INVENÇÃO OU CONVENÇÃO

Publicado na Folha da Manhã, quarta-feira, 12 de setembro de 1951

Nesse texto foi mantida a grafia original
Sérgio Buarque de Holanda

Tendo sugerido a proposito de um recente panorama da nova poesia brasileira que o zelo formalistico, se está efetivamente presente nessa poesia, teria carater acidental, não fundamental, e só entre autores menos caracteristicos se converte em preocupação empolgante, resta abordar algumas consequencias provaveis de tal situação.
Assim formulado, o problema remete-se ao velho e popular contraste entre "fundo" e "forma". Parece hoje certo que esse contraste não provem de uma falsificação, mas de uma simplificação mais ou menos grosseira. Apenas sucede, como em todas as simplificações, que ele nos leva com frequencia a uma visão confusa e, a bem dizer, falsificadora dos fatos.
A verdade é que fundo e forma não se deixam isolar um do outro sem provocar o risco de incompreensão da essencia da poesia. E assim como não parece plausivel abordar numa obra poetica unicamente seus motivos, seu temas, seu conteudo, é inegavel que esse "fundo" condiciona em grande escala a "forma" (e vice-versa). De onde a insuficiencia de todas as teorias que tendem a abstrair qualquer dos dois aspectos inseparaveis de uma só e mesma realidade. De onde tambem o erro singularmente difundido em nossos dias, e entre nós, de todas as explicações e criticas unicamente formalisticas, "esteticas", da natureza da poesia.
Para oferecer um exemplo concreto dos extremos a que pode chegar a falacia esteticista, lembrarei as palavras onde um bom poeta e mau esteta, da "geração de 45", se opôs ultimamente, em jornal de São Paulo, a certas objeções que lhe tentou fazer aqui mesmo este cronista. "Ao escrever sobre o livro de Cabral de Melo Neto - escreve ele - desnudei a debilidade poetica deste trecho inicial -

"A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por cachorro;
como uma fruta
por uma espada.

