Sérgio Buarque de Holanda
Uma vez fixados, com todas as ressalvas necessárias,
alguns dos motivos dominantes na nova poesia brasileira, tal como
se apresenta no Panorama organizado pelo sr. Fernando Ferreira de
Loandra, ocorre pensar que só algumas aparências superficiais,
e um pouco a consciência, generalizada entre esses autores,
de que inauguram um movimento realmente novo em nossa literatura
explicam a obstinação com que vemos neles uma especie
de bloco unitário e homogêneo. Tudo faz ver, porem,
que aqueles motivos - em particular a exigência de decoro
poético e a do rigor formal - significariam, de fato, menos
uma diretriz definida do que um toque de reunir.
As associações que muitas vezes somos levados a fazer
para melhor delimitar as tendências comuns revelam-se então
meras simplificações didáticas. No sr. João
Cabral de Melo Neto, o formalismo alcança uma expressão
de rigor ascetico sem precedentes talvez em toda a literatura de
língua portuguesa. Desse arquiteto não é excessivo
dizer que nos deu o verdadeiro equivalente poético das modernas
"maquinas de morar". Tanto quanto os produtos de uma arte
funcional, sua obra não se deixa facilmente medir segundo
padrões unicamente artísticos.
E o que haverá de comum entre sua poesia voluntariamente
esquelética, verdadeira prosopopéia às avessas,
e a de outro "formalista", do sr. Péricles Eugenio
da Silva Ramos, que se compraz, ao contrario, nas carnações
coloridas e bem torneadas? Aqui o artista representa o oposto do
matemático sempre atento à fria observação.
Tambem não é apenas um contemplador, mas ainda um
sócio da natureza: por isso se ocupa em enriquecer de finos
lavores as coisas visíveis. Seu verso é espelho de
seu mundo.
No sr. José Paulo Moreira de Fonseca, ao contrario, o senso
plástico procura captar em sua própria naturalidade
o capricho do espetáculo natural. A economia de meios não
provem de uma pura operação artística, mas
quer reproduzir aquele espetáculo em sua evanescencia. A
sobriedade característica do poeta é, de fato, uma
imposição do tema constante.
Como reduzir a um mesmo denominador expressões tão
contrastantes? E se optássemos pelo rotulo, só aparentemente
apropriado, de "formalismo", não seria mister redefinilo
em face de cada uma delas (de modo que, procurando valer para os
casos singulares, ele se esvaziasse ao cabo de toda significação)?
Poesia "posterior à palavra": a formula de Alfonso
Reys será talvez justificavel. Contudo, uma reflexão
mais acurada autoriza as maiores duvidas. Mesmo nas experiências
do sr. João Cabral de Melo Neto, que a primeira vista parecem
sugerir um domínio triunfal sobre os meios de expressão,
o acaso não é totalmente abolido. No Cão Sem
Plumas, especialmente, as forças indomitas da memória,
do sono, do subconsciente, ainda desafiam mais do que nunca a atenta
vigília do poeta. O verbo lúcido traduz uma vontade
sempre afiada pela e para a luta; o contrario da paz garantida e
desfrutada depois da guerra.
E se passarmos a outro autor, tão freqüentemente associado
aos formalistas, maiores serão ainda os obstáculos.
Menos do que as outras, a poesia do sr. Geir Campos pode ser definida
como "posterior à palavra", e só por um
engano de visão houve em São Paulo quem o associasse
ultimamente aos parnasianos. As coisas visíveis com os olhos
do corpo não podem seduzir, como tais, àquele platonismo
verdadeiramente fundamental de quem chegou a escrever:
"Não
há formas, mas a Forma
equilibrada e sutil;
a sombra única em mil
gamas de luz se deforma."
Sua
poesia "descritiva" não traduz um puro contentamento
com o visível; representa, antes, uma demanda, infrutífera,
talvez, do essencial através do episodio. À maneira
de um Francis Ponge, mas em sentido precisamente contrario, ela
nos propõe os malogros, autenticos "échecs de
description", que seriam, no entanto, a salvaguarda ainda disponível
contra a inexpressão de um mundo mudo. Às palavras,
ao menos por esse lado, embora.
"Ao
que importa dizer não corresponde
nenhuma das palavras conhecidas",
é
confiada a missão de animar, de vitalizar os objetos, aqueles
mesmos objetos que o sr. João Cabral cuida de petrificar
em sua empresa de "mineralização" do mundo.
