Sérgio Buarque de Holanda
A
impressão da obra literaria de Anchieta em textos onde
pela primeira vez são religiosamente obedecidos os manuscritos
existentes nos arquivos da Companhia de Jesus, em Roma, promete
constituir um ponto de partida para o melhor conhecimento de nossa
historia literaria e espiritual.
Embora uma visão completa seja talvez impossivel enquanto
não se faça realidade a grande edição
projetada para as comemorações do quarto centenario
da fundação do Colegio de São Paulo, em 1954,
os três autos até aqui impressos já nos dão
elementos bastantes para que se avalie o grande alcance destas
publicações. E permitem, sobretudo, ajuizar do meticuloso
zelo com que se houve a sra. Maria de Lurdes de Paula Martins,
organizadora, anotadora, interprete e, em parte, tradutora daquelas
obras. Zelo que, para a imensa maioria dos seus leitores, há
de ser mais transparente neste novo volume - Na Vila de Vitoria
e na Visitação de Santa Isabel (Boletim III, do
Museu Paulista, São Paulo, 1950) - do que no anterior da
mesma serie, onde nos faltam - aos ignorantes em materia de tupi-jesuitico
- meios de verificar a fidelidade na interpretação
dada a certos dialogos que o autor redigira na lingua geral da
terra. Diferente nisto do Auto Representado na Festa de São
Lourenço, os dois textos que ora se publicam estão
redigidos somente em português e em castelhano.
E se a interpretação oferecida pela sra. Paula Martins
não estivesse livre de objeções em todos
os casos, a circunstancia de ter transcrito fielmente o texto
primitivo, ao lado dessa interpretação, ajudará
liquidar as duvidas. Uma objeção pode ocorrer à
primeira vista e refere-se à divisão das peças
em atos na sua versão moderna. Essa divisão não
consta do original, não é de uso no auto sacramental
iberico, de onde descende nosso teatro jesuitico e parece essencialmente
alheia ao genero, uma vez que a propria palavra "auto"
não difere linguisticamente de "ato", por conseguinte
não admite seções autonomas.
Contudo poderia a interprete defender-se lembrando como o proprio
Anchieta deixaria indicado com sua letra, à primeira pagina
de auto anterior e já publicado (o de São Lourenço)
que "no 2.o acto então 2 diabos". Isso pareceu
autorizá-la a efetuar a divisão no texto diplomatico
e a preservá-la, por coerencia, nas peças posteriormente
publicadas. De modo que sua arbitrariedade, visando tornar mais
acessivel a obra, tem em suma o mesmo sentido dos numeros dispostos
à margem do texto para a facilidade maior do confronto.
É de desejar, não obstante, que essa excessiva "modernização",
talvez justificavel por ora, seja abolida na grande edição
de centenario de São Paulo, que há de ser completa
e aparentemente definitiva.
O interesse por estas particularidades de natureza tecnica e simplesmente
editorial não deve sobrepujar, porem, o que devem reclamar
as proprias caracteristicas do texto. Uma delas e das mais interessantes
é o bilinguismo nos dialogos. Não se trata, é
certo, de um caracteristico dos autos brasileiros e mesmo americanos,
pois já pertence ao teatro de Gil Vicente e da chamada
escola vicentina, que sem duvida influiu entre nós sobre
o estilo das representações dramaticas dos jesuitas.
O problema, que pode interessar eventualmente à critica
é, neste ponto, o de determinar as razões da eleição
em cada caso e para cada personagem de um dos idiomas empregados.
Nas peças de Gil Vicente, que escrevera bem antes de se
acentuar em Portugal o nascionalismo linguistico - manifestado
mais tarde com Antonio Ferreira - já se notou que, onde
aparece o bilinguismo, o castelhano surge de preferencia na fala
das personagens de alta categoria. E de modo geral a observação
serve para se determinar o carater de peças inteiras. Não
é por acaso, certamente, que na "Trilogia das Barcas",
só a da Gloria, onde entram o "Papa", o "Cardeal",
o "Arcebispo", o "Imperador", o "Rei",
o "Duque" e o "Conde", é toda em espanhol.
Ao passo que nas do "Inferno e Purgatorio", em que se
figura gente mais miuda, o vernaculo domina.
Isso é bem explicavel quando se considere que, ao tempo
de Gil Vicente, era o castelhano, em Portugal, idioma dignificante
e nobre, proprio, por isso, dos homens de prol, sobretudo da Corte.
E assim, os dialogos nessa lingua teriam significação
em muitos pontos comparavel à dos dialogos em francês
de certos romances russos do seculo XIX.
A explicação, valida para Gil Vicente, não
o é no mesmo grau para seus discipulos diretos. No "Auto
de Santiago" de Afonso Alvares, que suponho ser o mesmo auto
do glorioso Santo Iago, representado na Bahia em 1564 e que, a
julgar pelos dados cronologicos disponiveis, se acha a origem
dessas representações dramaticas entre nós,
o anjo fala em português ao passo que o espanhol é
a lingua do "Pastor" e da "Semana".
