SOCIEDADE PATRIARCAL - 2ª parte

Publicado na Folha da Manhã, terça-feira, 13 de novembro de 1951

Sérgio Buarque de Holanda

Já às primeiras paginas da introdução que escreveu para o texto refundido e ampliado de "Sobrados e Mucambos", o sr. Gilberto Freyre volta a um tema que desde 1933, pelo menos, vem acompanhando de perto seus estudos historicos e sociais: o da unidade da formação do Brasil em torno do regime da economia patriarcal. Essa unidade sobrepujaria todas as diferenças e os aparentes contrastes locais para submetê-los a um mesmo denominador comum.
De modo que, ao fixar o sistema patriarcal da colonização portuguesa, partindo das areas em que terá alcançado uma das suas expressões extremas e melhor definidas - as areas onde veio a imperar a monocultura latifundiaria amparada no braço escravo - ele pretende que suas interpretações sejam perfeitamente validas para o Brasil inteiro. E busca explicar as objeções opostas por aqueles que não logram distinguir o carater transregional de suas pesquisas, sugerindo que tais criticos se orientam obstinadamente para o conteudo e a substancia, não para a forma sociologica dos acontecimentos e dos fatos.
É esta forma o que serve, em suma, para conciliar entre si as mais asperas contradições, emprestando ao todo uma harmonia e mesmo uma "unicidade" (pag. 42) verdadeiramente soberanas. Nos seus livros é provavel que ela apareça muito manchada de massapé negro, muito lambuzada de mel de tanque para não transviar às vezes algum espirito desprevenido, mas tudo isso é de pouca monta quando se trata de dintinguir o essencial através das aparencias mais ou menos precarias.
Entretanto, esse principio formal, de significação tão decisiva, não se deixa claramente precisar para quem estude os multiplos escritos de um autor tão vivamente empolgado, ele proprio, pelos elementos materiais da existência e do convivio humanos. Ou seja - no seu proprio vocabulario - pelo "conteudo" ou "substancia" dos acontecimentos e dos fatos. Reduzindo à expressão mais simples e mais generica o verdadeiro principio organizador estaria em determinado tipo de organização patriarcal da vida e da familia: traço comum, em sua fase de desenvolvimento, a todas as manifestações regionais particulares. E é a esse único traço - "forma" independente dos "conteudos"? - que invariavelmente se reporta o sr. Gilberto Freyre quando algum critico tenta negar o carater transregional das suas interpretações, lembrando a ausencia, como força social e economica dominante, nesta ou naquela região brasileira com "passado historico" de alguns elementos à primeira vista inseparaveis do painel que ele nos pinta: ausencia, por exemplo, da casa grande (no sentido estritamente "material" da expressão); ausencia da senzala ou sequer do braço escravo; ausencia da propria lavoura, substituida pela mineração ou (no extremo norte) pela coleta florestal; ausencia da grande propriedade; ausencia da monocultura...
Neste ponto cabe, porem, uma pergunta: seria o patriarcalismo, tal como o descreve o sr. Gilberto Freyre, uma criação originaria e especifica das areas de colonização sobretudo lusitana nesta parte da America, criação surgida de preferencia à sombra da casa grande, e capaz, só por si, de difesençar nitidamente as nossas condições coloniais das metropolitanas na mesma epoca?
A verdade é que muitos dos traços mais caracteristicos desse patriarcalismo, no seu apogeu e no seu declinio, entre nós, mal se poderiam destacar dos modelos europeus e barrocos que se prolongam até estas bandas do oceano. Guardadas as proporções devidas, o senhor de engenho ou o antepassado do "coronel" do sertão, ao menos nos seculos XVII e XVIII, não se distinguiriam muito, social ou psicologicamente, dos nobres e fidalgos do Reino. Isso mesmo dissera-o Antonio, e quase com identicas palavras. Nem as nossas casas grandes diferiam, salvo, talvez, nas maiores dimensões - que em todo o caso não chegam a afetar sua estrutura e sua tecnica de construção - dos sobrados ou casas nobres da peninsula.
