Sérgio Buarque de Holanda
Eu não me tinha proposto, nestas notas de vaga literatura,
voltar a temas estritamente literarios antes de encerrar uma serie
projetada, e já iniciada, sobre obras de erudição
pura. Mas o comentador de livros não é tão
senhor de si quanto o imagina algumas vezes, e por maior independencia
critica que se arrogue, a verdade é que anda acorrentado
de mil formas aos gostos e opiniões de seus contemporaneos.
São este gostos e essas tendencias, que hão de marcar
o compasso dos comentarios, e quando não cheguem a mudar
suas proprias idéias, servem para dar-lhes alguma imprevista
direção. De qualquer modo, e mesmo se timbra em contrariá-las,
a verdade é que obedece até certo ponto ao seu ditado.
Ao intercalar entre estes artigos alguns comentarios a proposito
de poetas e da poesia nova, faço-o movido um pouco por essa
contingencia. Nunca, talvez, se escreveu tanto verso entre nós
como hoje, e sobretudo nunca se discutiu tão ardentemente
sobre os misterios da poesia. Agora, mais do que nos dias do modernismo
da combate, constituem-se, à volta dela e dos seus problemas,
grupos de lutadores aguerridos e dispostos a defender seus principios
até às ultimas consquencias.
É aparentemente uma vantagem para esses grupos, se não
se podem definir de fato por alguma tendencia uniforme, comum a
todos ou por alguma formula definida e cabal. Desde já, entretanto
- e até quando? -, se pode dizer que um grande numero dos
que participam deles, procura definir seus pontos de vista por oposição
aos de gerações antecedentes. Palavras tais como "forma",
por exemplo, ou "disciplina", ou "tradição",
que entre essas gerações nem sempre desfrutaram de
excessivo prestigio, tendem a recuperar um novo e quase insolito
poderio.
São esses lemas, ou alguns deles, que parecem nortear, no
caso do sr. João Cabral de Melo Neto, entre outros, a vontade
de precisão e nitidez que o aproxima dos arautos da poesia
chamada "pura". Ou, no caso dos colaboradores da revista
"Orfeu", a procura agressiva e não raro atonita,
de um neoclassicismo carregado de alusões mitologicas, que
redunda em realidade numa especie de neorococó.
Mesmo entre agrupamentos mais heterogeneos e ecleticos do que este
ultimo, direi mesmo mais arejados e acessiveis a vozes de diferentes
quadrantes, como o que atualmente se congrega em torno da "Revista
Brasileira de Poesia", sente-se com significativa frequencia
a mesma forma caracteristica de reação contra os autores
que procederam imediatamente do movimento de 1922. Um dos representantes
mais ativos desse grupo, e dos principais responsaveis pela fundação,
em São Paulo, do "Clube de Poesia", o excelente
poeta Domingos Carvalho da Silva, definiu há poucos anos,
em seu livro "Rosa Extinta", a ambição que
vai empolgando tantos dos seus companheiros.
"Quero a poesia em sua essencia", dizia então.
E acrescentava:
"Pura ou impura eu reclamo a poesia do momento,
filtrada exata constante".
Este "eu reclamo", aquele "quero" já
insinuam, não uma arte poetica pessoal, deliberadamente caprichosa
e satisfeita com a propria expressão, mas a mesma certeza
voluntariosa, incapaz de inquietações e concessões,
que transparece constantemente de seus comentarios criticos. Pessoalmente,
devo dizer que prefiro muito às suas teorias esteticas a
sua pratica; quer dizer, o poeta, principalmente o poeta de "Praia
Oculta" (São Paulo, Editora Brasiliense Ltda., 1949),
ao doutrinador infatigavel. O primeiro nunca chega a provocar minha
sensibilidade literaria um tanto grosseira com aquelas finuras formais
ou com aqueles extases mitologicos que subitamente contaminaram
parte apreciavel da poesia nova entre nós.
Sem ser deslavadamente romantica, sua lira comporta, não
obstante, acentos de um cunho intimista que vedam naturalmente a
postura rigidamente formal. Por vezes deixa escapar alguma ressonancia
condoreira e até casimiriana, sem recorrer ao menos àquele
leve falsete ironico que tão frequentemente distingui certos
autores modernistas em casos semelhantes. A ironia não é
aliás o seu forte, como não é, na generalidade
dos casos, o dos nossos poetas novos, e pode-se verdadeiramente
dizer que aqui sua poesia se enlaça na sua pregação,
tão opostas, uma e outra, ao que ele chamou, certa vez, as
"flores do humorismo". Em face de sua obra, não
se faz necessario - ao contrario do que sucede com a nova poesia
anglo-saxonia, por exemplo, que paradoxalmente adquiriu singular
credito, entre alguns dos seus companheiros de campanha - uma ampla
revisão dos conceitos tradicionais do serio e do comico,
do poetico e do prosaico. Sua locução quer ser uniformemente
vazada em estilo nobre e austero.
