Sérgio Buarque de Holanda
Não creio que entre as menores atribuições
de um comentador de livros e de idéias figure a de mostrar
o interesse amplo de certas obras endereçadas, na aparencia,
a reduzidos circulos de especialistas e a estes somente, mas que,
não obstante, parecem dignas de maior repercussão.
De um livro, por exemplo, cuja publicação recente
há de permanecer entre as iniciativas benemeritas do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatistica, e que se encontra, por
muitos aspectos, nesse caso, tenho a convicção de
que constitui das mais notaveis contribuições que
se poderiam desejar para o progresso dos estudos brasileiros.
E tambem a de que, não fosse seu titulo, talvez pouco sugestivo
para muita gente e capaz de iludir sobre o alcance do conteudo,
já teria recebido a atenção que sem duvida
merece.
A verdade é que o estudo de Ernst Wagemann sobre a "Colonização
Alemã no Espirito Santo" (trad. De Reginaldo Santana.
Ed. do Boletim do I. B. G. E., Rio de Janeiro, 1949), só
agora posto ao alcance do grande publico brasileiro, embora publicado,
primeiramente, há trinta e cinco anos, quando seu autor
ainda não alcançara a projeção intelectual
que viria a obter depois, está longe de dirigir-se apenas
àqueles especialistas ou tecnicos.
Para iluminar toda uma serie de problemas que, dada sua reiteração,
às vezes obsessiva, nos quais variados escritos de nossos
sociologos, historiadores, geografos, antropologos, pode-se dizer
que não pertencem, entre nós, a nenhuma dessas especialidades
tomadas de per si, mas se converteram em patrimonio comum a todas
elas e, de certo modo, a todos os estudos que vizem à melhor
inteligencia dos nossos rumos e destinos nacionais, as observações
de Wagemann proporcionam elementos que já agora não
poderão ser facilmente desdenhados.
Num país que, como o nosso, se situa, na sua maior extensão
em zonas calidas, que futuro está reservado à civilização
ocidental, de cuja herança nos orgulhamos e cujos valores
desejamos preservar? E ainda: em que grau os povos de raça
branca, portadores tradicionais daquela civilização,
seriam compativeis com nosso meio fisico e com as condições
de vida que esse meio favorece? Até onde, finalmente, as
formas de vida importadas de terras frias ou temperadas lograrão
subsistir entre nós sem mudança ou, como querem
outros, sem degenerescencia?
As observações feitas por Ernst Wagemann referem-se,
é certo, a uma area extremamente limitada de nosso territorio
e às perspectivas de acomodação a essa area
de um unico povo europeu. Mas quando se considere que precisamente
os representantes desse povo passam, não raro, por ser
dos mais teimosamente aferrados à lembrança de sua
terra de origem, ao longo de gerações sucessivas,
e dos menos compativeis - como coletividade e raça, se
não como individuos - a climas estranhos; quando se sabe,
por outro lado, que o Espirito Santo, assim como a parte mais
consideravel do territorio brasileiro se insere geograficamente
na zona tropical, então certas observações
que à primeira vista parecem padecer de uma limitação
exclusivista, tomam carater exemplar e tipico. Por esse aspecto,
o caso das populações européia, sobretudo
germanica, instaladas há mais de um seculo nas terras espiritosantenses,
pode ultrapassar em interesse, dado o proprio contraste das situações
que naturalmente encerra, o das colonias que se localizam em nossos
Estados sulinos, onde o imigrante veio encontrar um clima subtropical
ou temperado, que não desafia violentamente sua capacidade
de adaptação.
Entretanto, ao passo que o caso do sul, especialmente o do Rio
Grande do Sul, já suscitou uma literatura numerosa e respeitavel,
que envolve desde os estudos historicos, como os de um Aurelio
Porto, até às investigações sociologicas
mais modernas e complexas, como as do sr. Emilio Williams - para
só me referir à bibliografia brasileira e em lingua
portuguesa - o do Espirito Santo permanece virtualmente ignorado
e esquecido. Nem o fato de já ter inspirado uma das obras
classicas de nossa prosa de ficção - o "Canaan"
de Graça Aranha - serviu até aqui de poderoso estimulo
contra esse desconhecimento.
