Sérgio Buarque de Holanda
Um
dos insistentes lemas de Mario de Andrade, em fase de critico
militante, foi o da necessidade de se reabilitar o esforço
artistico e mesmo artesanal contra a valorização
romantica do artista simplesmente irresponsavel. Haverá,
e com certeza já há, quem distinga nessa tardia
pregação um sinal de lucido retrocesso, um exemplo,
entre tantos outros, daquele cair em si, providencial e oportuno,
que oferece, com tanta frequencia, a vida dos rebelados e desvairados.
Não existiria, com efeito, nada de verdadeiramente insolito
em semelhante gesto. E nem, tão pouco, na atitude de certos
ermitões prematuros de hoje, que se agarram sofregamente
àquela sua derradeira mensagem.
Não é minha intenção, aqui, defender
Mario de Andrade contra Mario de Andrade, ou melhor, contra alguns
desses modernos interpretes. A defesa está feita, com suas
mesmas palavras, no ultimo capitulo do ultimo livro que publicou.
Referindo-se em "Aspectos da Literatura Brasileira"
à má compreensão que encontrara aquela predica
do critico, não esconde ele uma ponta de amargura. "Muito
poucos - dizia - perceberam a logica de quem, tendo combatido,
não pela ausencia, mas pela liberdade tecnica, num tempo
de estreito formalismo, agora combatia pela aquisição
de uma consciencia tecnica no artista, ou simplesmente de uma
consciencia profissional, num periodo de liberalismo artistico,
que nada mais está sendo do que cobertura da vadiagem ou
do apriorismo dos instintos."
Entre o artista aparentemente libertario e o propugnador de disciplinas
atentas não existe, neste caso, nenhum hiato sensivel.
Nem entre este e as principais personagens do movimento "modernista",
em qualquer das etapas em que, às vezes caprichosamente,
esse movimento vem sendo subdividido. Oposição haveria,
isto sim, entre eles e os eternos adeptos da "vadiagem ou
do apriorismo dos instintos", que, de fato, tanto vicejam
sob o regime do liberalismo - para usar do simile andradiano -
como tambem, e talvez com mais razão, sob a ditadura do
mais rigido formalismo.
Foi por isso, e muito de industria, que empreguei aquele "aparentemente"
ao falar no artista libertario. Porque nenhuma arte genuina, nenhuma
poesia, podem prevalecer sem certas sujeições estritas.
Quando alguns poetas de 22 foram levados a prestigiar o lema da
liberdade, pensavam na verdade em liberdade com relação
a certas formas e convenções que se tinham convertido
em capa de numerosos charlatanismos poeticos. E tambem em liberdade
para escolherem os caminhos ditados pela sua consciencia artistica
e profissional.
Mas a palavra presta-se a interpretações ambiguas
e bem pode transformar-se, por sua vez, em disfarce para outros
tantos charlatanismos. Eu poderia exemplificar este ponto lembrando
o que ocorreu, entre nós, no caso do verso tão impropriamente
chamado livre.
É contra a facilidade, não contra a liberdade bem
entendida, que se dirigiu a pregação de Mario de
Andrade, bem coerente, aliás, com toda a sua atividade
de poeta e de artista, desde os inicios da campanha modernista.
E é uma vantagem, sem duvida, para os chamados neo-modernistas
de hoje o poderem, através de sua obra, e especialmente
através da obra onde reuniu seus artigos de critica literaria,
prolongar e depurar as virtudes que tão singularmente caracterizaram
o movimento de 22. Um dos representantes mais lucidos desse neo-modernismo,
o sr. Pericles Eugenio da Silva Ramos assinou essa divida ao dizer,
no artigo inicial de um dos orgãos do movimento - a "Revista
Brasileira de Poesia" - que, se Mario foi, sob muitos aspectos,
a figura principal do modernismo, em sua obra, ao mesmo passo,
se encontram as bases do neo-modernismo, que se existe, deve-o
altamente à pregação de "Empalhador
de Passarinho".