Nas obras de Anchieta, que acaba de publicar o Museu Paulista,
a variedade das linguas utilizadas justifica-se por vezes no mesmo
texto. Em "Na Vila de Vitoria" nota-se que "Lucifer"
fala sempre em português e "Satanaz" - seu servidor
- em espanhol. A razão da preferencia é dada pelo
proprio personagem, quando (à pag 29) exclama:
"Esta
mano
es mas fuerte que el tirano
para hacer negar a Dios
Per eso mudé de voz:
para hablarle castelhano
y mostarme más feroz".
O
que, note-se de passagem, pode servir para mostrar o juizo que
dos castelhanos (ou de sua lingua) faziam então os lusitanos,
juizo esse perfilhado mesmo por quem, como Anchieta, nascera em
terras de Espanha.
Mas logo adiante a preferencia pelo uso do espanhol é autorizada
por motivos politicos. Com Filipe II já no trono de Portugal
parece licito esperar que no espanhol se dêem aqui certas
regalias. Assim, quando "Governo", uma das personagens,
pergunta à outra.
"pois
que sois de Portugal,
como falais castelhano?"
-
é pronta e explicita a resposta de "Vila da Vitoria":
"Porque
quiero dar su gloria
a Felipe, mi señor,
el qual siempre és vencedor,
y por el habré victoria
de todo perseguidor."
Não
é demais pensar que o bilinguismo - em outros casos o plurilinguismo
- estivesse associado a certas conveniencias da representação
dramaticas, à conveniencia, por exemplo, de se quebrar
a monotonia dos dialogos, dando-lhes mais graça e artificio.
E ainda à de melhor se destacarem, umas das outras, as
personagens, num tempo em que a caracterização psicologica
não se achava suficientemente evoluida para impor-se por
si só aos espectadores. As mesmas razões explicam,
tanto quanto a sensibilidade exacerbada pelas diferenças
etnicas, num meio essencialmente cosmopolita como o foi a Lisboa
do Quinhentos, a insistencia com que o teatro português
da epoca (e não só o português) trata de aproveitar
o efeito dramatico, geralmente comico, do diferentes sotaques
nacionais nos dialogos em uma só lingua.
Esses recursos devem corresponder de certo modo ao das diferentes
tonalidades de expressão que Lope da Vega, mal afeito,
embora, às leis poeticas rigorosas, reclamaria para as
personagens diversas em seu "Arte Nuevo de Hacer Comedias"
e que não passa, em verdade, de um eco longinguo e indistinto
das exigencias que, desde Aristoteles, se tinham sistematizado
no principio da distinção dos estilos. Ao falar
o rei, que falasse com dignidade real; o velho, com sentenciosa
modestia; o amante, com efeito enternecedor; o lacaio, com servilismo
e sem "agudezas", destas, que "temos visto em comedias
estrangeiras". A propria versificação deveria
acomodar-se aos temas e sujeitos: as decimas servem para a queixa,
o soneto para a esperança; os "romances" para
a narrativa; os tercetos para coisas graves, e para as de amor
as redondilhas.
Um pouco de tudo isso pode-se notar no teatro iberico e, em particular,
no português, muito antes das definições de
Lope. Mesmo no auto peninsular transportado no Brasil, a fala
dos diabos, por exemplo, ou a de "Ingratidão"
pode diferenciar-se pelas suas expressões meio chulas,
da linguagem, ora serafica, ora sisuda e sentenciosa dos anjos
ou dos governantes, ainda quando todos se sirvam do mesmo idioma.
E na propria versificação, que em geral obedece
ao corte breve tradicional entre espanhóis e portugueses,
há ocasião - como no momento em que se vão
defrontar "Governo" e "Vila", no auto da "Vila
de Vitoria" - onde o metro familiar cede o passo às
formas peregrinas do decassilabo. Passada a cerimonia surpresa
do encontro, voltam, ambos, e certo, ao seu verso de redondilha
maior.
No caso do nosso teatro jesuitico o emprego, na mesma peça,
de idiomas diferentes, convida a outra observação
que aparentemente ainda não pôde ser feita e que,
guardadas certas proporções, se prende ao problema,
tão em foco nos atuais estudos de literatura, de publico,
do agrupamento humano a que as obras são dirigidas. Há
casos em que as peças ou poesias anchietanas são
escritas, do começo ao fim, na lingua geral. Estas seriam
destinadas unicamente aos catecumenos indigenas, ignorantes do
português. Outras, como o "Auto de São Lourenço",
representado na aldeia dêsse nome, perto de Niterói,
nascem para um publico misto e mesmo para indios já familiarizados
com lingua de branco, como seria a gente de Araribóia.
As duas peças que compõem o volume ora publicado
são escritos em português e castelhano. Representadas
no coração da vila de Vitoria destinavam-se não
a indios, mas sobretudo aos colonos.
Isto mostra como nesse catecismo visual que eram os autos e até
os poemas inacianos, entre nós, não se visava apenas
à educação do genio nas virtudes civis e
na fé cristã. Sendo este o ministerio especial dos
padres da Companhia, não supria outro mais universal, mais
"catolico", que incluia a educação de
colonos e filhos de colonos no amor e no temor do Deus. E essa
missão pedagogica, assumida outro mais universal, mais
"cairá diferençá-la, só por sí,
das peças da "escola vicentina" em que tem sido
incluido, para reaproximá-lo do drama religioso, e mesmo
do entremez iberico, que são, de fato, seus remotos antepassados.