INTRODUÇÃO À DEMOCRACIA

Publicado na Folha da Manhã, terça-feira, 18 de setembro de 1951

Sérgio Buarque de Holanda

Por circunstancias puramente fortuitas, tive ocasião, em maio de 1949, de fazer parte de um comitê internacional convocado para exame, esclarecimento e sintese dos diferentes significados atribuidos à palavra "democracia". A reunião efetuou-se em Paris e representou a segunda etapa de um amplo inquerito promovido pela UNESCO entre especialistas do mundo inteiro.
A primeira etapa tinha sido constituida de um questionario largamente distribuido, cujas respostas deveriam fornecer a maior variedade possivel de pontos de vista acerca de um conceito de natureza variavel e capaz de assumir aspectos diversos ou mesmo contrastantes. Foi sobre essas respostas que tiveram de trabalhar os oito componentes de nosso comitê.
Entre os inumeros textos que deveriam formar a base dos debates apareceu um unico autor brasileiro: o mesmo que com o titulo de "Por Uma Definição da Democracia" forma o nucleo do livro publicado agora pelo sr. Wilson Martins, de Curitiba: "Introdução à Democracia Brasileira" (Editora Globo, Porto Alegre, 1951). Ninguem mais no Brasil (e muito poucos, em verdade, no restante desta America chamada latina - creio que somente o historiador mexicano Silvio Zavala e o filosofo argentino Francisco Romero) se dignou atender aos apelos formulados pela direção da UNESCO.
Por mais de um motivo, e sobretudo em face desse abstencionismo generalizado entre nossos estudiosos, abstencionismo que vi reiterar-se alguns meses mais tarde, quando me foi dado participar de outras duas reuniões de natureza semelhante, o texto do sr. Wilson Martins adquire um relevo singular.
Contudo, o significado especial desta contribuição não me parece que resida no fato de se tratar de opinião brasileira, capaz de espelhar convicções correntes entre nós, porventura mais correntes do que em outros paises. A verdade é que, mesmo no Brasil, as definições unicamente politicas de democracia já passaram um pouco de moda ou, ao menos, já não se fazem escutar com demasiada frequencia. E na definição que nos encaminhara o escritor paranaense é a inflexão política, no sentido mais estrito, o que domina sem contraste.
A primeira pergunta, e fundamental, no questionario, refere-se à ambiguidade que entraria aparentemente no termo "democracia". É licito admitir que exista efetivamente semelhante ambiguidade? Depois desse, outro problema de ordem geral se apresentava: o que se refere às relações entre a democracia de "forma", conceito exclusivamente político e democracia "real", conceito social e político "latu sensu".
Este ultimo, que ocupou largamente a atenção da maioria dos especialistas consultados, parece ao sr. Wilson Martins o efeito de uma falsa colocação do problema politico. Partindo dessa distinção o autor passa a examinar, em outros estudos do volume, que não faziam parte do trabalho mandado à UNESCO, as aplicações de seu ponto de vista ao Brasil, acreditando poder contribuir, assim, para a instauração entre nós de um verdadeiro regime democratico. E finalmente apresenta-nos, a titulo de curiosidade, o esboço do que seria uma constituição de onde tivesse sido eliminado tudo quanto não é materia propriamente constitucional, mas onde se garantisse ao mesmo tempo a centralização politica e a descentralização administrativa.
Não tratarei destas ultimas partes, que nos levariam muito alem do que o permitirem as dimensões normais de uma simples cronica. Só a primeira, aliás, que se relaciona com a delimitação e por conseguinte com o maior esclarecimento do conceito de democracia, já oferece materia para extensão comentario.
Confesso, antes de tudo, que não consigo ver tão nitidamente quanto o sr. Wilson Martins a linha de separação que existiria entre a democracia como filosofia de vida e como sistema politico. Parece-me, ao contrario, que os sistemas politicos, queiram ou não, nos remetem inevitavelmente a alguma concepção do mundo ou, nas palavras do autor, a uma filosofia de vida. Mas não é preciso certamente que esta se distinga pelo seu carater rigorosamente sistematico e perfeitamente coerente. Da propria noção moderna de democracia, que deita raizes nas especulações proprias da "Era das Luzes", cabe dizer que se mostrou capaz de sobreviver à filosofia dos "filosofos" setecentistas.
Tentando ignorar essa especie de condicionamento da democracia estritamente política, o sr. Wilson Martins foi levado, em seu ensaio, a pôr de parte todos os aspectos que considera puramente tecnicos e mais administrativos do que politicos.
É caracteristico que, ao discutir a famosa declaração de Lincoln em Gettysburg ("Governo do povo, pelo povo, para o povo") ele só vê nela, coerente com seu ponto de vista, duas proposições essenciais ao regime democratico. A democracia será, nesse caso, um governo do povo pelo povo, "mas não possui o privilegio de ser um governo para o povo, se a preposição para indica o valor de decisões tomadas para o bem-estar geral da coletividade. Porque tais decisões tomadas não são carater politico, mas de natureza administrativa, não são de ordem doutrinaria, mas de ordem tecnica".
