Sérgio Buarque de Holanda
Já
às primeiras paginas da introdução que escreveu
para o texto refundido e ampliado de "Sobrados e Mucambos",
o sr. Gilberto Freyre volta a um tema que desde 1933, pelo menos,
vem acompanhando de perto seus estudos historicos e sociais: o da
unidade da formação do Brasil em torno do regime da
economia patriarcal. Essa unidade sobrepujaria todas as diferenças
e os aparentes contrastes locais para submetê-los a um mesmo
denominador comum.
De modo que, ao fixar o sistema patriarcal da colonização
portuguesa, partindo das areas em que terá alcançado
uma das suas expressões extremas e melhor definidas - as
areas onde veio a imperar a monocultura latifundiaria amparada no
braço escravo - ele pretende que suas interpretações
sejam perfeitamente validas para o Brasil inteiro. E busca explicar
as objeções opostas por aqueles que não logram
distinguir o carater transregional de suas pesquisas, sugerindo
que tais criticos se orientam obstinadamente para o conteudo e a
substancia, não para a forma sociologica dos acontecimentos
e dos fatos.
É esta forma o que serve, em suma, para conciliar entre si
as mais asperas contradições, emprestando ao todo
uma harmonia e mesmo uma "unicidade" (pag. 42) verdadeiramente
soberanas. Nos seus livros é provavel que ela apareça
muito manchada de massapé negro, muito lambuzada de mel de
tanque para não transviar às vezes algum espirito
desprevenido, mas tudo isso é de pouca monta quando se trata
de dintinguir o essencial através das aparencias mais ou
menos precarias.
Entretanto, esse principio formal, de significação
tão decisiva, não se deixa claramente precisar para
quem estude os multiplos escritos de um autor tão vivamente
empolgado, ele proprio, pelos elementos materiais da existência
e do convivio humanos. Ou seja - no seu proprio vocabulario - pelo
"conteudo" ou "substancia" dos acontecimentos
e dos fatos. Reduzindo à expressão mais simples e
mais generica o verdadeiro principio organizador estaria em determinado
tipo de organização patriarcal da vida e da familia:
traço comum, em sua fase de desenvolvimento, a todas as manifestações
regionais particulares. E é a esse único traço
- "forma" independente dos "conteudos"? - que
invariavelmente se reporta o sr. Gilberto Freyre quando algum critico
tenta negar o carater transregional das suas interpretações,
lembrando a ausencia, como força social e economica dominante,
nesta ou naquela região brasileira com "passado historico"
de alguns elementos à primeira vista inseparaveis do painel
que ele nos pinta: ausencia, por exemplo, da casa grande (no sentido
estritamente "material" da expressão); ausencia
da senzala ou sequer do braço escravo; ausencia da propria
lavoura, substituida pela mineração ou (no extremo
norte) pela coleta florestal; ausencia da grande propriedade; ausencia
da monocultura...
Neste ponto cabe, porem, uma pergunta: seria o patriarcalismo, tal
como o descreve o sr. Gilberto Freyre, uma criação
originaria e especifica das areas de colonização sobretudo
lusitana nesta parte da America, criação surgida de
preferencia à sombra da casa grande, e capaz, só por
si, de difesençar nitidamente as nossas condições
coloniais das metropolitanas na mesma epoca?
A verdade é que muitos dos traços mais caracteristicos
desse patriarcalismo, no seu apogeu e no seu declinio, entre nós,
mal se poderiam destacar dos modelos europeus e barrocos que se
prolongam até estas bandas do oceano. Guardadas as proporções
devidas, o senhor de engenho ou o antepassado do "coronel"
do sertão, ao menos nos seculos XVII e XVIII, não
se distinguiriam muito, social ou psicologicamente, dos nobres e
fidalgos do Reino. Isso mesmo dissera-o Antonio, e quase com identicas
palavras. Nem as nossas casas grandes diferiam, salvo, talvez, nas
maiores dimensões - que em todo o caso não chegam
a afetar sua estrutura e sua tecnica de construção
- dos sobrados ou casas nobres da peninsula.