Mas não foi apenas entre brasileiros que o caso daquelas
dezenas de milhares de colonos germanicos insulados há
algumas gerações entre nossas montanhas e florestas,
nas bordas da zona torrida, e que às vesperas da guerra
de 14 equivaliam numericamente, segundo Wagemann, aos de todas
as então possessões alemãs reunidas, pôde
provocar grande curiosidade cientifica. É significativo,
por exemplo, que em inquerito tão pormenorizado sobre o
colono europeu nos tropicos, como o que realizou Grenfell Price,
e que a "American Geographical Society" de Nova York
fez imprimir em 1939, não se faz sequer menção
da existencia dessa verdadeira ilha germanica situada em nossas
latitudes tropicais, embora todo um extenso capitulo seja dedicado
aos colonos brancos na America do Sul (e na Costa Rica). A quem
pretenda conhecer esse problema e não possa investigá-lo
"in loco", só cabe o recurso de estudá-lo
em obras de alguns especialistas ou viajantes alemães.
Nesta de Wagemann, em particular, que acaba de ser traduzida.
Ou na de G. Giemsa e E. G. Nauck, sobre os resultados de uma expedição
efetuada em 1935 por incumbencia do Instituto Tropical de Hamburgo
e cuja tradução nos é prometida. Ou nas extensas
e valiosas observações de Otto Maull em seu livro
monumental sobre o Brasil: "Vom Itatiays zum Paraguay".
Já não me refiro a relator de Lamberg, que tendo
percorrido terras capichabas na segunda metade do seculo passado,
puderam colher preciosos dados sobre aquelas colonias durante
a fase inicial de seu desenvolvimento.
Em muitos casos, as observações feitas por esses
pesquisadores obedecem à inspiração de doutrinas
raciais e mesmo de ideologias nascionalistas fundadas em tais
doutrinas, o que só por curiosa extravagancia puderam oferecer
atrativos a certos estudiosos brasileiros. Quando um Nauck, por
exemplo, chega a invocar, em 1938, os fundamentos doutrinarios
do nacional-socialismo em favor da preservação em
sua integridade da pureza racial e cultural dos 40.000 alemães
ou teuto-brasileiros estabelecidos entre as florestas capichabas,
não vejo como seu ponto de vista tenha precisamente por
onde nos encantar. Mas tambem não creio que, tomadas em
bloco, as conclusões obtidas nesse caso, e em outros, possam
ser fortemente prejudicadas pelo seu colorido racista. Em certo
sentido acredito mesmo que a presença de atitudes semelhantes
deva ser, ao contrario, um incentivo para que procuremos conhecê-las.
No caso do livro de Wagemann, publicado, aliás, muito antes
do surto hutlerista na Alemanha, parece-me que o ponto fraco da
recente versão portuguesa, por outros aspectos de tamanha
fidelidade, está no empenho do tradutor em limar certas
arestas e velar as asperezas de um texto capaz em mais de um caso,
de ferir suscetibilidades do leitor brasileiro. Quando, por exemplo,
no original, se diz das raparigas de ascendencia teutonica (à
pagina 114), que nada adquiririam da graça languida e da
elegancia das luso-brasileiras, o que atribui à circunstancia
de não se entregarem, como estas, a um constante "farniente"
(Nichstum), a tradução suprime o texto talvez desabonador
para as brasileiras. Pouco adiante, onde o alemão declara
que no clima das baixadas, alguns colonos tendem a degenerar e
"abrasileirar-se" (verbrasilianen) o texto do sr. Santana,
diz "acaboclar-se". E onde Wagemann, à pagina
141 do original, escreve que, em sintese, "o camponio alemão
das matas do Espirito Santo surge aos nossos olhos como uma imagem
de robustez, em meio de uma gente depauperada e degenerada"
(inmitten eines schwachlichen und entarteten Geschlechts), o brasileiro
deixa cair seu ponto final logo depois da palavra "robustez",
omitindo cuidadosamente o resto da frase.
Essas pequenas e injustificaveis traições de um
tradutor demasiado prudente, não chegam todavia a diminuir
a importancia de seu esforço e nem a prejudicar o significado
das observações que se compendiam na obra de Wagemann.
Em proximo artigo tentarei deter-me em algumas dessas observações.