Sérgio Buarque de Holanda
Em
artigo anterior tentei sugerir como as noções de "forma"
e de "conteudo" ou "substancia", que aparecem
com certa frequencia nos ultimos estudos historico-sociologos do
sr. Gilberto Freire, podem reduntar e redundam muitas vezes em uma
visão acentuadamente particularista de nosso passado e de
nosso presente.
Aquelas noções, provindas, em ultima analise, da filosofia
social de Simmel, retiram toda a sua força da propria indefinição.
É verdade que em Simmel elas não passam, ao menos
teoricamente, de simples metaforas. Na versão, porem, que
lhes dá o autor de "Sobrados e Mucambos" tende
a dissipar-se mesmo em teoria, esse nominalismo deliberado. De instrumentos
de exposição, distinção, confronto,
analise, convertem-se em realidades mais ou menos empiricas, servindo
de base a julgamentos de valor que mal se disfarçam.
Assim é que, nos seus escritos, as "formas" sociais
se mudam com facilidade, ora em entidades reais, à maneira
dos organismos biologicos - e então se confundem praticamente
com os "processos" sociais, capazes de crescimento, maturação
e morte -, ora em "idéias" de nitido sabor hegeliano
- idéias de onde hão de emanar misteriosamente os
proprios "objetos materiais".
Neste ultimo sentido ocorrem pelo menos uma vez: quando, em revide
a uma critica do sr. Afonso Arinos de Melo Franco, o autor escreve,
à pagina 817: "em nossos estudos, acentuando a importancia,
dos objetos materiais, simbolos, insignias, mitos, não o
fazemos por materialismo ou por desprezo aos valores invisivel ou
requintadamente intelectuais e espirituais, mas por considerar os
chamados objetos materiais - inclusive moveis, trajos, alimentos
- reflexos das chamadas realidades imateriais, nunca ausentes dos
mesmos objetos".
É possivel dizer que aquelas formas soberanas e imateriais
se realizam de certo modo, em nosso mundo efemero - e neste ponto
é que se inserem os juizos de valor - através de processos
que conduzem à maturidade, à plenitude, e, em certo
sentido, à perfeição: "amadurecendo numas
areas mais cedo do que noutras, declinando no Norte ou no Nordeste,
antes por motivos ecologicos que pura ou principalmente economicos
-, quando apenas se arredondava por iguais motivos, em formas adultas
no Brasil meridional" (pag. 41).
É bastante significativo que, apesar do seu insistente empenho
de emancipar a "forma" social da "substancia"
ou do "conteudo", o sr. Gilberto Freire raramente consegue
desunir estes elementos quando se trate de distinguir, entre esta
e aquela area de povoamento e ocupação do solo, as
que lhe parecem expressões mais adultas ou completas. E,
embora professando, em certos casos, dar escasso valor sociologico
aos "objetos materiais" ou às tecnicas peculiares
a cada região distinta, não há duvida que,
em outros, chega a introduzir, entre os proprios objetos, uma especie
de escala hierarquica, manifesta na medida em que eles parecem acomodar-se
melhor à "forma" ideal e soberana.
Assim, por exemplo, a "grande casa estavel de pedra e cal",
propria sobretudo dos engenhos de açucar do Nordeste, e tambem
os sobrados de residencia construidos "mais nobremente"
(pag 404) da mesma pedra ou então de tijolos e cal de mariscos,
comparam-se com grande vantagem, em muitas das suas paginas, às
antigas casas de São Paulo, feitas "quase todas de taipa".
Como explicar então, que justamente em São Paulo,
a area das casas de taipa correspondesse, na era colonial, às
terras mais prosperas - mais nobres? - de serra acima, em contraste
com as da orla maritima, onde domina decididamente a construção
feita, como nos engenhos do Norte, de pedra das pedreiras e cal
das ostreiras litoraneas?
Alem da presença de certos fatores materiais de algum modo
privilegiados, é certo que entre os distintivos da maturidade
social parecem inscrever-se, para ele, motivos "imateriais"
nada irrelevantes. Assim, se a casa grande corpulenta e solida tem
direito a melhor tratamento é que lhe parecem espelhar admiravelmente
certas virtudes senhoriais, estabilizadoras e conservadoras, favoraveis
talvez ao maior requinte ou à maior cultura do espirito.
Virtudes que ele tem na mais alta conta, assim como haverá
quem prefira, em contraposição, outras, não
menos senhoriais, posto que mais dinamicas e ativas.
E neste ponto interfere, ainda uma vez, a preeminencia atribuida
aqui à "forma social", independente de fatores
economicos ou de outra natureza e sobreposta a eles. A sociedade
constituida em volta da grande propriedade monocultora e escravocrata
se teria revelado apesar das suas flagrantes falhas a mais criadora,
entre todas as do Brasil, de valores politicos, esteticos e intelectuais.