O outro elemento, ao lado da ironia e das alusões "prosaicas"
que tambem serve para empanar emoções demasiado diretas,
tenues, ou à flor da pele, isto é o hermetismo generosamente
suscitado e cultivado, tambem se acha ausente da obra poetica do
sr. Carvalho da Silva. Nisto ele se separa não apenas de
alguns companheiros da sua famosa "geração de
45", mas ainda dos que aspiram a representar uma corrente ainda
mais moderna e por vezes oposta a ela. Num deles, no sr. Ciro Pimentel,
autor do livro "Poemas" (São Paulo, 1948), com
que se inaugurou a coleção dos "Cadernos do Clube
de Poesia", pode-se verificar como a obscuridade metodica visa
a dar complexidade maior àquela nostalgia de céus
remotos, às esperanças contrafeitas, ascensões
no vazio e no inutil, que fazem a substancia de sua inspiração
e que expostas muito cruamente poderiam desandar numa grandiloquencia
talvez de mau gosto. A mesma grandiloquencia que, momentaneamente
libertada, levará o poeta a exclamar em dada ocasião
(pg. 13):
"Há em mim um deus dançante
Que ansiando Infinito
Grita intenso no azul".
Se é certo, no entanto, que o sr. Carvalho da Silva, evita
voluntariamente ou não o recurso ao hermetismo facil, isto
não significa que só se utilize, e por sistema, da
expressão denotativa e reta. Admiti-lo seria desdenhar o
papel, sem duvida importante, que assume em sua poesia a linguagem
metaforica. Cabe apenas anotar que, aqui, essa linguagem tem menos
um carater funcional do que ornamental e exterior. E isto ocorre
inclusive - ou especialmente - quando se utilizam nela imagens na
aparencia atrevidas, como naquela evocação de um mundo
de sonhos e nostalgia, do seu "Cantico Maior".
"onde nuvens arrastam
o ventre pelas montanhas",
que pode lembrar a passagem tão frequentemente citada de
T. S. Eliot, onde se fala num nevoeiro a arrastar as costas pelas
vidraças:
"The yellow fog that rubs its
back upon the window-panes..."
Contudo é facil perceber como no poema de Eliot, a neblina,
assimilada pelo poeta a um gato que surgisse à tardinha esfregando
dorso e focinho nos vidros da janela, lambendo recantos do escurecer,
demorando-se nas pequenas peças formadas pela agua que escorre,
recebendo nas costas a fuligem das chaminés, insinuando-se
no terraço e, finalmente, saltando para ir dormir na noite
tranquila de outubro, depois de fazer pela ultima vez a volta à
casa, é uma realidade tornada mais presente, mais concreta,
mais tangível, realidade que não se separa de ambiente
que o autor procurou criar nesse canto de amor de J. Alfred Profrock.
No "Cantico Maior", ao contrario, a imagem tem valor subsidiario,
extrinseco, e não destoa, apesar das aparencias - com aquele
formoso simile das nuvens bojudas - de uma associação
de idéias perfeitamente convencional.
Neste ponto, e não apenas nele, é licito que o autor
de "Praia Oculta" não ousa distanciar-se demasiado
de um prudente meio-termo. Sua idéia da linguagem poetica,
assim como a noção, tão curiosamente estreita
e arbitraria, que forma do ritmo - noção exposta há
pouco em caderno especial que a "Revista Brasileira de Poesia"
imprimiu - representa, no fundo, um suave compromisso.
Mas se não valem por um inovação e nem sequer
- como o poderiam julgar alguns - por uma tentativa de recuperar
a essencia perene da poesia, essas idéias e noções
merecem consideração mais atenta. Em primeiro lugar,
porque são aparentemente partilhadas, no todo ou em parte
consideravel, por numerosos autores recentes. E tambem por que até
agora não impediram o poeta de "Praia Oculta" de
tornar-se um dos mais autenticos representantes da nova poesia brasileira.
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