Sérgio
Buarque de Holanda
No
retrospecto de meio seculo de literatura brasileira publicado em
um dos numeros de cinquentenario do "Correio da Manhã",
Lucia Miguel Pereira destacou na prosa de Rubem Braga o traço
que apresentaria em comum com toda a poesia nova: preeminencia da
palavra sobre a frase, do pormenor sobre a linha, de cada nota sobre
a melodia, da cor sobre o desenho.
A leitura de "O Homem Rouco", publicado não há
muito, e, agora, à deste volume de "50 Cronicas Escolhidas"
(Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1951), a
aproximação faz-se quase inevitavel. Os adjetivos
que melhor se prestam a qualificar esta prosa pertencem, com poucas
exceções, ao vocabulario proprio da critica de poesia
e não só, penso eu, da critica da nova poesia. Antonio
de Alcantara Machado, a quem repugnavam naturalmente todos os desmanchos
liricos, tinha o costume de dizer que com a poesia não se
faz prosa - no que andava enganado - embora com a prosa se possa
fazer poesia. E concluia pela superioridade infinita da segunda
sobre a primeira.
Entretanto, se é certo que algumas destas cronicas, mudada
simplesmente a apresentação grafica, caberiam sem
dificuldade em um livro de versos - e o proprio autor já
fez com bom exito essa experiencia - não se dirá com
razões muito plausiveis que nelas se preferiu à linguagem
da prosa a da poesia.
Na realidade, nenhuma das definições mais ou menos
caprichosas que se têm forjado até agora para o idioma
poetico parece aplicavel sem violencia, a estas paginas. Não
é, a sua, uma linguagem forçosamente ambigua, mas,
ao contrario, nitida e precisa - precisão foi exatamente
uma das virtudes que nela pôde distinguir Lucia Miguel Pereira;
não se detem, salvo, tal metafora arrojada, no tema raro,
no motivo nobre, e uma das suas notas - a do humour - passa muitas
vezes, e segundo velha convenção ultimamente ressuscitada,
por um dos sinonimos mais evidentes da antipoesia.
Por um singular paradoxo, justamente a nota humoristica parece componente
necessario do clima de poesia que envolve estas cronicas. E componente,
sobretudo de uma tonalidade particular de expressão, que
Rubem Braga domina quase com exclusividade e que, em dadas ocasiões,
chega a confundir-se com o falsete lirico.
Mas, como quer que seja, o falsete lirico - designação
que introduzo aqui por minha conta e risco, na ausencia de alguma
outra já consagrada - requer do autor atitude e visão
prevenidas em face das coisas, das criaturas, de si mesmo. É,
em suma, um processo que serve para dar freio às expansões
muito intimas e vivazes, e que, em momentos agudos, chega a converter
o puro lirismo no seu antipoda, no humorismo puro.
Contudo uma sabia dosagem, que permita equilibrarem-se esses termos
antagonicos, nunca é mortal para a poesia verdadeira, tanto
é certo que esta costuma definhar na pureza, e que, por outro
lado, só pode ganhar em altitude quando na vizinhança
dos seus inimigos intimos. A boa poesia não se mantem por
longo tempo em estado simples. E entre nós, o mestre consumado
na arte de misturar os contrarios é um poeta: Carlos Drummond
de Andrade.
Nestas cronicas de Rubem Braga encontramos, sem duvida, um pouco
daquela atitude prevenida, capaz de frenar as mais limpidas emoções.
Apenas a prevenção não nasce, aqui, da experiencia
ou do desengano. Há nela qualquer coisa de paradisiaco e
matinal, de avesso a toda sabedoria premeditada, se bem que, as
vezes, não hesite em falar na grave linguagem dos apologos.
É certo, porem, que o proprio Belzebu (em "Eu e Bebu
na Hora Neutra da Madrugada"), depois de uma luta cronica para
subverter todo o plano da Criação, não duvida,
ele proprio, em entrar na igreja e assistir ao santo sacrificio
da missa, tal como o mais exemplar dos devotos.
A parte do misterio acha-se sempre presente na ordem talvez arbitraria
e em todo caso insondavel, em que foram postas as coisas no mundo.
Se uma catastrofe tremenda viesse a transtornar essa ordem familiar,
teriamos, por momentos, alguma dificuldade em aquiescer aos novos
habitos que ela imporia, tão eficaz, na verdade, é
o poder da rotina. Mas quem nos diz que não os aceitariamos,
ao cabo, se surgissem bem amparados num tecido de prestigiosas convenções?
Certa vez, a Prefeitura de São Paulo resolveu abolir diversas
linhas de bondes. O homem que esperava pelo seu "camarão"
foi advertido de que seu "camarão" não existia
mais. Houve protestos e confusão. "Ninguem sabia onde
tomar o bonde, nem o nome do bonde, nem o caminho do bonde. Os guarda-civis
(seja dita a verdade) informavam com a maior gentileza. Informavam
e depois tomavam bondes errados, porque eles tambem não sabiam.
E alguem murmurava: mas onde estás, bonde "Brigadeiro
Galvão"? E tu, "Vila Clementino"...?"
Mas amanhã, com certeza, todos se submeterão humildes
aos novos decretos desse poderoso agente da Divina Providencia,
que e a Prefeitura paulistana.
Em realidade um absurdo é tão bom quanto qualquer
outro, desde que se encorpore a alguma ordem legal. Ha milagres,
contudo, que desafiam perenemente toda ordem legal e se recusam
à sistematização. A mulher loura, por exemplo,
que sorriu certa vez no terceiro banco do bonde de Santa Cecilia,
constitui uma infração às sabias posturas que
regem a existencia dos homens num mundo precario, chegando talvez
a representar o germe de algum insolito cataclismo. Não se
podem indagar, sem risco, os motivos desse disparate, assim como
não parece licito perguntar, na aula de inglês, por
que a inacreditavel palavra "ash-tray" quer dizer tão
somente "cinzeiro", não "hipoteca" por
exemplo, ou "enxaqueca", o que seria, sem duvida, mais
exato.
O certo é que esses misterios inescrutaveis hão de
desafiar para sempre as regras da ciencia tanto quanto as leis da
prudendia. Para tentar captá-los é indispensavel uma
visão particular e verdadeiramente poetica, isto é,
atenta mais à singularidade essencial de cada coisa - do
pormenor sobre a linha, de cada nota isolada sobre a melodia, da
cor sobre o desenho - do que ao seu encadeamento em uma norma coerente.
E para fixá-las não se pedem palavras magicas ou linguagens
prodigiosas, pois o milagre visivel e presente dispensa por si só
as formulas encantatorias. Não é de estranhar, assim,
que Rubem Braga, numa prosa feita de simplicidade de cordura, de
contrita devoção diante da maravilha cotidiana, nos
venha oferecendo paginas de generosa poesia.
|