Uma entrevista exclusiva em que o compositor fala sobre o historiador
Sérgio de Holanda
Da Redação
1992 é o ano Sérgio Buarque de Holanda. Em abril
passado, fez 10 anos que o historiador paulista morreu. No próximo
sábado, serão comemorados os 90 anos de seu nascimento.
Na entrevista a seguir, seu filho mais famoso, Chico Buarque de
Hollanda, dá um depoimento sobre o pai. A entrevista foi
feita para a Rádio USP-FM (93,7 MHz), que transmitirá
nos três próximos sábados (dias 11, 18 e 25),
às 19h05, uma série de depoimentos sobre Sérgio
Buarque. Entre os entrevistados pela emissora, figuram os professores
Antonio Candido e Florestan Fernandes. O depoimento de Chico,
que "Mais!" antecipa com exclusividade alguns trechos,
será transmitido na íntegra em um dos programas,
bem como o de Miúcha, filha do historiador.
Melquíades Cunha Júnior
Especial para a Folha
"Eu sempre tive uma admiração muito grande
por meu pai e falar sobre ele pode parecer meio cabotino",
diz Chico Buarque, sempre que instado a falar sobre Sérgio
Buarque de Holanda. A comemoração dos 90 anos de
nascimento do historiador, no entanto, talvez explique a exceção
aberta por Chico. A entrevista a seguir foi realizada em junho,
no Rio, e é a admiração, antes camuflada
até aos amigos mais íntimos, que transparece agora
de forma carinhosa, bem-humorada, o depoimento do compositor sobre
aquele que, na opinião de muitos, foi o maior historiador
brasileiro.
Pergunta
- Que lembranças você guarda da casa do seu pai,
da convivência familiar?
Resposta - No dia-a-dia era quase uma casa normal. Não
tão normal porque era muito agitada. Éramos sete
filhos, e os filhos e os amigos de cada filho faziam uma agitação
permanente. Mas meu pai ocupava um lugar à parte: tinha
o seu território meio sagrado, que era o seu escritório.
Quando se fala na casa do meu pai, as pessoas se lembram sempre
da casa da rua Buri. Nós moramos primeiro numa casa na
Haddock Lobo; depois fomos para a Itália, voltamos para
o Brasil e moramos numa casa menor, na rua Henrique Shaumann,
e finalmente na casa da rua Buri, no Pacaembu. Em todas essa casas
tinha esse recanto do meu pai, onde ele trabalhava. Ele vivia
a maior parte do tempo recolhido no escritório, cercado
de livros por todos os lados. Na rua Buri, eu me lembro bem, havia
uma janela que não se abria mais, devido aos livros que
entulhavam a sala. Esse era o nosso cotidiano.
Pergunta - Esse cotidiano era quebrado, também,
pelos amigos de seus pais?
Resposta - Eu me lembro, desde pequeno, de vê-los
na nossa casa, sempre à noite. As crianças saíam
e chegavam os amigos. Não todas as noites, mas com bastante
frequência. O engraçado é que mais tarde as
coisas começaram a se misturar na rua Buri. Nós
crescendo e nossos amigos também se tornando amigos do
papai. As gerações foram se misturando e os assuntos
também. A música sempre existiu lá em casa,
desde pequeno eu me lembro de meu pai, de minha mãe cantando.
Mas a música começou a ganhar uma importância
maior por causa da nossa geração e também
por causa do Vinicius de Moraes. Quando ele ia lá em casa,
todos os filhos se juntavam na sala. E vinham os amigos dos filhos,
os amigos do papai, para ouvir aquelas músicas.
Pergunta - Uma das coisas que mais caracterizava teu pai
era o senso de humor. E ele conseguiu passar isso para todos os
filhos. Seria uma herança genética esse humor que
sempre transparece em Chico?
Resposta - Não sei se a gente capta, ou se é
genético. É algo por aí. Às vezes
me surpreendo fazendo um tipo de humor que tem muito a ver com
ele.
