AINDA A LABAREDA

Publicado na Folha da Manhã, quinta-feira, 06 de setembro de 1951

Sérgio Buarque de Holanda

Uma vez fixados, com todas as ressalvas necessárias, alguns dos motivos dominantes na nova poesia brasileira, tal como se apresenta no Panorama organizado pelo sr. Fernando Ferreira de Loandra, ocorre pensar que só algumas aparências superficiais, e um pouco a consciência, generalizada entre esses autores, de que inauguram um movimento realmente novo em nossa literatura explicam a obstinação com que vemos neles uma especie de bloco unitário e homogêneo. Tudo faz ver, porem, que aqueles motivos - em particular a exigência de decoro poético e a do rigor formal - significariam, de fato, menos uma diretriz definida do que um toque de reunir.
As associações que muitas vezes somos levados a fazer para melhor delimitar as tendências comuns revelam-se então meras simplificações didáticas. No sr. João Cabral de Melo Neto, o formalismo alcança uma expressão de rigor ascetico sem precedentes talvez em toda a literatura de língua portuguesa. Desse arquiteto não é excessivo dizer que nos deu o verdadeiro equivalente poético das modernas "maquinas de morar". Tanto quanto os produtos de uma arte funcional, sua obra não se deixa facilmente medir segundo padrões unicamente artísticos.
E o que haverá de comum entre sua poesia voluntariamente esquelética, verdadeira prosopopéia às avessas, e a de outro "formalista", do sr. Péricles Eugenio da Silva Ramos, que se compraz, ao contrario, nas carnações coloridas e bem torneadas? Aqui o artista representa o oposto do matemático sempre atento à fria observação. Tambem não é apenas um contemplador, mas ainda um sócio da natureza: por isso se ocupa em enriquecer de finos lavores as coisas visíveis. Seu verso é espelho de seu mundo.
No sr. José Paulo Moreira de Fonseca, ao contrario, o senso plástico procura captar em sua própria naturalidade o capricho do espetáculo natural. A economia de meios não provem de uma pura operação artística, mas quer reproduzir aquele espetáculo em sua evanescencia. A sobriedade característica do poeta é, de fato, uma imposição do tema constante.
Como reduzir a um mesmo denominador expressões tão contrastantes? E se optássemos pelo rotulo, só aparentemente apropriado, de "formalismo", não seria mister redefinilo em face de cada uma delas (de modo que, procurando valer para os casos singulares, ele se esvaziasse ao cabo de toda significação)?
Poesia "posterior à palavra": a formula de Alfonso Reys será talvez justificavel. Contudo, uma reflexão mais acurada autoriza as maiores duvidas. Mesmo nas experiências do sr. João Cabral de Melo Neto, que a primeira vista parecem sugerir um domínio triunfal sobre os meios de expressão, o acaso não é totalmente abolido. No Cão Sem Plumas, especialmente, as forças indomitas da memória, do sono, do subconsciente, ainda desafiam mais do que nunca a atenta vigília do poeta. O verbo lúcido traduz uma vontade sempre afiada pela e para a luta; o contrario da paz garantida e desfrutada depois da guerra.
E se passarmos a outro autor, tão freqüentemente associado aos formalistas, maiores serão ainda os obstáculos. Menos do que as outras, a poesia do sr. Geir Campos pode ser definida como "posterior à palavra", e só por um engano de visão houve em São Paulo quem o associasse ultimamente aos parnasianos. As coisas visíveis com os olhos do corpo não podem seduzir, como tais, àquele platonismo verdadeiramente fundamental de quem chegou a escrever:


"Não há formas, mas a Forma
equilibrada e sutil;
a sombra única em mil
gamas de luz se deforma."


Sua poesia "descritiva" não traduz um puro contentamento com o visível; representa, antes, uma demanda, infrutífera, talvez, do essencial através do episodio. À maneira de um Francis Ponge, mas em sentido precisamente contrario, ela nos propõe os malogros, autenticos "échecs de description", que seriam, no entanto, a salvaguarda ainda disponível contra a inexpressão de um mundo mudo. Às palavras, ao menos por esse lado, embora.