É bem certo que em nossos canaviais e em nossas vilas e cidades
labutavam negros e cativos, muito mais do que nos campos e cidades
de Portugal. Mas para o proprio autor, esses pormenores de "conteudo",
não de essencia ou "forma", são irrelevantes
"do ponto de vista sociologico". "Da denominação
ou mesmo da condição especifica do escravo, em oposição
ao senhor", escreve à pagina 66, "seria um erro
fazer condição indispensavel à existencia de
um sistema sociologicamente patriarcal-feudal, isto é em
suas formas e seus processos principais de relações
entre dominadores e dominados: a dominação, a subordinação,
acomodação. O sistema pode existir ou funcionar sob
aparencias mais suaves: simples coronel ou major, o senhor; "morador",
o servo. É o que parece ter sucedido em grande parte do Piauí,
do Ceará, da area do São Francisco e do Rio Grande
Sul..." E poderia ajuntar, sem receio, em parte da Europa,
da peninsula iberica principalmente.
Se os padres da Companhia puderam, no Brasil, contribuir para a
precocidade dos meninos - a "vergonha de ser menino" -
não foi, ou não foi apenas por quererem, fiéis
à missão antipatriarcal que lhes atribui o sr. Gilberto
Freire num dos seus mais admiraveis capítulos, hostilizar
os senhores todo-poderosos, "fazer frente ao caciquismo das
tabas e ao patriarcalismo dos velhos das casas-grandes" (pag.
219), mas simplesmente porque obedeciam nisto, e não só
nisto, a um puro ideal europeu e classico, no caso o da criança
precocemente amadurecida e sensata: o puer senex.
Ideal provindo da antiguidade romana, haveria de permanecer bem
vivo, não só no Brasil, mas ainda em Portugal e Espanha,
e não só no mundo iberico, mas na propria França
seiscentista e setecentista e no resto da Europa, ao menos da Europa
catolica. Em seu belo livro sobre La Fontaine pôde escrever
efetivamente Vossier que a criança francesa daqueles tempos
não era tratada como criança, mas como uma especie
de gente grande em miniatura. Ou então como um bicho pequeno.
Adulto em potencia ou filho aterrado. Foi o suisso Rousseau, vindo
de uma terra calvinistas, quem primeiro revelou aos franceses a
criancice da criança, nota ainda o mesmo romanista. E, depois
de invocar os retratos infantis de Velasquez e outros pintores,
não deixa de lembrar ainda que não havia então
trajos especiais para meninos ou meninas (Cf. K. Vossler, "La
Fontaine und sein Fabelwerk", Heldelberg, 1919, pag. 2). Tambem
no patriarcalismo brasileiro nota o sr. Gilberto Freire "uma
tendencia para o traje se uniformizar no do adulto respeitavel -
onde os meninos de roupa de homem, cartola e bengala que Rendu achou
parecidos com as marionetes das feiras francesas - e as meninas
vestidas desde cedo como senhoras...." (pag. 246). Assim, o
que para um francês do seculo XIX já pertencia a um
passado morto, ainda sobrevivia entre nós e ganhava sabor
exotico. Mas não era certamente fruto especifico de nossa
civilização patriarcal.
A forma da sociedade brasileira, se tivermos de aceitar noção
tão violentamente realista, como essa que nos propõe
agora o sr. Gilberto Freire - realista menos no sentido da sociedade
atual do que da teologia medieval - não foi suscitada na
area da cana de açucar, ou em outra região brasileira
particular; mais plausivel é acreditar que veio acabada de
Velho Mundo, adaptando-se aqui, mal ou bem, às circunstancias
geograficas, etnicas, economicas, proprias às diferentes
areas, e assumindo, em cada uma, feição diversa. O
alfa da constelação de regiões tão claramente
diferenciadas entre si, que se formaram nesta America portuguesa,
estaria, pois, na Europa lusitana e iberica, não no mundo
da casa grande e senzala ou em alguma outra area regional da colonia.
É claro que qualquer pronunciamento decisivo, neste ponto,
há de colorir-se fortemente de noções subjetivas
e amparar-se, em ultima analise, sobre simples preferencias pessoais.
Não creio, porem, que para a inteligencia de nosso passado
e de nosso presente, seja forçoso admitir um principio formal
tão elastico, proprio para lisonjear esta ou aquela vaidade
regional, servindo a sentimentos, ressentimentos, paixões,
preconceitos, conveniencias às vezes momentaneas e quase
sempre polemicas. À obra do sr. Gilberto Freire ela nada
acrescenta de duradouro. Nem serve certamente, aos seus adversarios,
quando se apóiam no mesmo criterio, embora movidos por sentimentos
regionais diversos dos seus.
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