É o que está dito nas palavras finais de seu livro
"Nordeste". No mesmo livro, à pagina 288, afiança-se
ainda: "Mas foi justamente essa civilização nordestina
do açucar - talvez a mais patologica, socialmente falando,
de quantas floresceram no Brasil - que enriqueceu de elementos mais
caracteristicos a cultura brasileira". E não custa ao
autor levantar os olhos, em dado momento, dos canaviais do Nordeste
patriarcal para os olivais de certa terra classica do meio-dia da
Europa. Pois tambem a civilização helenica, escreve
ele, "foi uma civilização morbida segundo os
padrões de saude social em vigor entre os modernos. Civilização
escravocrata. Civilização pagã. Civilização
monossexual. E entretanto estranhamente criadora de valores, pelo
menos politicos, intelectuais e esteticos. Muito mais criadora desses
valores do que as civilizações mais saudaveis que
ainda se utilizam da cultura grega".
Palavras estas, que extraidas, embora, de um livro confessadamente
impressionista, ajudam, por isso mesmo, a desvelar o que vai, nas
suas interpretações, de intenso calor afetivo, de
amoroso e nostalgico enlevo pelo passado de sua região natal
e ancestral, envolvendo, não raro, as noções
puramente teoricas que parecem querer introduzir-se em obras declaradamente
mais sobrias. Entre essas noções, tentei destacar,
nestes artigos, a de uma forma social separavel de quaisquer elementos
materiais, isto é, de todo "conteudo" ou "substancia",
para usar suas mesmas palavras.
Não importa discutir aqui se os valores politicos, intelectuais,
esteticos representados a seu modo - "criados" diria o
sr. Gilberto Freire - pela "civilização do açucar"
terão sido os mais significativos ou os mais insignes entre
nós, comparados aos que se encarnavam em outras "civilizações"
regionais brasileiras, conforme pretende o sociologo pernambucano.
Seria entrar no terreno movediço das preferencias, dos interesses,
dos sentimentos pessoais. Dizer que por simples ato de presença
e independente de condições materiais a que se acha
inextricavelmente ligado, o patriarcalismo nordestino pôde
suscitar aqueles valores, é apegar-se a concepções
um tanto misticas, que em todo caso desafiam um escrutinio plausivel.
Não é preciso certamente uma adesão às
formas mais crassas do materialismo historico para admitir-se que
a pujança economica pode favorecer certos recursos materiais
e certos habitos de ociosidade em nada desfavoraveis ao tipo de
cultura intelectual e trato politico tão enaltecidos pelo
autor. Assim ocorreu, sem duvida, no Nordeste açucareiro,
como ocorreu em outras areas do Brasil colonial e imperial favorecidas
pela fortuna. Quem percorra a lista de estudantes brasileiros formados
em Coimbra verificará, sem esforço, até que
ponto isto é verdadeiro. O fato de Minas Gerais, na idade
do ouro e dos diamantes, ter fornecido um numero maior de estudantes
do que o de todas as demais capitanias brasileiras (mesmo nos três
ultimos decenios do seculo XVIII esse numero é de 132, para
120 do Rio de Janeiro, 108 da Bahia, 68 de Pernambuco e 30 de São
Paulo) não pode ser indiferente a quem deseje estudar movimentos
tais como o da Escola Mineira ou o da Inconfidencia. A rapida e
efemera ascensão economica do Maranhão coincidirá,
por sua vez, com um aumento notavel no numero de estudantes daquela
capitania e provincia nortista, que chegará a ultrapassar
largamente, no meio seculo imediato, os proprios totais de Minas
e os de Pernambuco. E não foi certamente por um milagre que
tivemos a famosa "Atenas brasileira". Nem foi por acaso
que a Bahia, beneficiada nesse periodo, e ainda em maior grau, pelas
mesmas condições economicas favoraveis, se tornaria
grande forja de estadistas do Imperio.
As explicações que não têm em conta semelhantes
fatores levam a pensar um pouco nas de monsenhor Pizarro, se não
estou esquecido, quando escreveu do açucar que serve, não
só para temperar os manjares como os costumes, fazendo aqueles
mais doces e estes mais corteses e politicos. É muito provavel
que sem uma especie de visão lirica, responsavel, em parte,
por esse tipo de explicações, e admiravel esforço
de compreensão e elucidação de nosso passado,
empreendido pelo sr. Gilberto Freire teria sido menos eficaz em
outros aspectos. Ela constituiu, por assim dizer, e para empregar
uma das suas comparações, o lado patologico, inevitavel,
talvez, em uma obra realmente criadora, e que deveria abrir novos
rumos para a boa inteligencia da vida brasileira.
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