Sérgio Buarque de Holanda
Há
três anos passados, falecia Clemente Ferreira, justamente
considerado o "Patriarca da Tisiologia Brasileira",
mestre incontestavel que todos aprenderam a venerar, procurando
nunca esquecer suas magnificas lições e cidadão
emerito que deixou, no seio do povo, uma legião enorme
de beneficiados com a sua obra grandiosa, tornando-se credor do
mais profundo reconhecimento da patria, à qual prestou
os seus melhores serviços.
Clemente Ferreira nasceu na cidade fluminense de Resende, em 1857,
sendo filho de lavradores portugueses, que no arduo trabalho da
gleba, vieram aqui encontrar oportunidade para prosperar, radicando-se
definitivamente ao nosso meio.
E, depois de formado, é para Resende mesmo que o jovem
medico volta a fim de exercer sua profissão, atirando-se
à vida fatigante de clinico da roça, ganhando dez
mil réis por legua e quatro mil réis por consulta.
Durante cinco anos de sacrificio, dedicou-se ele, assim, com energia
incomparavel a este arduo trabalho, sempre estudando e colaborando
em diversas revistas medicas européias. Daí ter
sido ele, na epoca, surpreendido com o titulo de membro correspondente
da Sociedade de Terapeutica de Paris.
Os horizontes do medico da roça abrem-se, dia a dia, e
ei-lo, em 1887, partindo para o Rio de Janeiro, onde vai abrir
consultorio. Ali, procura o serviço de criança do
velho Moncorvo, na Policlinica Geral, e acaba por dirigir o mesmo
durante seis anos, e, apesar de clinicar como especialista em
molestias pulmonares, no seu consultorio particular, interessa-se
vivamente pelos problemas de puericultura, pouco estudados até
então. Em 1893, publica ele no "Bulletin de Therapeutique",
o seu primeiro estudo sobre a tuberculose infantil. E logo, tambem,
a Academia Nacional lhe confere o titulo de membro titular.
Ainda em pleno Imperio, a febre amarela grassa em São Paulo
e, em Campinas, ela flagela terrivelmente sua população
desprovida de recursos. O governo apela para a abnegação
dos medicos, e Clemente, embora um republicano de boa tempera,
para lá parte como voluntario, enfrentando uma luta titanica
contra a morte, em defesa daquela gente do povo que tombava vitimada
pela molestia implacavel.
Passada a tormenta, regressa ele ao Rio, ao convivio dos seus
e sempre disposto a novas lutas, voltando a dedicar-se ao estudo
e tratamento da tuberculose.
Logo mais, é ele chamado a São Paulo, onde é
feito inspetor sanitario, empenhando-se, agora, na luta contra
os remanescentes da febre amarela, que ainda assolava o interior
do nosso Estado.
Clemente Ferreira, no entanto, sentia que a tuberculose era a
doença social que mais vitimas fazia em nosso meio, prejudicando
seriamente as energia vivas da nação. E, a 17 de
julho de 1899, funda a "Associação Paulista
de Sanatorios Populares para Tuberculosos", que depois, passou
a chamar-se "Liga Paulista Contra Tuberculose", entidade
esta que dirigiu até o fim de sua vida laboriosa e incansavel,
deixando um exemplo significante de trabalho e dedicação
às gerações medicas que se sucederam.
O seu discurso pronunciado na sessão magna de aniversario
da Academia Nacional de Medicina, em 1892, como orador oficial,
foi um verdadeiro libelo contra os erros dos governantes na sua
indiferença quase que absoluta aos problemas da medicina.
E, a certa altura, diz com firmeza: "Senhores, eu confio
que agora, que dirige os destinos da nação um governo
serio, honesto e moralizador, ele deixará a senda até
aqui trilhada pelos seus predecessores, para enveredar pela estrada
larga da justiça ao verdadeiro merito, onde quer que a
modestia o isole, do auxilio indispensavel, da animação
fecundadora ao trabalhador desinteressado e consciencioso".
Mas, infelizmente, essa confiança do grande tisiologo nos
futuros governantes se esborou completamente, pois até
o fim de sua vida, nunca mais ele calou sua voz de protesto contra
a falta de apoio que sempre os dirigentes da nação
emprestaram aos problemas da saude do povo e notadamente à
campanha por ele liderada da luta contra a tuberculose em nosso
país.
Já em 1904, em conferencia realizada no Clube Piracicabano,
afirmava ele: "Lutar contra a tuberculose é trabalhar
pelo engrandecimento da patria". E salientava o fato de que
pouco valeriam as medidas curativas, se, ao seu lado, não
fossem adotadas medidas profilaticas na luta contra a peste branca,
que vitimava, em todo o mundo, cerca de 6.824.801 pessoas, por
ano, em nossa terra, aproximadamente 59.000 existencias, escolhendo
esse flagelo atroz, como dizia ele, "de preferencia as suas
vitimas na idade de maior capacidade produtiva, de trinta a quarenta
anos, quando o capital humano mais rende, como fator de trabalho,
como fonte de produção".
E, ao lado das medidas profilaticas, colocava ele como indispensaveis
a melhoria das condições de alimentação
e habitação do pobre, do homem do trabalho, das
unidades produtoras.
