Sérgio Buarque de Holanda
A
publicação, em texto refundido, e consideravelmente
ampliado, de "Sobrados e Mucambos" do sr. Gilberto Freyre
(2.a edição, 3 volumes, 1.188 pags., Livraria José
Olympio Editora, Rio de Janeiro e São Paulo, 1951) pode fornecer
uma perspectiva habil para os que desejam interpretar todo o alcance
da contribuição do escritor pernambucano para o melhor
conhecimento da sociedade brasileira.
Com os volumes impressos, esse trabalho verdadeiramente monumental
já adquire unidade organica bem definida. Em "Casa Grande
e Senzala", primeira parte da serie, estudaram-se o nascimento,
formação e definição da sociedade brasileira
sob os auspicios da economia patriarcal. Aos cinco volumes até
aqui publicados da obra integral, deverá seguir-se um sexto,
há muito anunciado com o titulo de "Ordem e Progresso",
que abordará o "processo de desintegração
das sociedades patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regime
do trabalho livre". O ciclo organico (nascimento, crescimento,
maturidade, declinio, morte da sociedade patriarcal) há de
completar-se - descontados, naturalmente, alguns volumes subsidiarios
- com uma ultima parte já projetada, que se chamará,
de modo expressivo, "Jazigos e Covas Raras".
É possivel que para conhecer a palavra final deste livro
seja necessario aguardar ainda a parte final. Como no grande romance
de Proust, que o sr. Gilberto Freyre gosta de invocar quando se
trata de defender sua obra contra os censores mais impacientes,
o ultimo volume daria a chave de toda a construção.
Construção naturalmente bem composta e segundo uma
ordem velada, mas tão inflexivel em realidade como a ordem
que rege os processos biologicos. Destas altitudes podemos rever
o curso do caminho trilhado, e já distinguimos na vertente
contraria o que ainda falta percorrer.
E a tarefa de quem se proponha, diante de obra tão ambiciosa,
ir alem de um simples comentario à margem, como o presente,
será grandemente facilitada com a leitura de "Nordeste",
publicado quase ao mesmo tempo, em Segunda edição
aumentada (Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro
e São Paulo, 1951), e que visa ser uma especie de ensaio
complementar do trabalho amplo que se iniciou com a publicação
de "Casa Grande e Senzala". Ensaio, esse, mais deliberadamente
impressionista do que os demais, e que chegou a requerer do autor,
segundo sua mesma confissão, um trato prolongado e meio franciscano
com a paisagem, a natureza e a gente mais tipica de sua região
natal.
Graças, principalmente, àquela estrutura organica,
pôde ele dominar, enfim, dando-lhe forma, sentido e valor,
um material imenso e muitas vezes incompativel com toda abordagem
fundada nos recursos das ciencias da natureza. Semelhante abordagem
exigiria, sem duvida, um interesse mais detido pelos condicionamentos
ou nexos causais, que relacionam entre si os aspectos frequentemente
contraditorios da realidade historica, do que por esses mesmos aspectos,
apresentados em cores cruas e sugestivas. O processo, sobretudo
cumulativo, do autor, não deixa de realçar o traços
que, ferindo fundo a imaginação, parecem animar os
acontecimentos de uma vida propria, incapaz de refletir-se em escritos
onde prevaleça um rigoroso raciocinio discursivo.
A força de sugestão que cabe nesse processo pode-se
dizer que é a de um poeta, de um desses poetas da estirpe
whitmaniana, que ele se acostumara a admirar durante seus anos de
aprendizagem na America do Norte, não a de um cientista ocupado
em medir, relacionar e confrontar os fatos. Ele proprio admite,
e defende-a, a presença, aqui, dessa visão poetica
endereçada a certas intimidades mais esquivas das coisas
do passado, inacessiveis, em geral, ao estudo simplesmente historico
ou sociologico; "algumas delas - escreve - só se abrem
ao conhecimento ou ao estudo psicologico; varias só ao conhecimento
poetico, vizinho do cientificamente psicologico".
A atenção presa aos fatos concretos, mais do que a
abstrações e idéias, e empenhada em apreender
esses fatos em seus desvãos mais secretos só se torna
verdadeiramente eficaz, entretanto, quando movida por um intenso
calor afetivo. A sua é uma "visão proxima",
amorosa inclusive na repulsa; por isso naturalmente parcial e exclusivista.
Seu zelo tantas vezes manifesto em favor da preservação
dos estilos e valores regionais em todo o Brasil acha-se em função
de um zelo fervoroso - em alguns casos, quase se poderia dizer nostalgico
- por certos valores e estilos tradicionais da area dominada, no
passado, pela monocultura latifundiaria e em primeiro lugar pela
lavoura canavieira, fundada no braço escravo.
Nessas condições chega a admitir, e admite, mesmo,
sem reservas, que outras regiões do Brasil tiveram formação
até certo ponto dessemelhante; que a presença, ora
do latifundio rural e da monocultura, ora do escravo negro não
tenha marcado nelas tão decisivamente o passado rural e até
o presente; enfim, que o simile mais apropriado para figurar nosso
desenvolvimento historico seria o de um arquipelago ou o de uma
constelação, não o de um continente compactamente
unitario. Sim, mas desde que a forma assumida pela familia de tipo
patriarcal, nas regiões onde predominou a monocultura latifundiaria
e o trabalho escravo, represente verdadeiramente o alfa dessa constelação.
Este ponto merece exame, porque parece formar o principal dos obstaculos
opostos até agora a uma aceitação mais generalizada
da perspectiva adotada pelo sr. Gilberto Freyre em sua obra historico-sociologica
e dos criterios dependentes dessa perspectiva. Criterios e perspectivas
que serviriam, sem duvida admiravelmente, se aplicados a uma parte
do nordeste brasileiro e de certo modo às outras areas onde
imperou quase sem contraste, entre nós, a grande lavoura
açucareira, mas que se revelariam menos aptos para o estudo
das demais regiões do pais.
No proprio Nordeste elas mal se prestariam, por exemplo, para as
zonas onde a lavoura e mesmo o braço escravo não tiveram
papel mais saliente. Ou no planalto paulista, onde, durante a maior
parte do periodo colonial, pôde prevalecer, em grande escala,
uma forma particular de policultura. Ou ainda no extremo norte,
se praticaram largamente a industria extrativa e a coleta florestal.
Ou nas terras mineiras e sobretudo nos campos sulinos onde parecem
francamente inexistentes muitos dos traços que o autor pernambucano
parece prender de modo indelevel ao seu retrato de nossa civilização
de raizes patriarcais e escravocratas.
Até onde serão explicaveis e mesmo justificaveis muitas
dessas resistencias? Que o assunto parece ao proprio autor, de importancia
singular, mostra-o a insistencia com que volta a ele, muitas vezes
em tom defensivo e polemico, nas suas ultimas publicações,
em particular nesta nova edição de "Sobrados
e Mucambos". Aos leitores, por outro lado, e aos criticos,
o exame da mesma questão pode fornecer acesso para a melhor
inteligencia dessa obra, de sua alta significação
e de seu verdadeiro alcance.
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