Ora, a preposição para não é essencial apenas à noção de democracia; em verdade nenhum governo digno desse nome pode existir ou substituir sem que inclua entre suas atribuições essenciais a de promover o bem publico. Isso mesmo exprimiu admiravelmente o professor Richard McKeon, relator de nosso comitê, sobretudo onde respondeu a certas interpretações de Bertrand Russel. "Os anglosaxões" - dissera o filosofo britanico - "definem democracia como o reinado da maioria; os russos definem-na como o interesse da maioria, interesse este determinado conforme a filosofia politica marxista". Há aqui uma tentativa de separação entre governo pelo povo e governo do povo. A diferença entre as concepções "ocidental" e sovietica há de ser procurada, notou-o McKeon, nas diferenças de interpretação do pelo e do para, não apenas na enfase relativa atribuida a um ou outro. Aliás o proprio Lenin reconhecera que o estabelecimento, por conseguinte o desaparecimento, da democracia depende do governo pelo povo.
É curioso notar que, em sua bela contribuição, o colaborador brasileiro no inquerito não deixa de reconhecer, e reconhece-o expressamente, à pagina 27 deste seu livro, que "todos os sistemas de governo existem para o provo". Todos, por conseguinte tambem os sistemas democraticos. Mas logo a seguir pergunta: "Como, pois, distinguir a democracia pelo mesmo carater que distingue tambem os sistemas totalitarios?" Raciocinio muito semelhante, creio eu, ao de quem, tendo afirmado que vermelho é uma cor se sinta obrigado a negar que o azul tambem o seja. Pois como podem duas coisas tão claramente diversas apresentar entre si qualquer traço comum?
O engano do sr. Wilson Martins neste passo consiste em que amarrou fortemente a idéia do governo para o povo às teorias modernas de planificação economica ou, ainda mais, às apologias do Estado onipotente, e não conseguiu desatá-las no curso da sua argumentação. A tanto levou-o o justo afã de encontrar uma salvaguarda contra os efeitos catastroficos daquelas apologias. Poderia evitar, no entanto, a generalização se considerasse que a proposição "governo para o povo" é inseparavel de resto da formula de Gettysberg. Os governos feitos apenas para o povo, erigidos em juizes exclusivamente - se assim se pode dizer - à custa de mecanismos de propaganda tão poderosos que abafam toda voz contrastante e, ao cabo, só deixam ouvir a ressonancia de sua mesma linguagem. Não é outra coisa, aliás, o que fazem os regimes totalitarios, ainda quando pretendem o contrario.
P. S. No artigo que o sr. Eurialo Canabrava dedicou domingo ultimo ao sugestivo tema "Poesia e Linguagem" há um grave engano que me diz respeito, e que me apresso em vir retificar. A tese de que o critico deve aceitar literalmente a linguagem da poesia, desdenhando qualquer criterio estetico, não é minha, conforme dá a entender o ilustre articulista, mas resultou sem duvida de interpretação arbitraria e não justificada pelos textos que ele combate. O que tentei dizer e disse talvez, com alguma clareza foi que apresentar o idioma da poesia como sistematicamente ambiguo equivale a simplificar demasiado o problema: simplificar às vezes em favor da critica e da ciencia, se isso é possivel, não em favor da poesia. Disse mais que o significado, ambiguo ou não, é um dos elementos constitutivos da linguagem poetica e como tal há de ser considerado, embora qualquer tentativa de separá-lo e realçá-lo sobre os outros elementos encerre quase sempre o risco de falsear toda analise critica.
Em uma das suas notas o articulista verifica tambem que a referencia a "erisipela gangrenosa" não existe em Virgilio, "como faz constar o sr. Sergio Buarque de Holanda", e que semelhante interpretação seria "arbitraria e não justificada pelo texto". Neste caso, pelo texto de Virgilio. Então, creio eu, seria talvez util encontrar o nome apropriado para a peste descrita no livro III das "Georgicas", onde se narram os efeitos da gangrena sobre os corpos dos animais. Se acolhi neste ponto uma explicação oferecida por comentadores autorizados é que não sei de melhor; contudo estarei sempre disposto a acolher alguma outra mais sabia. As ambiguidades ou dificuldades de interpretação que aquele trecho nos oferece hoje não existiriam com toda certeza para os contemporaneos do Mantuano. E é importante frisar isso antes de falar nas ambiguidades de um poeta que, confessadamente, escreveu sem elas.
Estou ouvindo neste passo aquela reprimenda energica de meu amigo Canabrava: "Na verdade o tema das "Georgicas" não interessa". Penso, muito ao contrario, que tudo interessa para a boa inteligencia, já não digo para a boa analise, do poema. E que sem conhecer a trivialidade dos fatos narrados, em seus aspectos aparentemente mais insignificantes num poema que se preza de ser realista e descritivo, dificilmente poderemos apreender a transfiguração poetica de tais fatos.
Esse pensamento eu seria mesmo capaz de proclamar com a mesma impetuosidade que revela, particularmente neste seu ultimo artigo, o meu prezado filosofo, se não me sentisse um tanto indocil ao imperativo das conclusões dogmaticas e terminantes. No entanto, não quero negar minha admiração pelo vigor peremptorio e a bem dizer irrespondivel (sob pena de morte) de quem legisla que "o critico nada tem a ver com...", "ele deve ater-se a", mas o julgamento critico deve basear-se ....", etc., etc.


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