Sérgio Buarque de Holanda
A
proposito de algumas observações, nem sempre irrestritamente
favoraveis, que se publicaram aqui mesmo sobre o Primeiro Congresso
Brasileiro de Filosofia, já tive ocasião de apreciar
os comentarios que lhes dedicou um dos expoentes mais ilustres
daquela reunião.
Partindo de uma atitude naturalmente avessa a toda metafisica
e adepto alem disso de metodos que visam fundar o pensamento filosofico
e cientifico sobre uma rigorosa analise logica, o sr. Eurialo
Canabrava representa, sem duvida, uma corrente das mais ponderaveis
na moderna filosofia critica.
Sua adesão a essa corrente implicou numa renuncia, talvez
penosa, a velhos credos, que o tinham apartado da luta contra
os idolos falazes e as mal fundadas devoções. E
no fervor às vezes um tanto virulento com que hoje se apega
àqueles metodos entra talvez, uma dose de irritação
compreensivel em quem se distraira longamente em devaneios inuteis
e precisa recuperar o tempo perdido. Aquiles teria sido menos
impetuoso do que o foi, na sua arremetida final contra os divinos
troianos, domadores de eguas, sem aquela teimosa e surda ociosidade
que o retivera nas barracas dos mirmidões. Assim, acontece
com demasiada frequencia que algumas das nossas mais denodadas
convicções não passam, no fundo, de combates
interiores, e cuidando investir contra erros alheios é
contra nós mesmos, contra nossas ilusões perdidas,
jamais inteiramente perdidas, que de fato vamos pelejando.
Deve-se dizer dessa cordialidade que aproxima hoje o sr. Canabrava
dos imperativos da indagação e fundamentação
logica, que não constituiu das notas dominantes na memoravel
assembléia de filosofos que se reuniu em São Paulo.
E se em certos casos isso se deveu a uma insuficiencia propria
de muitos daqueles filosofos à "imaturidade alarmante"
que julguei vislumbrar nas suas teses, em outros - creio que na
maioria - proveio sem duvida das proprias doutrinas professadas
por eles, doutrinas essas que não situam o rigor logico
à base das suas construções.
É o caso, talvez, de blondelismo, o credo perfilhado por
um dos meus antagonistas e "defensores" do Congresso.
Sabe-se que, segundo esse credo, a Ação é,
em suma, inseparavel do Pensamento: conceber é ter agido,
é agir ainda, é dever agir para o futuro. Mas a
solução da antinomia aparente entre o pensar e o
agir supõe sempre um salto mortal, quando muito um esforço
de sintese que não tende facilmente a satisfazer os partidarios
de um raciocinio logico muito rigoroso. Para Blondel esse raciocinio
é comparavel ao labor do sabio que disseca os orgãos,
que analisa os tecidos e que descreve a anatomia do esqueleto,
mas não dá o passo necessario para compreender as
funções vitais e espirituais. É que sua filosofia,
antes e acima de tudo, é uma filosofia da transcendencia.
Não me parece o papel de critico que aspire a uma imparcialidade
talvez irrealizavel, pronunciar-se por esta ou aquela entre as
doutrinas em debate. Se tentei oferecer reservas à tese
de um dos filosofos que se confessa adepto do blondelismo, não
foi por amor ou rancor a esta doutrina, mas porque, secularizando-se
como quem não quer, a tese em questão exprimiu com
nitidez admiravel um genero de pensamento que, embora bastante
frequente entre nós, aparece quase sempre dissimulado nos
escritos de autores menos ardentes ou mais ardilosos. Miope por
natureza, só me aparcebo de tais esquivanças onde
elas são muito grossas ou pouco sutis. Aqui foi contra
a falsificação inconsciente, e entretanto sintomatica,
de uma doutrina, não foi contra a mesma doutrina, que ousei
endereçar algumas objeções.
Nunca a falsidade me pareceu mais gritante, com efeito, do que
onde li que um filosofo, num congresso de filosofos, procurou
defender semelhante doutrina com a simples alegação
de que ela "convem" ao Brasil. Sempre me parecera evidente
que a finalidade propria da filosofia está no conhecimento
da verdade e que a verdade, nesse caso, não se mede pela
sua serventia. E uma "filosofia" apenas prestativa,
não vejo como possa estar à altura desse nome.
