SOBRE UM NOVO FORMALISMO

Publicado na Folha da Manhã, terça-feira, 22 de agosto de 1950

Sérgio Buarque de Holanda

Há três anos passados, falecia Clemente Ferreira, justamente considerado o "Patriarca da Tisiologia Brasileira", mestre incontestavel que todos aprenderam a venerar, procurando nunca esquecer suas magnificas lições e cidadão emerito que deixou, no seio do povo, uma legião enorme de beneficiados com a sua obra grandiosa, tornando-se credor do mais profundo reconhecimento da patria, à qual prestou os seus melhores serviços.
Clemente Ferreira nasceu na cidade fluminense de Resende, em 1857, sendo filho de lavradores portugueses, que no arduo trabalho da gleba, vieram aqui encontrar oportunidade para prosperar, radicando-se definitivamente ao nosso meio.
E, depois de formado, é para Resende mesmo que o jovem medico volta a fim de exercer sua profissão, atirando-se à vida fatigante de clinico da roça, ganhando dez mil réis por legua e quatro mil réis por consulta. Durante cinco anos de sacrificio, dedicou-se ele, assim, com energia incomparavel a este arduo trabalho, sempre estudando e colaborando em diversas revistas medicas européias. Daí ter sido ele, na epoca, surpreendido com o titulo de membro correspondente da Sociedade de Terapeutica de Paris.
Os horizontes do medico da roça abrem-se, dia a dia, e ei-lo, em 1887, partindo para o Rio de Janeiro, onde vai abrir consultorio. Ali, procura o serviço de criança do velho Moncorvo, na Policlinica Geral, e acaba por dirigir o mesmo durante seis anos, e, apesar de clinicar como especialista em molestias pulmonares, no seu consultorio particular, interessa-se vivamente pelos problemas de puericultura, pouco estudados até então. Em 1893, publica ele no "Bulletin de Therapeutique", o seu primeiro estudo sobre a tuberculose infantil. E logo, tambem, a Academia Nacional lhe confere o titulo de membro titular.
Ainda em pleno Imperio, a febre amarela grassa em São Paulo e, em Campinas, ela flagela terrivelmente sua população desprovida de recursos. O governo apela para a abnegação dos medicos, e Clemente, embora um republicano de boa tempera, para lá parte como voluntario, enfrentando uma luta titanica contra a morte, em defesa daquela gente do povo que tombava vitimada pela molestia implacavel.
Passada a tormenta, regressa ele ao Rio, ao convivio dos seus e sempre disposto a novas lutas, voltando a dedicar-se ao estudo e tratamento da tuberculose.
Logo mais, é ele chamado a São Paulo, onde é feito inspetor sanitario, empenhando-se, agora, na luta contra os remanescentes da febre amarela, que ainda assolava o interior do nosso Estado.
Clemente Ferreira, no entanto, sentia que a tuberculose era a doença social que mais vitimas fazia em nosso meio, prejudicando seriamente as energia vivas da nação. E, a 17 de julho de 1899, funda a "Associação Paulista de Sanatorios Populares para Tuberculosos", que depois, passou a chamar-se "Liga Paulista Contra Tuberculose", entidade esta que dirigiu até o fim de sua vida laboriosa e incansavel, deixando um exemplo significante de trabalho e dedicação às gerações medicas que se sucederam.
O seu discurso pronunciado na sessão magna de aniversario da Academia Nacional de Medicina, em 1892, como orador oficial, foi um verdadeiro libelo contra os erros dos governantes na sua indiferença quase que absoluta aos problemas da medicina. E, a certa altura, diz com firmeza: "Senhores, eu confio que agora, que dirige os destinos da nação um governo serio, honesto e moralizador, ele deixará a senda até aqui trilhada pelos seus predecessores, para enveredar pela estrada larga da justiça ao verdadeiro merito, onde quer que a modestia o isole, do auxilio indispensavel, da animação fecundadora ao trabalhador desinteressado e consciencioso".
Mas, infelizmente, essa confiança do grande tisiologo nos futuros governantes se esborou completamente, pois até o fim de sua vida, nunca mais ele calou sua voz de protesto contra a falta de apoio que sempre os dirigentes da nação emprestaram aos problemas da saude do povo e notadamente à campanha por ele liderada da luta contra a tuberculose em nosso país.
Já em 1904, em conferencia realizada no Clube Piracicabano, afirmava ele: "Lutar contra a tuberculose é trabalhar pelo engrandecimento da patria". E salientava o fato de que pouco valeriam as medidas curativas, se, ao seu lado, não fossem adotadas medidas profilaticas na luta contra a peste branca, que vitimava, em todo o mundo, cerca de 6.824.801 pessoas, por ano, em nossa terra, aproximadamente 59.000 existencias, escolhendo esse flagelo atroz, como dizia ele, "de preferencia as suas vitimas na idade de maior capacidade produtiva, de trinta a quarenta anos, quando o capital humano mais rende, como fator de trabalho, como fonte de produção".
E, ao lado das medidas profilaticas, colocava ele como indispensaveis a melhoria das condições de alimentação e habitação do pobre, do homem do trabalho, das unidades produtoras.