"Ao que importa dizer não corresponde
nenhuma das palavras conhecidas",

é confiada a missão de animar, de vitalizar os objetos, aqueles mesmos objetos que o sr. João Cabral cuida de petrificar em sua empresa de "mineralização" do mundo.

"Cultivar o deserto
como um pomar às avessas."


Contudo, e ainda mais do que na poesia tão importante do sr. Tiago de Melo, elas não representam uma dádiva, representam, sim, uma dura conquista. Seu problema é antes de tudo metafísico; não é um problema estético. Seria possível andar-se mais longe do parnasianismo? Entretanto é exato que algumas vezes os contrarios se tocam.
A essas poesias, que vistas de relance parecem trair mais fortemente o artifice, deve-se a associação freqüentemente estabelecida entre o pós-modernismo e o zelo formal absorvente. Associação que não me parece valida de modo geral para o numeroso grupo mineiro, tão estranhamente coerente, e que merecia estudo especial. Ou para uma parte do grupo de São Paulo, menos homogêneo, sem duvida, mas não menos significativo, e apesar disso muito pouco representado no volume. Há ainda quem, como o sr. Ledo Ivo, com sua singular virtuosidade, fuja naturalmente a toda ortodoxia exclusivista. E se nesse caso existe alguma constante, será a que se exprime no verso.


"Não se faz um soneto; ele acontece"

É curioso notar como o zelo formal parece justamente menos empolgante nos autores mais submissos ao puro instrumento verbal. Na poesia do sr. Bueno de Rivera, um dos que ocupam mais lugar nesta antologia (ao lado dos srs. Ledo Ivo, Darci Damasceno, Marcos Konder Reis, João Cabral e do proprio organizador de obra) é decisivo o papel da palavra-chave, às vezes de alto valor sugestivo, enquanto não se converte em lugar-comum.
E no seu caso, a contenção - já não digo a preocupação - formal só se torna mais ou menos aparente onde ele se aproxima da lição de um mestre "modernista", do sr. Carlos Drummond de Andrade. Nisto verifica-se bem o que foi dito em entrevista recente pelo sr. Manuel Bandeira: "A impressão de rigor que eles transmitem talvez se explique melhor pelo fato de terem abandonado o versículo biblico pelas linhas curtas, de distribuição arbitraria". E entre os modernistas foi certamente o sr. Drummond, com o sr. Oswald de Andrade e o sr. Murilo Mendes, um dos que mais assiduamente se serviram das linhas curtas.
Aliás o versículo biblico, ou antes a poesia de longo fôlego, livre dos compassos canônicos, volta agora a ser praticada com bom exito por um autor da moderna geração, o sr. Marcos Konder Reis. É um autor que sabe interpretar com extrema liberalidade o conceito de que a poesia se faz com palavras. Não deixa de ser caracteristico que, ainda aqui, o domínio do verbo tende a coincidir com certo relaxamento voluntário da forma exterior.
Sem duvida aquele domínio não significa, no caso, um pronunciado gosto pela precisão vocabular. A linguagem deste poeta não quer ser nítida como a de tantos autores novos (a própria palavra "nítido" tornou-se entre estes clichê favorito), quer ser sugestiva e arrebatadora. Não é certamente na anemia, é na congestão, que se encontra a ameaça mais inquietante para a poesia do sr. Konder Reis.
O zelo formal e o proprio decoro poético, tão freqüentemente apresentados como características da nova poesia brasileira, seriam assim inexistentes, ou então decorreriam naturalmente de condições e motivos peculiares à sua criação e cuja origem há de procurar-se em cada caso particular. São um resultado, não um ponto de partida. Isso entende-se, é certo, com os representantes mais típicos dessa poesia, e julgo pessoalmente que os melhores. Só para os outros é que ela se converte em preceito, em convenção e em programa.
sabemos, entretanto, a que ponto são virulentas certas afetações, quando se convertem em plano de ação ou plataforma de combate. No modernismo, o lema libertario, que teve de inicio a função precisa e necessária de contrariar convenções puramente exteriores, passou a erigir-se, com o tempo, e para alguns, em principio positivo e valido só por si. Não seria o momento de lembrar essa lição àqueles, entre os modernos poetas, que, embora invertendo os sinais, vão caindo no mesmo suave engano?

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