Pergunta - Num espírito de imitação,
ou de admiração?
Resposta - Não, eu acho que isso foi passando assim,
geneticamente. É aquele humor que não é a
piada, é mais aquele humor do absurdo, de rir de coisas
sérias. Também no sentido de quebrar o gelo, essa
coisa de irreverência. Tudo o que se fala sobre o lado sério
do meu pai, do estudioso e tal, não bate com a lembrança
que me ficou dele.
Pergunta - Seu pai se relacionava com você de uma
maneira vertical, ou horizontal? Era muito presente nele o chamado
exercício do pátrio-poder?
Resposta - Não, não existia essa história
de pátrio poder. Era uma relação horizontal,
na medida em que ele saindo do escritório e conversando
com a gente, ficava tudo no mesmo nível, com brincadeiras
e tal... Mas não havia, pelo menos da minha parte, não
sei se em relação aos meus irmãos, esse temor,
essa distância... Ele ficava lá com o trabalho dele,
e quando mamãe o chamava para o jantar era uma dificuldade.
"Sérgio, Sérgio...", ela o chamava. E
ele descia lá pelo décimo "Sérgio".
E olha que ele gostava de comer, e o jantar lá esfriando.
Com certeza ele estava concluindo algum trabalho e não
queria largar. Mas quando descia, ele era outra coisa. Não
ficava falando do que estava fazendo lá em cima. Na verdade,
quando eu era criança não sabia o que meu pai fazia.
Só sei que ele trabalhava de janelas fechadas e porta aberta.
Eu não entrava no escritório dele. Não sei
bem quem estabeleceu isso. Mas, para mim, lá era o território
sagrado dele. Ele ficava lá, mas ligado com o que estava
acontecendo no resto da casa.
Pergunta - O professor Sérgio tentou conduzir os
filhos para uma profissão específica, para o estudo
disso ou daquilo?
Resposta - A partir da adolescência eu comecei a
entrar no escritório dele, e a minha entrada foi pela porta
da literatura. Ele não impunha nada, isso nunca. Mas a
presença dele, daqueles livros todos, de certa forma despertavam
curiosidade na gente. A maneira de eu me aproximar mais dele talvez
tenha sido através da literatura. Então, já
com meus 17 anos, não sei bem quando eu comecei a ler mais...
Eu ia lá e perguntava. E ele me indicava isso, aquilo...
A gente conversava, mas engraçado, nunca sobre História,
que era a especialidade dele. E quando a gente perguntava alguma
coisa sobre história era em função de trabalhos
de escola. Mas ele era um péssimo professor pra gente,
porque a gente precisava saber aquela coisa que se dava na escola.
Ele entrava nos detalhes e se empolgava, entrava a fundo na matéria,
de uma forma que pra gente não servia. Agora, na literatura,
ele também sabia tudo e, comigo, o diálogo foi conquistante
a partir desse momento. Eu comecei a me interessar. E me perguntei:
eu estava mesmo interessado na literatura, ou interessado, através
da literatura, em me afirmar diante do meu pai. Mas na literatura,
você solicitando, ele foi um professor.
Pergunta - Teu pai começou a se notabilizar muito
cedo com a crítica literária. Você sentiu-o
alguma vez frustrado por ter deixado os estudos literários
para dedicar-se à história? Por não ter-se
transformado num ficcionista, por exemplo?
Resposta - Ficcionista? Não sei. Meu pai abandonou
a crítica literária só profissionalmente.
Mas ele continuou interessado e atualizado, lendo todos os livros
que saíam. No seu escritório, uma boa parte de seus
livros era de literatura. ele ficava muito tempo batendo a máquina,
mas muito tempo também lendo. Eu me lembro dele falar comigo
sobre os "Cem Anos de Solidão", por exemplo.
Isso em 1970, por aí. Meu pai lia tudo, inclusive histórias
em quadrinhos. Ele gostava da "Luluzinha". Não
sei se havia nele alguma frustração por não
ter-se dedicado mais à crítica literária
ou à ficção. Não havia vazio na vida
dele.