Isto não quer dizer, como leva a supor o sr. Alcantara
Silveira, no artigo do suplemento de "A Manhã"
onde responde brilhantemente às minhas contestações,
que eu prefira a todos os outros os "objetos de estudos sem
qualquer finalidade, jogos de espirito sem nenhuma repercussão
na vida espiritual do homem, etc., etc.". Pois foi, ao contrario,
pelo apego a assuntos mais rasteiros que, embora "convidado
a nele tomar parte", conforme observou, deixei de comparecer
ao Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia. Por isso e ainda
porque me sinto incompetente para os altos debates que se haveriam
de esperar em uma tal assembléia.
No entanto, alimento ainda suficiente respeito pela filosofia
digna desse nome, e mesmo pela filosofia de Maurice Blondel para
tentar defendê-la contra o que me parecem suas deturpações,
involuntarias ou não. Bem sei que, desde os sofistas e
antes deles, sempre houve partidarios de verdades mais ou menos
politicas e misticas, e que há ainda hoje os adeptos de
verdades historicas, geograficas, raciais ou nacionais, boas para
determinada epoca, eficazes para determinado regime, adequadas
para este ou aquele povo.
Sei tambem, por outro lado, que Blondel não pertence e
não quer pertencer a esses. Ele declarou, como lembra o
sr. A. S., que aspirava a uma filosofia "de plein air",
mas acrescentou, imediatamente em seguida, "que possa ser
tão respiravel no seculo vinte e cinco como o teria sido
no segundo ou no decimo-segundo, e que só espera encontrar
o atual depois de procurar o eterno, sempre oportuno, mesmo ou
sobretudo quando pareça inatual".
Cita ainda o autor um longo trecho do "Itinerario Filosofico",
onde, falando a Frederico Lefevre, o filosofo procurava sugerir
como as suas teses, inteiramente especulativas na aparencia têm,
no entanto, um interesse imediato, decisivo, constitutivo para
diferentes atividades, inclusive para a cooperação
internacional. Essas e outras palavras aparecem, com efeito, à
pagina 272 do "Itinerario", mas não vejo como
autorizem a interpretação que lhes quer dar seu
interprete brasileiro.
É normal que um filosofo, por mais avesso ao seculo e ao
mundo (e não é precisamente o caso de Blondel),
seja sensivel às repercussões de suas idéias
para alem do dominio puramente especulativo. E as palavras citadas
respondem aqui em realidade a certo receio expresso por Lefèvre,
onde pergunta se o filosofo francês não se interessaria
pelas consequencias praticas das suas idéias. Pergunta
essa relacionada, por sua vez às palavras de Blonddel,
onde dizia, citando Spinoza que a propria verdade e só
ela é luz e norma da verdade. A idéia-mestra de
sua doutrina ele a exprime dizendo que tudo parece produzir-se
de baixo para cima, quando o contrario é que se dá
em realidade. Nada, a seu ver, seria congnoscivel, nem real, se
todas as coisas não fossem atraidas a uma assunção.
Pode-se lembrar ainda como Blondel justifica sua repulsa a William
James, dizendo que este não entrevira que o segredo do
destino dos homens é inaccessivel através de um
inquerito "nas coisas do tempo e do espaço".
E como critica em Bergson certa idéia da inteligencia e
da ação que nos orienta para uma especie de "temperalismo
espiritual e naturista ao mesmo tempo", assim como o fato
de não desaprovar as interpretações dadas
por Georges Sorel de uma filosofia onde, finalmente, nem todos
vêem o evangelho da "ação direta".
E assim, ao futurismo bergsoniano quer opor o que chama seu eternismo.
Mas esse mesmo eternismo irá dissipar-se sem remedio nas
mãos daqueles que nele vislumbram apenas o que proporcionaria
de conveniente e prestimoso. E uma filosofia onde se acentua expressamente
o carater "transnatural" do nosso destino vê-se
convertida, assim, em uma especie de milicia.
É significativo, alem disso, que, não tendo encontrado,
numa das obras de Blondel que eu invocara nenhuma condenação
expressa às filosofias convenientes, meu critico acrescenta
textualmente: "mesmo que Blondel houvesse dito algo a respeito,
pouco valeria essa opinião, expressa num livrinho escrito
sob encomenda, quando a sua filosofia é um desmentido a
essa afirmação". Por onde se vê como
a especie de milicia tambem pode converter-se em uma especie de
mercancia.