"Domiciliamento higienico, vivenda humana e barata para o
proletariado, alimentação suficiente em qualidade
e quantidade e ao alcance de todos os que dispõem de poucos
recursos ou incertos ganhos apenas, abono às familias necessitadas,
em uma palavra - melhoria do padrão de vida em suas varias
faces, sem olvidar a educação sanitaria do doente
e dos que com ele convivem, só praticamente possivel e
alcançavel em futuro ainda remoto... eis o que importa
mais que tudo para que a luta contra a endemia feroz se torne
eficiente e vitoriosa" (v. Relatorio da Liga Paulista Contra
a Tuberculose apresentado à Assembléia Geral Anual
correspondente ao exercicio de 1939, pag. 14).
E, já em seu relatório apresentado em 1941, chamava
a atenção para a questão dos salarios das
classes trabalhadoras, como responsavel imediato pela situação
da saude das mesmas. E dizia: "Trata-se, pois, sem o mais
leve exagero, de ordenados de salarios de fome, e isto em quase
50% dos casos. Tal situação economica, tão
baixo padrão de vida, explicam de sobejo a morbidade geral
e a tuberculização facil de semelhantes organismos,
que vegetam e se arruinam nas mais precarias condições"
(v. relatorio cit., pg 11).
Referindo-se ao problema da habitação, já
dizia ele: "O problema da habitação economica,
da vivenda proletaria, remonta a datas remotas, e sua solução
impoz-se às cogitações dos governos e coletividades,
desde o inicio da industrialização em varios paises
da Europa". E, depois de falar sobre as casas de comodos,
cortiços, porões e mocambos, acrescentava Clemente
Ferreira: "É, pois, logico o incremento da morbidade
e da mortalidade nessas pocilgas, onde se cultivam todos os germes
morbidos e se estiolam legiões de organismos - presa facil
da tuberculose - a doença da miseria e da má habitação"
(v. Estudo e Conferencias (1939-1943), pg. 74).
Estudou ele o problema da alimentação e subnutrição
de nossas populações urbanas e rurais, chegando
à conclusão de que, a continuar esse estado cronico
de subalimentação das camadas pobres da população
brasileira, pouco ou quase nada se poderia fazer no terreno da
tuberculose.
Por fim, afirmou que "o problema da tuberculose é
um problema medico e em mais alto grau social", e, mais,
que é preciso modificar o meio social no qual prospera
a endemia, sendo certo que "como problema 1/3 medico e 2/3
social, a peste branca necessita de uma profilaxia e de uma terapeutica
sociais".
Clemente não somente apontava os efeitos como tambem remontava
às causas verdadeiras da disseminação da
tuberculose. Dizia ele: "O aspecto social da tuberculose
e sua feição economica vão sendo objeto de
ponderadas preocupações, pois explicam, em muitos
casos, as diferenças profundas que se notam nos diversos
paises e em uma mesma nação, consoante as fases
economico-financeiras que atravessam, conforme agem fatores vinculados
a crises e depressões" (Relatorio apresentado à
Assembléia Geral Anual da Liga Paulista Contra a Tuberculose,
1939).
Ligava ele, pois, com uma admiravel compreensão de medico-sociologo,
os problemas de saude (e especialmente da tuberculose) com os
problemas fundamentais da nação, quais sejam o seu
desenvolvimento economico e o seu progresso social pela melhoria
das condições de vida das classes trabalhadoras
e o seu amparo através do aperfeiçoamento da legislação
social, e que somente seria conseguido por meio de outras diretrizes
politicas do governo da nação, que não as
trilhadas até então.
Por isso, não cessou ele de verberar contra a orientação
dos governantes, que nunca haviam estado à altura das reais
necessidades do povo. Assim é que, em 1943, já no
fim de sua existencia, comentava ele num discurso proferido na
epoca: "Nossa situação de displicencia, de
conformismo passivo, é inexplicavel, mormente após
tão longo periodo de estudos, investigações
e debates nos Congressos e Associações cientificas,
e depois de formulados os termos do empolgante problema, que espera
ansiosamente do espirito de decisão, da energia realizadora
dos que presidem aos destinos do país, sua solução
completa e definitiva. O adiamento majora as dificuldades da nossa
situação". E, adiante, lamentava: "O que
tem sido oficialmente realizado na União e nos Estados
é, ainda infelizmente, insufucientissimo. Faz-se imperioso
providenciar mais largamente e com menos morosidade".
Foi Clemente Ferreira, pela grandiosidade de sua obra, sem duvida
um desses homens excepcionais voltados para o bem-estar do proximo
e um cientista emerito que soube colocar os seus conhecimentos
e a sua ação a serviço de uma causa que lhe
deu um lugar dos mais destacados na galeria dos maiores vultos
da luta pelo nosso engrandecimento.
A sua morte foi dessas que o povo sente como a de um dos seus
amigos mais ternos, pois todos reconheciam nele, acima de tudo,
um coração aberto a sentir todos os sofrimentos
alheios e um espirito combativo disposto a lutar com sua inteligencia
e saber pela sorte da humanidade.