Pergunta - Eu me lembro de uma vez teu pai ter mencionado
a intenção de ir ao Paraguai para realizar pesquisas
na área de história. Você se lembra de algum
projeto envolvendo estas pesquisas e que acabou, ao que sei, não
sendo concluído?
Resposta - Não me lembro. Meu pai muitas vezes iniciava
um trabalho para concluí-lo mais tarde. É o caso,
por exemplo, de "Capítulos da História Colonial",
cujos originais estavam no fundo da gaveta e o professor Antonio
Candido incumbiu-se de organizar para publicação.
É possível que ele tivesse vários trabalhos
esboçados, como esse ligado ao Paraguai. Ele não
comentava muito com a gente sobre o trabalho que estava fazendo.
Minha mãe é quem sabia mais.
Pergunta - Como eram as relações entre eles:
seu pai, o intelectual; e sua mãe a prática, a gerente
da casa?
Resposta - Quando eu me dei por gente, parece que já
estava tudo combinado entre os dois. Eram áreas bem definidas,
harmônicas, enfim. Nenhum tipo de atrito, porque já
estava tudo segmentado. A coisa do dia-a-dia, os problemas todos
da escola etc., era tudo com a minha mãe. Meu pai era cúmplice
de tudo, mas na dele.
Pergunta - Você ingressou na FAU (Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da USP) mas não concluiu o curso. Num artigo
que escreveu sobre você, nos anos 60, teu pai diz que o
Chico criança gostava muito de desenhar cidades, sempre
colocando uma fonte na praça. Como é que surgiu
essa tua vontade de ser arquiteto?
Resposta - Aí não tem nada a ver com meu
pai. Eu entrei para a arquitetura por falta de alternativas naquele
momento. Eu não queria ser advogado, médico, essas
coisas...
Pergunta - Mas você já gostava de escrever
naquela época?
Resposta - Já. Eu escrevia desde os tempos do colegial,
nos jornais do colégio. Levava para meu pai as coisas que
escrevia, para ele criticar. Então, ele continuou fazendo
crítica literária, não é? Ele foi
o meu crítico.
Pergunta - E ele dava notas?
Resposta - Dava. Eu entregava a saía. Depois eu
voltava e ele dizia: "gostei disso", "gostei daquilo",
"você tem que ler mais"... Era uma das únicas
horas em que a gente sentia uma certa seriedade profissional nele.
Pergunta - Quais foram as grandes influências literárias
do professor Sérgio, que autores o tocavam particularmente?
Resposta - Eu me lembro de ele falar que seus livros de
Guimarães Rosa tinham ficado redondos, de tanto que ele
os leu e releu. Recitava trechos inteiros do Guimarães
Rosa e comentava conosco. Gostava também muito de literatura
russa. Dostoiévski, Tolstói. Lembro-me dele contando
sobre um diálogo entre Dostoiévski e Turguenev.
Essas histórias iam despertando na gente essa curiosidade,
não era indução. Às vezes, ele falava
de alguma coisa que estava lendo no momento, como "Guerra
e Paz", do Tolstói. Mas ele não tinha nenhum
método nas suas leituras.
Pergunta - Mas ele era muito rigoroso em suas pesquisas
históricas.
Resposta - Super, super-rigoroso. Ele fazia fichas de tudo
o que lia sobre história. A literatura era mais para sua
fruição.
Pergunta - Seu pai ia muito ao cinema?
Resposta - Mamãe ia mais. Papai era meio preguiçoso
para sair de casa.
Pergunta - Sua casa estava sempre cheia de amigos de seus
pais, de amigos dos filhos, de pessoas interessantes. Era assim?
Resposta - Não era toda noite, não. Durante
um bom tempo houve grandes noitadas, mas não era uma coisa
constante. Na época da música (festivais da Record)
aí sim, começou a ser mais frequente à cantoria;
essas festas que não eram festas, apenas encontros de amigos
deles e dos nossos.