"No conjunto destes versos - acrescenta - a palavra cachorro é apoetica. E além da comparação entre o rio que passa a cidade e a espada que passa a fruta - que é destituida de qualquer valor como obra de criação, como idéia propria e como imagem literaria - a palavra fruta no feminino é poeticamente fraca tambem." Parece bem claro que nesse juízo prevalecem, do começo ao fim, meras associações pessoais, mais ou menos arbitrarias, que lutam desesperadamente por ganhar valor universal. O critico não chega, e em verdade não pode justificar de modo objetivo seu decreto de que tal palavra é apoetica se tomada isoladamente ou no contexto dos versos. Ou poderá fazê-lo quando invoque convenções esteticas bastante caprichosas.
A justificativa seria defensavel, neste caso, se apoiada em determinado criterio - o de que invenção, em poesia, vale menos do que a convenção (que é, em suma, o criterio de todas as retoricas e de todo classicismo genuino) - mas então ficaria inutilizada sua outra exigencia expressa, de que uma comparação poetica deva ter "valor como obra de criação, como idéia propria".
O "como" o poeta diz é sempre estritamente condicionado por "o que" ele diz. E o que ele diz só o pode dizer de uma forma. Em poesia - e apenas em poesia? - "cão" não é sinonimo de "cachorro" e "fruta não se traduz rigorosamente por "fruto". Até nestes minimos pormenores parece legitima a noção de que a linguagem da poesia, em essencia, não é traduzivel, nem substituivel à vontade.
Outro ponto onde esta alternativa entre convenção e invenção é de importancia e afeta o problema ainda uma vez em foco, do verso metrificado e do chamado verso livre, relaciona-se à questão do ritmo. A distinção entre o ritmo natural e o compasso que tive ocasião de abordar em artigo recente não é minha, nem é recente, pois que, em sua expressão primitiva, está em Aristoteles. Sabe-se que para o Estagirita, o verso se distinguia, com efeito, pelo metro, e a prosa pelo movimento ritmico. Que este movimento seja caracterizado por certa regularidade ou recorrencia não parece discutivel; do contrario necessitariamos de outra palavra quando falassemos no ritmo das ondas do mar ou no da respiração. Mas tambem é indiscutivel que o ritmo das ondas e o da respiração não são coisa mecanica e não se deixam metrificar sem violencia.
Tal opinião, contudo, está longe de ser perfeitamente pacifica. Assim, um dos novos poetas da "geração de 45", meu prezado amigo Domingos Carvalho da Silva, ainda pode escrever palavras -entre outras- em defesa de suas ideias proprias sobre ritmo: "Resta-me a hipotese de admitir o sr. Sergio Buarque, como compasso mecanico, todo o ritmo que se baseia na harmonia tonica das silabas. Se assim ele entende, por ter outra noção do ritmo, devo então confessar-lhe sinceramente que para mim o ritmo é realmente coisa mecanica". Sua condicional não importa muito neste caso, pois logo admite lhanamente, e já sem condições, este ultimo ponto de vista: "No meu ensaio, por ele generosamente citado, defino o ritmo como o resultado de uma regularidade cronologica da produção de um som qualquer (hoje eu diria repetição em vez de produção). E estudo o ritmo do ponto de vista da fisica, cito o tique-taque dos ponteiros do relogio".
A divergencia, a meu ver, cifra-se aqui numa questão de linguagem. Ritmo para o autor é o que tradicionalmente se tem entendido por metrica. Apenas no desenvolvimento da tese trata de defender "a livre combinação de versos de medidas diferentes, contra a monotonia dos versos uniformes". E ainda neste passo não se afasta vigorosamente do convencional, pois é notorio que poucas vezes, mesmo nas epocas de classicismo, se ataram os poetas, com exclusividade, aos padrões isossilabicos.
A "novidade" contra a qual se rebela, mesmo sem o confessar, prende-se à crença difundida muito depois de Aristoteles, de que tambem o verso, como a prosa, pode ser unicamente ritmico sem precisar submeter-se a qualquer metrica definida. Ritmico, no mesmo sentido em que é ritmica a mutação das estações do ano. As quais, obedecendo embora a certa regularidade, nem por isso se perfilam num compasso mecanico.
Se a palavra "verso" é inadequada para designar as linhas irregulares que vemos na Biblia, em Whitman ou em St. John Perse, por exemplo, é ponto ainda suscetivel de discussão. Etimologicamente essa palavra dá a idéia de "volta", "repetição". Nada prova, porém, que volta e repetição devem ser comparaveis ao tique-taque de um relogio ou possam ser estudadas, como o deseja meu poeta, "do ponto de vista da fisica".
Devo dizer, de passagem, que mesmo este ponto de vista pode favorecer em parte minhas pretensões, pois é notorio que a fisica moderna não tem meios para medir, segundo os criterios estatisticos que prevalecem para fenomenos macroscopicos, a regularidade das ocorrencias atomicas individuais. É claro que há alguma regularidade; apenas não se mostra docil aos nosso processos normais de mensuração.
O mesmo, com as mesmas palavras, cabe dizer do verso chamado livre. Examinando grande numero de poemas de Whitman, um estudioso dos problemas do ritmo e do compasso Albert Verwey pôde notar como apresentam movimentos de duração determinadas, que sempre se reiteram ao cabo de algum tempo. E outro estudioso, Max Bensc, achou essa reiteração redutivel, bem ou mal, a principios modernos de analise matematica, que em nada se comparam, é certo, aos da metrica tradicional.
Seria ingenuo pensar, contudo, que Whitman, ou qualquer outros cultores do verso "livre", tivesse obedecido conscientemente àqueles principios. Como não obedeciam, conscientemente, às complicações da poesia metrica mediavel, aqueles ditosos jograis e cantadores do seculo XIV, lembrados por Paul Verrier em sua obra exaustiva acerca do verso francês (tomo 2º, Paris, 1932, pag. 22), que sem nunca terem estudado as "regras" logravam triunfar naturalmente sobre todas as extremas dificuldades de tal poesia, com os seus seis modos ritmicos e os oito melodicos.
Hoje vemos, pela primeira vez, entre nós, depois do parnasianismo, toda uma geração devotada ao aprendizado das "regras" e tecnicas da poesia. O fenomeno é promissor só até certo ponto: até ao ponto em que esse devotamente, às vezes mais ostentoso do que real, não venha a suprir outras virtudes mais preciosas. A nostalgia dos rigidos regulamentos, a inflação formal, nunca representou um distintivo das epocas verdadeiramente ricas em poesia, mormente em poesia lirica. E o que foi verdadeiro no passado não deixará, talvez, de sê-lo no presente ou no futuro.


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