TEATRO JESUITICO

Publicado na Folha da Manhã, quarta-feira, 26 de setembro de 1951

Sérgio Buarque de Holanda

A impressão da obra literaria de Anchieta em textos onde pela primeira vez são religiosamente obedecidos os manuscritos existentes nos arquivos da Companhia de Jesus, em Roma, promete constituir um ponto de partida para o melhor conhecimento de nossa historia literaria e espiritual.
Embora uma visão completa seja talvez impossivel enquanto não se faça realidade a grande edição projetada para as comemorações do quarto centenario da fundação do Colegio de São Paulo, em 1954, os três autos até aqui impressos já nos dão elementos bastantes para que se avalie o grande alcance destas publicações. E permitem, sobretudo, ajuizar do meticuloso zelo com que se houve a sra. Maria de Lurdes de Paula Martins, organizadora, anotadora, interprete e, em parte, tradutora daquelas obras. Zelo que, para a imensa maioria dos seus leitores, há de ser mais transparente neste novo volume - Na Vila de Vitoria e na Visitação de Santa Isabel (Boletim III, do Museu Paulista, São Paulo, 1950) - do que no anterior da mesma serie, onde nos faltam - aos ignorantes em materia de tupi-jesuitico - meios de verificar a fidelidade na interpretação dada a certos dialogos que o autor redigira na lingua geral da terra. Diferente nisto do Auto Representado na Festa de São Lourenço, os dois textos que ora se publicam estão redigidos somente em português e em castelhano.
E se a interpretação oferecida pela sra. Paula Martins não estivesse livre de objeções em todos os casos, a circunstancia de ter transcrito fielmente o texto primitivo, ao lado dessa interpretação, ajudará liquidar as duvidas. Uma objeção pode ocorrer à primeira vista e refere-se à divisão das peças em atos na sua versão moderna. Essa divisão não consta do original, não é de uso no auto sacramental iberico, de onde descende nosso teatro jesuitico e parece essencialmente alheia ao genero, uma vez que a propria palavra "auto" não difere linguisticamente de "ato", por conseguinte não admite seções autonomas.
Contudo poderia a interprete defender-se lembrando como o proprio Anchieta deixaria indicado com sua letra, à primeira pagina de auto anterior e já publicado (o de São Lourenço) que "no 2.o acto então 2 diabos". Isso pareceu autorizá-la a efetuar a divisão no texto diplomatico e a preservá-la, por coerencia, nas peças posteriormente publicadas. De modo que sua arbitrariedade, visando tornar mais acessivel a obra, tem em suma o mesmo sentido dos numeros dispostos à margem do texto para a facilidade maior do confronto. É de desejar, não obstante, que essa excessiva "modernização", talvez justificavel por ora, seja abolida na grande edição de centenario de São Paulo, que há de ser completa e aparentemente definitiva.
O interesse por estas particularidades de natureza tecnica e simplesmente editorial não deve sobrepujar, porem, o que devem reclamar as proprias caracteristicas do texto. Uma delas e das mais interessantes é o bilinguismo nos dialogos. Não se trata, é certo, de um caracteristico dos autos brasileiros e mesmo americanos, pois já pertence ao teatro de Gil Vicente e da chamada escola vicentina, que sem duvida influiu entre nós sobre o estilo das representações dramaticas dos jesuitas. O problema, que pode interessar eventualmente à critica é, neste ponto, o de determinar as razões da eleição em cada caso e para cada personagem de um dos idiomas empregados. Nas peças de Gil Vicente, que escrevera bem antes de se acentuar em Portugal o nascionalismo linguistico - manifestado mais tarde com Antonio Ferreira - já se notou que, onde aparece o bilinguismo, o castelhano surge de preferencia na fala das personagens de alta categoria. E de modo geral a observação serve para se determinar o carater de peças inteiras. Não é por acaso, certamente, que na "Trilogia das Barcas", só a da Gloria, onde entram o "Papa", o "Cardeal", o "Arcebispo", o "Imperador", o "Rei", o "Duque" e o "Conde", é toda em espanhol. Ao passo que nas do "Inferno e Purgatorio", em que se figura gente mais miuda, o vernaculo domina.
Isso é bem explicavel quando se considere que, ao tempo de Gil Vicente, era o castelhano, em Portugal, idioma dignificante e nobre, proprio, por isso, dos homens de prol, sobretudo da Corte. E assim, os dialogos nessa lingua teriam significação em muitos pontos comparavel à dos dialogos em francês de certos romances russos do seculo XIX.
A explicação, valida para Gil Vicente, não o é no mesmo grau para seus discipulos diretos. No "Auto de Santiago" de Afonso Alvares, que suponho ser o mesmo auto do glorioso Santo Iago, representado na Bahia em 1564 e que, a julgar pelos dados cronologicos disponiveis, se acha a origem dessas representações dramaticas entre nós, o anjo fala em português ao passo que o espanhol é a lingua do "Pastor" e da "Semana".
Nas obras de Anchieta, que acaba de publicar o Museu Paulista, a variedade das linguas utilizadas justifica-se por vezes no mesmo texto. Em "Na Vila de Vitoria" nota-se que "Lucifer" fala sempre em português e "Satanaz" - seu servidor - em espanhol. A razão da preferencia é dada pelo proprio personagem, quando (à pag 29) exclama:


"Esta mano
es mas fuerte que el tirano
para hacer negar a Dios
Per eso mudé de voz:
para hablarle castelhano
y mostarme más feroz".


