CLIMA E RAÇA

Publicado na Folha da Manhã, terça-feira, 29 de agosto de 1950

Sérgio Buarque de Holanda

Não creio que entre as menores atribuições de um comentador de livros e de idéias figure a de mostrar o interesse amplo de certas obras endereçadas, na aparencia, a reduzidos circulos de especialistas e a estes somente, mas que, não obstante, parecem dignas de maior repercussão. De um livro, por exemplo, cuja publicação recente há de permanecer entre as iniciativas benemeritas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica, e que se encontra, por muitos aspectos, nesse caso, tenho a convicção de que constitui das mais notaveis contribuições que se poderiam desejar para o progresso dos estudos brasileiros. E tambem a de que, não fosse seu titulo, talvez pouco sugestivo para muita gente e capaz de iludir sobre o alcance do conteudo, já teria recebido a atenção que sem duvida merece.
A verdade é que o estudo de Ernst Wagemann sobre a "Colonização Alemã no Espirito Santo" (trad. De Reginaldo Santana. Ed. do Boletim do I. B. G. E., Rio de Janeiro, 1949), só agora posto ao alcance do grande publico brasileiro, embora publicado, primeiramente, há trinta e cinco anos, quando seu autor ainda não alcançara a projeção intelectual que viria a obter depois, está longe de dirigir-se apenas àqueles especialistas ou tecnicos.
Para iluminar toda uma serie de problemas que, dada sua reiteração, às vezes obsessiva, nos quais variados escritos de nossos sociologos, historiadores, geografos, antropologos, pode-se dizer que não pertencem, entre nós, a nenhuma dessas especialidades tomadas de per si, mas se converteram em patrimonio comum a todas elas e, de certo modo, a todos os estudos que vizem à melhor inteligencia dos nossos rumos e destinos nacionais, as observações de Wagemann proporcionam elementos que já agora não poderão ser facilmente desdenhados.
Num país que, como o nosso, se situa, na sua maior extensão em zonas calidas, que futuro está reservado à civilização ocidental, de cuja herança nos orgulhamos e cujos valores desejamos preservar? E ainda: em que grau os povos de raça branca, portadores tradicionais daquela civilização, seriam compativeis com nosso meio fisico e com as condições de vida que esse meio favorece? Até onde, finalmente, as formas de vida importadas de terras frias ou temperadas lograrão subsistir entre nós sem mudança ou, como querem outros, sem degenerescencia?
As observações feitas por Ernst Wagemann referem-se, é certo, a uma area extremamente limitada de nosso territorio e às perspectivas de acomodação a essa area de um unico povo europeu. Mas quando se considere que precisamente os representantes desse povo passam, não raro, por ser dos mais teimosamente aferrados à lembrança de sua terra de origem, ao longo de gerações sucessivas, e dos menos compativeis - como coletividade e raça, se não como individuos - a climas estranhos; quando se sabe, por outro lado, que o Espirito Santo, assim como a parte mais consideravel do territorio brasileiro se insere geograficamente na zona tropical, então certas observações que à primeira vista parecem padecer de uma limitação exclusivista, tomam carater exemplar e tipico. Por esse aspecto, o caso das populações européia, sobretudo germanica, instaladas há mais de um seculo nas terras espiritosantenses, pode ultrapassar em interesse, dado o proprio contraste das situações que naturalmente encerra, o das colonias que se localizam em nossos Estados sulinos, onde o imigrante veio encontrar um clima subtropical ou temperado, que não desafia violentamente sua capacidade de adaptação.
Entretanto, ao passo que o caso do sul, especialmente o do Rio Grande do Sul, já suscitou uma literatura numerosa e respeitavel, que envolve desde os estudos historicos, como os de um Aurelio Porto, até às investigações sociologicas mais modernas e complexas, como as do sr. Emilio Williams - para só me referir à bibliografia brasileira e em lingua portuguesa - o do Espirito Santo permanece virtualmente ignorado e esquecido. Nem o fato de já ter inspirado uma das obras classicas de nossa prosa de ficção - o "Canaan" de Graça Aranha - serviu até aqui de poderoso estimulo contra esse desconhecimento.