"Cultivar
o deserto
como um pomar às avessas."
Contudo,
e ainda mais do que na poesia tão importante do sr. Tiago
de Melo, elas não representam uma dádiva, representam,
sim, uma dura conquista. Seu problema é antes de tudo metafísico;
não é um problema estético. Seria possível
andar-se mais longe do parnasianismo? Entretanto é exato
que algumas vezes os contrarios se tocam.
A essas poesias, que vistas de relance parecem trair mais fortemente
o artifice, deve-se a associação freqüentemente
estabelecida entre o pós-modernismo e o zelo formal absorvente.
Associação que não me parece valida de modo
geral para o numeroso grupo mineiro, tão estranhamente coerente,
e que merecia estudo especial. Ou para uma parte do grupo de São
Paulo, menos homogêneo, sem duvida, mas não menos significativo,
e apesar disso muito pouco representado no volume. Há ainda
quem, como o sr. Ledo Ivo, com sua singular virtuosidade, fuja naturalmente
a toda ortodoxia exclusivista. E se nesse caso existe alguma constante,
será a que se exprime no verso.
"Não
se faz um soneto; ele acontece"
É
curioso notar como o zelo formal parece justamente menos empolgante
nos autores mais submissos ao puro instrumento verbal. Na poesia
do sr. Bueno de Rivera, um dos que ocupam mais lugar nesta antologia
(ao lado dos srs. Ledo Ivo, Darci Damasceno, Marcos Konder Reis,
João Cabral e do proprio organizador de obra) é decisivo
o papel da palavra-chave, às vezes de alto valor sugestivo,
enquanto não se converte em lugar-comum.
E no seu caso, a contenção - já não
digo a preocupação - formal só se torna mais
ou menos aparente onde ele se aproxima da lição de
um mestre "modernista", do sr. Carlos Drummond de Andrade.
Nisto verifica-se bem o que foi dito em entrevista recente pelo
sr. Manuel Bandeira: "A impressão de rigor que eles
transmitem talvez se explique melhor pelo fato de terem abandonado
o versículo biblico pelas linhas curtas, de distribuição
arbitraria". E entre os modernistas foi certamente o sr. Drummond,
com o sr. Oswald de Andrade e o sr. Murilo Mendes, um dos que mais
assiduamente se serviram das linhas curtas.
Aliás o versículo biblico, ou antes a poesia de longo
fôlego, livre dos compassos canônicos, volta agora a
ser praticada com bom exito por um autor da moderna geração,
o sr. Marcos Konder Reis. É um autor que sabe interpretar
com extrema liberalidade o conceito de que a poesia se faz com palavras.
Não deixa de ser caracteristico que, ainda aqui, o domínio
do verbo tende a coincidir com certo relaxamento voluntário
da forma exterior.
Sem duvida aquele domínio não significa, no caso,
um pronunciado gosto pela precisão vocabular. A linguagem
deste poeta não quer ser nítida como a de tantos autores
novos (a própria palavra "nítido" tornou-se
entre estes clichê favorito), quer ser sugestiva e arrebatadora.
Não é certamente na anemia, é na congestão,
que se encontra a ameaça mais inquietante para a poesia do
sr. Konder Reis.
O zelo formal e o proprio decoro poético, tão freqüentemente
apresentados como características da nova poesia brasileira,
seriam assim inexistentes, ou então decorreriam naturalmente
de condições e motivos peculiares à sua criação
e cuja origem há de procurar-se em cada caso particular.
São um resultado, não um ponto de partida. Isso entende-se,
é certo, com os representantes mais típicos dessa
poesia, e julgo pessoalmente que os melhores. Só para os
outros é que ela se converte em preceito, em convenção
e em programa.
sabemos, entretanto, a que ponto são virulentas certas afetações,
quando se convertem em plano de ação ou plataforma
de combate. No modernismo, o lema libertario, que teve de inicio
a função precisa e necessária de contrariar
convenções puramente exteriores, passou a erigir-se,
com o tempo, e para alguns, em principio positivo e valido só
por si. Não seria o momento de lembrar essa lição
àqueles, entre os modernos poetas, que, embora invertendo
os sinais, vão caindo no mesmo suave engano?
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