O que, note-se de passagem, pode servir para mostrar o juizo que dos castelhanos (ou de sua lingua) faziam então os lusitanos, juizo esse perfilhado mesmo por quem, como Anchieta, nascera em terras de Espanha.
Mas logo adiante a preferencia pelo uso do espanhol é autorizada por motivos politicos. Com Filipe II já no trono de Portugal parece licito esperar que no espanhol se dêem aqui certas regalias. Assim, quando "Governo", uma das personagens, pergunta à outra.


"pois que sois de Portugal,
como falais castelhano?"


- é pronta e explicita a resposta de "Vila da Vitoria":

"Porque quiero dar su gloria
a Felipe, mi señor,
el qual siempre és vencedor,
y por el habré victoria
de todo perseguidor."


Não é demais pensar que o bilinguismo - em outros casos o plurilinguismo - estivesse associado a certas conveniencias da representação dramaticas, à conveniencia, por exemplo, de se quebrar a monotonia dos dialogos, dando-lhes mais graça e artificio. E ainda à de melhor se destacarem, umas das outras, as personagens, num tempo em que a caracterização psicologica não se achava suficientemente evoluida para impor-se por si só aos espectadores. As mesmas razões explicam, tanto quanto a sensibilidade exacerbada pelas diferenças etnicas, num meio essencialmente cosmopolita como o foi a Lisboa do Quinhentos, a insistencia com que o teatro português da epoca (e não só o português) trata de aproveitar o efeito dramatico, geralmente comico, do diferentes sotaques nacionais nos dialogos em uma só lingua.
Esses recursos devem corresponder de certo modo ao das diferentes tonalidades de expressão que Lope da Vega, mal afeito, embora, às leis poeticas rigorosas, reclamaria para as personagens diversas em seu "Arte Nuevo de Hacer Comedias" e que não passa, em verdade, de um eco longinguo e indistinto das exigencias que, desde Aristoteles, se tinham sistematizado no principio da distinção dos estilos. Ao falar o rei, que falasse com dignidade real; o velho, com sentenciosa modestia; o amante, com efeito enternecedor; o lacaio, com servilismo e sem "agudezas", destas, que "temos visto em comedias estrangeiras". A propria versificação deveria acomodar-se aos temas e sujeitos: as decimas servem para a queixa, o soneto para a esperança; os "romances" para a narrativa; os tercetos para coisas graves, e para as de amor as redondilhas.
Um pouco de tudo isso pode-se notar no teatro iberico e, em particular, no português, muito antes das definições de Lope. Mesmo no auto peninsular transportado no Brasil, a fala dos diabos, por exemplo, ou a de "Ingratidão" pode diferenciar-se pelas suas expressões meio chulas, da linguagem, ora serafica, ora sisuda e sentenciosa dos anjos ou dos governantes, ainda quando todos se sirvam do mesmo idioma. E na propria versificação, que em geral obedece ao corte breve tradicional entre espanhóis e portugueses, há ocasião - como no momento em que se vão defrontar "Governo" e "Vila", no auto da "Vila de Vitoria" - onde o metro familiar cede o passo às formas peregrinas do decassilabo. Passada a cerimonia surpresa do encontro, voltam, ambos, e certo, ao seu verso de redondilha maior.
No caso do nosso teatro jesuitico o emprego, na mesma peça, de idiomas diferentes, convida a outra observação que aparentemente ainda não pôde ser feita e que, guardadas certas proporções, se prende ao problema, tão em foco nos atuais estudos de literatura, de publico, do agrupamento humano a que as obras são dirigidas. Há casos em que as peças ou poesias anchietanas são escritas, do começo ao fim, na lingua geral. Estas seriam destinadas unicamente aos catecumenos indigenas, ignorantes do português. Outras, como o "Auto de São Lourenço", representado na aldeia dêsse nome, perto de Niterói, nascem para um publico misto e mesmo para indios já familiarizados com lingua de branco, como seria a gente de Araribóia. As duas peças que compõem o volume ora publicado são escritos em português e castelhano. Representadas no coração da vila de Vitoria destinavam-se não a indios, mas sobretudo aos colonos.
Isto mostra como nesse catecismo visual que eram os autos e até os poemas inacianos, entre nós, não se visava apenas à educação do genio nas virtudes civis e na fé cristã. Sendo este o ministerio especial dos padres da Companhia, não supria outro mais universal, mais "catolico", que incluia a educação de colonos e filhos de colonos no amor e no temor do Deus. E essa missão pedagogica, assumida outro mais universal, mais "cairá diferençá-la, só por sí, das peças da "escola vicentina" em que tem sido incluido, para reaproximá-lo do drama religioso, e mesmo do entremez iberico, que são, de fato, seus remotos antepassados.


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