Mas não foi apenas entre brasileiros que o caso daquelas dezenas de milhares de colonos germanicos insulados há algumas gerações entre nossas montanhas e florestas, nas bordas da zona torrida, e que às vesperas da guerra de 14 equivaliam numericamente, segundo Wagemann, aos de todas as então possessões alemãs reunidas, pôde provocar grande curiosidade cientifica. É significativo, por exemplo, que em inquerito tão pormenorizado sobre o colono europeu nos tropicos, como o que realizou Grenfell Price, e que a "American Geographical Society" de Nova York fez imprimir em 1939, não se faz sequer menção da existencia dessa verdadeira ilha germanica situada em nossas latitudes tropicais, embora todo um extenso capitulo seja dedicado aos colonos brancos na America do Sul (e na Costa Rica). A quem pretenda conhecer esse problema e não possa investigá-lo "in loco", só cabe o recurso de estudá-lo em obras de alguns especialistas ou viajantes alemães. Nesta de Wagemann, em particular, que acaba de ser traduzida. Ou na de G. Giemsa e E. G. Nauck, sobre os resultados de uma expedição efetuada em 1935 por incumbencia do Instituto Tropical de Hamburgo e cuja tradução nos é prometida. Ou nas extensas e valiosas observações de Otto Maull em seu livro monumental sobre o Brasil: "Vom Itatiays zum Paraguay". Já não me refiro a relator de Lamberg, que tendo percorrido terras capichabas na segunda metade do seculo passado, puderam colher preciosos dados sobre aquelas colonias durante a fase inicial de seu desenvolvimento.
Em muitos casos, as observações feitas por esses pesquisadores obedecem à inspiração de doutrinas raciais e mesmo de ideologias nascionalistas fundadas em tais doutrinas, o que só por curiosa extravagancia puderam oferecer atrativos a certos estudiosos brasileiros. Quando um Nauck, por exemplo, chega a invocar, em 1938, os fundamentos doutrinarios do nacional-socialismo em favor da preservação em sua integridade da pureza racial e cultural dos 40.000 alemães ou teuto-brasileiros estabelecidos entre as florestas capichabas, não vejo como seu ponto de vista tenha precisamente por onde nos encantar. Mas tambem não creio que, tomadas em bloco, as conclusões obtidas nesse caso, e em outros, possam ser fortemente prejudicadas pelo seu colorido racista. Em certo sentido acredito mesmo que a presença de atitudes semelhantes deva ser, ao contrario, um incentivo para que procuremos conhecê-las.
No caso do livro de Wagemann, publicado, aliás, muito antes do surto hutlerista na Alemanha, parece-me que o ponto fraco da recente versão portuguesa, por outros aspectos de tamanha fidelidade, está no empenho do tradutor em limar certas arestas e velar as asperezas de um texto capaz em mais de um caso, de ferir suscetibilidades do leitor brasileiro. Quando, por exemplo, no original, se diz das raparigas de ascendencia teutonica (à pagina 114), que nada adquiririam da graça languida e da elegancia das luso-brasileiras, o que atribui à circunstancia de não se entregarem, como estas, a um constante "farniente" (Nichstum), a tradução suprime o texto talvez desabonador para as brasileiras. Pouco adiante, onde o alemão declara que no clima das baixadas, alguns colonos tendem a degenerar e "abrasileirar-se" (verbrasilianen) o texto do sr. Santana, diz "acaboclar-se". E onde Wagemann, à pagina 141 do original, escreve que, em sintese, "o camponio alemão das matas do Espirito Santo surge aos nossos olhos como uma imagem de robustez, em meio de uma gente depauperada e degenerada" (inmitten eines schwachlichen und entarteten Geschlechts), o brasileiro deixa cair seu ponto final logo depois da palavra "robustez", omitindo cuidadosamente o resto da frase.
Essas pequenas e injustificaveis traições de um tradutor demasiado prudente, não chegam todavia a diminuir a importancia de seu esforço e nem a prejudicar o significado das observações que se compendiam na obra de Wagemann. Em proximo artigo tentarei deter-me em algumas dessas observações.


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