A unica duvida sugerida por essa observação estaria
na dicotomia que parece estabelecer implicitamente entre a poetica
modernista - de Mario de Andrade e outros - e a predica já,
ou quase, neomodernista do critico do "Empalhador".
Não creio que a consciencia artistica e profissional que
este reclamava, cuidando, sem duvida, de alguns autores novos,
fosse distinta daquela que denuncia a obra dos seus principais
companheiros de geração. E que ele mesmo nunca deixou
de ressaltar em um Manuel Bandeira, por exemplo, inclusive no
Bandeira de "Libertinagem". Não foi o desprezo,
foi justamente o desvelo pela forma, pela sua forma pessoal, que
levou este poeta àquele "ritmo todo de angulos, incisivo,
em versos espetados, entradas bruscas, gestos quebrados, nenhuma
ondulação", nenhuma "cadencia oratoria",
nenhum "enfeite gostoso".
E não foi por desleixo e abandono, mas ao contrario, por
uma aturada meditação sobre os problemas formais,
que Bandeira chegou a uma poesia inteiramente despida da "euritmia"
convencional, esse pobre algodão de açucar que,
para alguns epigonos, ainda constitui a essencia de toda arte
poetica. E que chegou a uma poesia muitas vezes ametrica, sem
duvida, mas nem por isso necessariamente arritmica.
Mas Manuel Bandeira não precisaria desprezar a metrica
para revelar sua aversão ao "bom gosto" oficial
e canonico. Um estudioso atento dos problemas da poesia, o sr.
Onestaldo Pennafort, pôde notar, há quinze anos como
já os seus primeiros poemas publicados e que se reuniram
mais tarde em "Cinza das Horas", revelam em Bandeira
essa mesma e constante preocupação. Considere-se,
por exemplo, o fecho do poema "Desesperança",
pertencente àquele livro:
"Como é duro viver quando falta a esperança!"
"O que salva este verso da banalidade, dando-lhe até
uma certa beleza de realismo cru - observava o critico - são
o adjetivo duro e o verbo faltar. Quem não verá
imediatamente que um poeta vulgar, por passividade à mais
corriqueira das associações de idéias, escreveria
logo:
"Como é triste viver quando morre a esperança."
Verso, este ultimo, que não andaria mal em alguma antologia
de chaves de ao gosto dos parnasianos, no sentido que esta designação
adquiriu entre nós. Mas se existem associações
de palavras e de idéias, que parecem fabricadas sob medida
a fim de atenderem aos gostos convencionais e padronizados, não
sucederia o mesmo com determinados recursos ritmicos?
Foi talvez o que sentiu o poeta Manuel Bandeira quando, ao acolher
mais tarde entre suas poesias completas a peça que abrange
o verso assinalado pelo sr. Pennafort, não o fez antes
de uma refusão que agora visaria justamente a ferir o convencionalismo
do ritmo. Em sua forma definitiva, o verso ficou assim:
" - Ah, como dói viver quando falta a esperança!"
Aos que preguiçosamente se atém àquela especie
de convencionalismo parecerá inevitavel pensar que a antiga
versão, com seu movimento anapestico, embalador como um
compasso de valsa, sofreu lamentavel prejuizo depois da mudança.
Creio, no entanto, que, ao abandonar uma forma impessoal e já
amaciada pela usura, o poeta quis, em realidade, tornar mais flexivel
seu ritmo para corresponder à emoção que
se exprime no poema. E a este proposito não parece demasiado
dizer que ele se aproximou melhor, com a segunda versão,
daquele ideal da "forma significante" ou do "ritmo
semantico", que parece ser um traço caracteristico
dos autenticos poetas.
Em artigo posterior tentarei mostrar como o elemento que verdadeiramente
distingue o neo-modernismo, em suas tentativas mais conscientes,
em contraste com o chamado modernismo, não se acha, como
alguns o proclamam, na maior enfase dada à consciencia
artistica e mesmo ao labor artesanal, mas na prioridade que parece
atribuir o forma artistica sobre a forma significante. Em outras
palavras, nas palavras que popularizou um critico dos nossos dias
- Jean Paulhan - eles representam a ofensiva dos "retoricos"
em face dos "terroristas".