Pergunta - Que amigos do casal Buarque de Holanda frequentavam
com maior assiduidade a casa da rua Buri?
Resposta - O papai morou muito tempo no Rio, onde deixou
grandes amigos. Então, quando eles iam a São Paulo,
iam também lá em casa: o Otávio Tarquínio,
Rubem Braga, o Vinicius... E tinha a turma de São Paulo:
Arnaldo Pedroso D'Horta, Antonio Candido, Luiz Martins, Paulinho
Vanzolini, João Leite, Luiz Lopes Coelho, Caio Prado Júnior,
Paulo Mendes de Almeida.. Papai adorava São Paulo, era
um paulista convicto, não apenas de nascimento.
Pergunta - O professor Sérgio gostava, também,
de frequentar bares, ou preferia mais a boêmia doméstica?
Resposta - Ia também a alguns bares, como o Clubinho
dos Artistas, o barzinho do Museu. E gostava muito de cantar:
tinha um vozeirão e tanto, uma voz quase empostada. Quando
cantava em alemão, então...
Pergunta - Seu pai chegou a estudar piano quando criança,
não é?
Resposta - É, ele tocava um piano meio quadrado,
só que o piano lá de casa também não
ajudava. Mas ele tinha isso até no sangue: tinha um tio
que foi músico, Luiz Moreira, compositor de música
de teatro de revista. Esse tio dele foi casado com a Abigail Maia,
que cantava, e eles viajavam pelo Brasil.
Pergunta - Ele também teve aulas de dança,
segundo consta?
Resposta - Isso eu não sei. Sei que ele gostava
de dançar, assim de farra, com o Luiz Coelho. Os dois faziam
um minueto muito engraçado. Papai também dava uns
passos de charleston, e se orgulhava muito desses passos, trocando
as mãos anos joelhos. Na época do twist ele também
se animou; achava o twist parecido com o charleston.
Pergunta - O Vinicius de Moraes, num disco póstumo
editado pela família, registra uma fala muito carinhosa
em relação ao seu pai que, por sua vez, também
neste disco, fala com muito afeto sobre o amigo. Como o teu pai
reagia à crítica de alguns de que o poeta se vulgarizara
ao aderir com tudo à MPB?
Resposta - Longe de meu pai qualquer posição
elitista em relação à cultura. Ele tinha
uma admiração muito grande pela cultura popular
brasileira, uma coisa que faz parte do pensamento modernista.
E tinha por Vinicius uma imensa admiração como ser
humano, como poeta. Achava que a fusão do ser humano com
o poeta deu no Vinicius que nós todos amamos, o Vinicius
também da música popular.
Pergunta - Como é que os dois se conheceram?
Resposta - A origem da amizade eu não sei. Bem pequeno
eu já me lembrava do Vinicius frequentando a nossa casa.
Naquele tempo não era uma amizade assim tão assídua.
O Vinicius era diplomata e estava sempre fora do Brasil. Na época
em que papai foi lecionar em Roma, se não me engano o Vinicius
era cônsul em Paris, e era fácil para ele ir a Roma.
O contato então foi maior, mas eles já eram amigos.
Com certeza essa amizade deve ter vindo dos círculos literários
no Rio.
Pergunta - Uma amizade que durou até a morte, com
Vinicius indo primeiro...
Resposta - Tem uma história muito boa entre os dois.
Eles combinaram que quem morresse primeiro viria avisaria o outro
sobre como era o outro lado. Logo depois da morte do Vinicius,
meu pai ainda arrasado, disse ter visto o Vinicius do outro lado
de uma porta de vidro lá de casa. Eles tinham a mania de
trocar chapéus e Vinicius estava com um chapéu trocado.
Meu pai, cheio de curiosidade, perguntou então a Vinicius
como era o outro lado, e ele, rindo, fez um não com o dedo,
como se dissesse: "Não conto". bc