É bem certo que em nossos canaviais e em nossas vilas e cidades labutavam negros e cativos, muito mais do que nos campos e cidades de Portugal. Mas para o proprio autor, esses pormenores de "conteudo", não de essencia ou "forma", são irrelevantes "do ponto de vista sociologico". "Da denominação ou mesmo da condição especifica do escravo, em oposição ao senhor", escreve à pagina 66, "seria um erro fazer condição indispensavel à existencia de um sistema sociologicamente patriarcal-feudal, isto é em suas formas e seus processos principais de relações entre dominadores e dominados: a dominação, a subordinação, acomodação. O sistema pode existir ou funcionar sob aparencias mais suaves: simples coronel ou major, o senhor; "morador", o servo. É o que parece ter sucedido em grande parte do Piauí, do Ceará, da area do São Francisco e do Rio Grande Sul..." E poderia ajuntar, sem receio, em parte da Europa, da peninsula iberica principalmente.
Se os padres da Companhia puderam, no Brasil, contribuir para a precocidade dos meninos - a "vergonha de ser menino" - não foi, ou não foi apenas por quererem, fiéis à missão antipatriarcal que lhes atribui o sr. Gilberto Freire num dos seus mais admiraveis capítulos, hostilizar os senhores todo-poderosos, "fazer frente ao caciquismo das tabas e ao patriarcalismo dos velhos das casas-grandes" (pag. 219), mas simplesmente porque obedeciam nisto, e não só nisto, a um puro ideal europeu e classico, no caso o da criança precocemente amadurecida e sensata: o puer senex.
Ideal provindo da antiguidade romana, haveria de permanecer bem vivo, não só no Brasil, mas ainda em Portugal e Espanha, e não só no mundo iberico, mas na propria França seiscentista e setecentista e no resto da Europa, ao menos da Europa catolica. Em seu belo livro sobre La Fontaine pôde escrever efetivamente Vossier que a criança francesa daqueles tempos não era tratada como criança, mas como uma especie de gente grande em miniatura. Ou então como um bicho pequeno. Adulto em potencia ou filho aterrado. Foi o suisso Rousseau, vindo de uma terra calvinistas, quem primeiro revelou aos franceses a criancice da criança, nota ainda o mesmo romanista. E, depois de invocar os retratos infantis de Velasquez e outros pintores, não deixa de lembrar ainda que não havia então trajos especiais para meninos ou meninas (Cf. K. Vossler, "La Fontaine und sein Fabelwerk", Heldelberg, 1919, pag. 2). Tambem no patriarcalismo brasileiro nota o sr. Gilberto Freire "uma tendencia para o traje se uniformizar no do adulto respeitavel - onde os meninos de roupa de homem, cartola e bengala que Rendu achou parecidos com as marionetes das feiras francesas - e as meninas vestidas desde cedo como senhoras...." (pag. 246). Assim, o que para um francês do seculo XIX já pertencia a um passado morto, ainda sobrevivia entre nós e ganhava sabor exotico. Mas não era certamente fruto especifico de nossa civilização patriarcal.
A forma da sociedade brasileira, se tivermos de aceitar noção tão violentamente realista, como essa que nos propõe agora o sr. Gilberto Freire - realista menos no sentido da sociedade atual do que da teologia medieval - não foi suscitada na area da cana de açucar, ou em outra região brasileira particular; mais plausivel é acreditar que veio acabada de Velho Mundo, adaptando-se aqui, mal ou bem, às circunstancias geograficas, etnicas, economicas, proprias às diferentes areas, e assumindo, em cada uma, feição diversa. O alfa da constelação de regiões tão claramente diferenciadas entre si, que se formaram nesta America portuguesa, estaria, pois, na Europa lusitana e iberica, não no mundo da casa grande e senzala ou em alguma outra area regional da colonia.
É claro que qualquer pronunciamento decisivo, neste ponto, há de colorir-se fortemente de noções subjetivas e amparar-se, em ultima analise, sobre simples preferencias pessoais. Não creio, porem, que para a inteligencia de nosso passado e de nosso presente, seja forçoso admitir um principio formal tão elastico, proprio para lisonjear esta ou aquela vaidade regional, servindo a sentimentos, ressentimentos, paixões, preconceitos, conveniencias às vezes momentaneas e quase sempre polemicas. À obra do sr. Gilberto Freire ela nada acrescenta de duradouro. Nem serve certamente, aos seus adversarios, quando se apóiam no mesmo criterio, embora movidos por sentimentos regionais diversos dos seus.

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