito.

- Desculpe-me... Fui visitar o conego, e ele não só me convidou, como me obrigou a comer.

Desgosta-se, incomodado; cresce-lhe a raiva. O peixe tem, verdadeiramente, um aspecto apetitoso. Experimenta deixar livre a mão direita, enquanto cobre, com a esquerda, a condecoração. A posição é desagradável. "Dará na vista estar com a mão posta sobre o peito como um tenor que se prepara para cantar. Meu Deus, como demora essa comida! Quero comer alguma coisa".

Depois do terceiro prato, levanta timidamente os olhos para o francês. Tramblin está tambem, visivelmente incomodado; olha-o com ar desconfiado e tambem não come. Ao cruzarem o olhar, ambos se envergonham e desviam-no para os pratos vazios.

- O maroto já percebeu tudo, pelo seu jeito noto que já viu a condecoração - pensa desesperadamente Pustiakof. - Esse sujeito é um miseravel, um intrigante; contarei o que sei dele, amanhã, ao diretor.

Servem o quarto prato, e o quinto... Um cavalheiro alto, narinas largas e cabeludas, olhos pequenos, levanta-se, alisa a cabeça e exclama: "Brindo à saude das senhoras."

Os comensais põem-se, ruidosamente, de pé e levantam as taças. Alegre "viva" ressoa por toda a casa. As senhoras sorriem, levantando-se tambem para o brinde. Pustiakof, por sua vez, ergue-se e apanha a taça com a mão esquerda.

- Por favor, Leon; dê esta taça à sua vizinha, a fim de que tambem ela beba - diz um dos convidados ao mestre-escola.

Não há mais remedio. Pustiakof, muito a contragosto, tira a mão do peito para pegar o copo, e a condecoração, com a fita vermelha enrugada, resplandece à luz do dia. O mestre-escola empalidece, baixa a cabeça e lança uma furtiva olhadela ao francês que a contempla cheio de assombro e surpresa, um sorriso malicioso esboçando-lhe nos labios, enquanto o mal-estar vai-lhe desaparecendo do semblante.

- Juli Avgestovitch - diz o anfitrião ao francês; - quer, por obsequio, passar-me a garrafa que tem à frente?

Tramblin, indeciso, estica a mão e - que felicidade! - Pustiakof vê brilhar tambem no seu peito uma condecoração. E não é a de Santo Estanislau: a de Santana! Com que então o francês usou do mesmo truque! Pustiakof, cheio de contentamento, põe-se a rir e reclina-se na cadeira. Já não tem razão para ocultar a condecoração: os dois pecaram e um não pode acusar o outro.

- "Ah!" - exclama o anfitrião, ao notar a condecoração no peito do francês.

- É interessante. Poucos foram condecorados em nossa escola - diz Pustiakof ao francês. Um pessoal tão numeroso, e somos nós dois os unicos agraciados.

Tramblin sauda-o alegremente com a mão e ergue-se em toda sua majestade, para que lhe vejam, de todos os lados, o peito ornado com a condecoração de Santana, de terceira categoria.

Depois do repasto, Pustiakof passeia por todos os aposentos, e com festiva imponencia exibe às senhoritas a condecoração. Enche-se de satisfação e alegria, apesar de ter vazio o estomago.

- Se eu soubesse - pensa olhando com inveja a Santana do francês, que conversa com o anfitrião sobre condecorações, - teria pedido a de São Valdomiro. Fui bobo!

Somente isso o aborrece um pouco. De resto, sente-se verdadeiramente feliz.

Para imprimir este texto clique o botão direito do seu mouse.
 

© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.