"Domiciliamento higienico, vivenda humana e barata para o proletariado, alimentação suficiente em qualidade e quantidade e ao alcance de todos os que dispõem de poucos recursos ou incertos ganhos apenas, abono às familias necessitadas, em uma palavra - melhoria do padrão de vida em suas varias faces, sem olvidar a educação sanitaria do doente e dos que com ele convivem, só praticamente possivel e alcançavel em futuro ainda remoto... eis o que importa mais que tudo para que a luta contra a endemia feroz se torne eficiente e vitoriosa" (v. Relatorio da Liga Paulista Contra a Tuberculose apresentado à Assembléia Geral Anual correspondente ao exercicio de 1939, pag. 14).
E, já em seu relatório apresentado em 1941, chamava a atenção para a questão dos salarios das classes trabalhadoras, como responsavel imediato pela situação da saude das mesmas. E dizia: "Trata-se, pois, sem o mais leve exagero, de ordenados de salarios de fome, e isto em quase 50% dos casos. Tal situação economica, tão baixo padrão de vida, explicam de sobejo a morbidade geral e a tuberculização facil de semelhantes organismos, que vegetam e se arruinam nas mais precarias condições" (v. relatorio cit., pg 11).
Referindo-se ao problema da habitação, já dizia ele: "O problema da habitação economica, da vivenda proletaria, remonta a datas remotas, e sua solução impoz-se às cogitações dos governos e coletividades, desde o inicio da industrialização em varios paises da Europa". E, depois de falar sobre as casas de comodos, cortiços, porões e mocambos, acrescentava Clemente Ferreira: "É, pois, logico o incremento da morbidade e da mortalidade nessas pocilgas, onde se cultivam todos os germes morbidos e se estiolam legiões de organismos - presa facil da tuberculose - a doença da miseria e da má habitação" (v. Estudo e Conferencias (1939-1943), pg. 74).
Estudou ele o problema da alimentação e subnutrição de nossas populações urbanas e rurais, chegando à conclusão de que, a continuar esse estado cronico de subalimentação das camadas pobres da população brasileira, pouco ou quase nada se poderia fazer no terreno da tuberculose.
Por fim, afirmou que "o problema da tuberculose é um problema medico e em mais alto grau social", e, mais, que é preciso modificar o meio social no qual prospera a endemia, sendo certo que "como problema 1/3 medico e 2/3 social, a peste branca necessita de uma profilaxia e de uma terapeutica sociais".
Clemente não somente apontava os efeitos como tambem remontava às causas verdadeiras da disseminação da tuberculose. Dizia ele: "O aspecto social da tuberculose e sua feição economica vão sendo objeto de ponderadas preocupações, pois explicam, em muitos casos, as diferenças profundas que se notam nos diversos paises e em uma mesma nação, consoante as fases economico-financeiras que atravessam, conforme agem fatores vinculados a crises e depressões" (Relatorio apresentado à Assembléia Geral Anual da Liga Paulista Contra a Tuberculose, 1939).
Ligava ele, pois, com uma admiravel compreensão de medico-sociologo, os problemas de saude (e especialmente da tuberculose) com os problemas fundamentais da nação, quais sejam o seu desenvolvimento economico e o seu progresso social pela melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras e o seu amparo através do aperfeiçoamento da legislação social, e que somente seria conseguido por meio de outras diretrizes politicas do governo da nação, que não as trilhadas até então.
Por isso, não cessou ele de verberar contra a orientação dos governantes, que nunca haviam estado à altura das reais necessidades do povo. Assim é que, em 1943, já no fim de sua existencia, comentava ele num discurso proferido na epoca: "Nossa situação de displicencia, de conformismo passivo, é inexplicavel, mormente após tão longo periodo de estudos, investigações e debates nos Congressos e Associações cientificas, e depois de formulados os termos do empolgante problema, que espera ansiosamente do espirito de decisão, da energia realizadora dos que presidem aos destinos do país, sua solução completa e definitiva. O adiamento majora as dificuldades da nossa situação". E, adiante, lamentava: "O que tem sido oficialmente realizado na União e nos Estados é, ainda infelizmente, insufucientissimo. Faz-se imperioso providenciar mais largamente e com menos morosidade".
Foi Clemente Ferreira, pela grandiosidade de sua obra, sem duvida um desses homens excepcionais voltados para o bem-estar do proximo e um cientista emerito que soube colocar os seus conhecimentos e a sua ação a serviço de uma causa que lhe deu um lugar dos mais destacados na galeria dos maiores vultos da luta pelo nosso engrandecimento.
A sua morte foi dessas que o povo sente como a de um dos seus amigos mais ternos, pois todos reconheciam nele, acima de tudo, um coração aberto a sentir todos os sofrimentos alheios e um espirito combativo disposto a lutar com sua inteligencia e saber pela sorte da humanidade.


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