Sérgio Buarque de Holanda
Depois
dos estudos sucessivos de um Calogeras, de um Simonsen, de um Taunay,
entre poucos mais, sobre os numeros de trafico africano para o Brasil,
pareciamos ter alcançado o extremo limite de precisão
possível em domínio tão naturalmente vago.
O milagre do sr. Mauricio Goulart, em seu livro recente sobre a
Escravidão Africana no Brasil - Das Origens à Extinção
do Trafico (São Paulo, Livraria Martins Editora, S. A., s.d.),
está em ter conseguido introduzir neste assunto algumas precisões
importantes e mal suspeitadas. E tambem em ter podido construir
um livro dos mais ricos e estimulantes que se podiam desejar, a
proposito de controversia tão arida e, à primeira
vista, tão futil.
Em realidade, essa controversia representa o motivo central do livro
do sr. Goulart, e está presente, praticamente, em todas as
suas paginas. Mas pretender reduzir a ela a contribuição
que nos oferece para o conhecimento da historia da escravidão
no Brasil seria diminuir injustamente o significado dessa contribuição.
Através de seu minucioso esforço para reduzir a termos
plausiveis tudo quanto se tem dito sobre o assunto, apresentam-se
novos aspectos, novas formulações do problema, que
de hoje em diante deverão ser considerados pelos historiadores.
De qualquer modo, para abordar devidamente o estudo do sr. Mauricio
Goulart é inevitavel partir e, um pouco, participar daquela
controversia. "Neste assunto, negros," - diz-nos ele (à
pg. 98) - "têm sido desprezadas as verdades mais corriqueiras,
postas de lado, sumariamente, as conclusões do bom senso".
O bom senso manda, por exemplo, que em toda tentativa de fixação
do volume do trafico, só se considerem os elementos comprobatorios
no seu conjunto e em sua inter-relação. É sobretudo
o exame parcial e isolado de tais elementos que conduziu historiadores
diversos, e dos mais ilustres, a resultados extremamente divergentes.
Simonsen, por exemplo, fundou-se principalmente no calculo da vida
efetiva e da produtividade dos escravos nos engenhos e minas. Calogeras,
na taxa negativa de sobrevivencia, aplicada ao total dos negros
existentes no país às vesperas da Independencia. O
primeiro avalia em três milhões e trezentos mil o numero
de escravos importados: o segundo, em dez a doze milhões,
na melhor hipotese em oito a nove milhões.
Colocado em face de soluções tão discrepantes,
o sr. Goulart inclina-se decididamente para a primeira, a de Simonsen,
visto como Calogeras se limitara a um elemento, e elemento que não
apresenta correlação com os outros dados do problema.
Sua solução - cerca de 3.600.000 negros importados
- é semelhante à de Simonsen e rigorosamente coincidente
com a de Taunay, na versão final dos seus valiosos "Subsidios
para a Historia do Trafico", publicados no tomo X dos Anais
do Museu Paulista (o autor serve-se de versão anterior e
menos completa, a dos Anais do Terceiro Congresso de Historia Nacional).
Para chegar a tal cifra, ele não deixa fugir nenhum dos numerosos
dados da questão, entre eles o numero de escravos necessarios
em cada engenho; a produção media anual dos negros,
na lavoura do açucar, nas minas, nos cafezais; a porcentagem
dos que se aplicariam em outros misteres; a taxa de sobrevivencia;
a massa dos que se exportaram da Africa... E é a consideração
atenta, bem desenvolvida e documentada, desses elementos, ainda
mais do que o motivo central do estudo, que faz, no meu entender,
sua admiravel riqueza. Em mais de um caso, pode-se mesmo lamentar
que a absorvente presença deste motivo central não
deixe o autor fixar-se melhor, mais livremente, naqueles aspectos
parciais. Em outras palavras, seria desejavel que os abordasse um
pouco menos na medida em que valem como argumento e mais na medida
em que possam constituir objeto direto da pesquisa. Pois que a ambição,
justificavel em si, de consertar enganos alheios pode conduzir insensivelmente
a outro tipo de engano quando se torna empolgante: engano ou exagero
correspondente, de algum modo, àquilo que na ciencia linguistica
recebeu o nome de ultracorreção.
Quando, por exemplo, no enumerar os calculos quinhentistas, naturalmente
imprecisos, sobre os escravos que viveriam então na colonia,
é caracteristico de sua prudencia que prefira as cifras mais
modestas de um Fernão Cardim e de um Gabriel Soares, às
de Anchieta, duas vezes mais altas, ou quase tanto.
Uma das razões propostas, e que me parece má, para
a preferencia, está em que a estimativa anchietana contraria
os outros dois testemunhos, e que estes, vindos de fontes bem distintas,
se harmonizariam bem entre si. A verdade, diga-se de passagem, é
que não se harmonizam tanto, pois Gabriel Soares apresenta
mais negros para Pernambuco (quatro a cinco mil contra quatro mil),
Cardim, mais para a Baía (três a quatro mil contra
dois mil). Por outro lado, o total de dez mil, que Anchieta indica
para Pernambuco (contra três mil para a Baía), parece
condizer melhor com a circunstância de, segundo diferentes
depoimentos, existirem mais engenhos na primeira do que na segunda
dessas capitanias (66 contra 36, di-lo o proprio Cardim, que faz
avultar o numero de negros da Baía). E tambem com o fato
das possibilidades de recorrerem os senhores de engenho ao braço
indigena serem aparentemente muito menores em Pernambuco, onde Cardim
já encontrou bem diminuido o numero de indios em 1583 ("os
indios da terra já são poucos", escrevia na "Narrativa
Epistolar"), quando no Reconcavo ainda eram fartos e densos
seus aldeamentos.
A outra razão sugerida contra o calculo de Anchieta, de que
"dez mil negros para os 55 ou 66 engenhos de Pernambuco, seriam
negros demais", um "esbanjamento de negros", parece
relacionar-se à tendencia, constante no autor, para diminuir
a importancia numerica dos que não se empregavam no negocio
do açucar. Reiteradas vezes se avaliam aqui em 70% do total
os negros que trabalhavam em engenhos de cana (e em 80% , mais tarde,
os que se aplicariam na mineração). Ora, considerando
que um mínimo de 20 e mesmo de 30% dos pretos desembarcados
da Africa seriam "peças femeas", alheias, por conseguinte,
àqueles trabalhos, quantos pretos machos ainda ficariam para
outros misteres: milicia, serviços domesticos, familiares
ou caseiros, todo genero de fabrica e manufatura, sem falar em outras
lavras ou lavouras? E sem falar na parte, nada irrelevante, dos
que, destinados primeiramente aos engenhos, neles não permaneciam.
Dos negros, já dizia em uma das suas cartas, de agosto de
1608, o governador d. Diogo de Menezes, que sendo eles "a maior
parte da pobreza dos homens", porque em adquiri-los gastam
quanto têm, "quando cuidam que têm cinquenta negros
(...) acham-se com menos da metade, porque fogem e metem-se pelos
matos, e são tantos os que desta maneira andam, que já
fazem aldeias, e andam alevantados e ninguem pode com eles..."
Com razão, opõe-se o autor à cronica de Calogeras,
de que das 53.053 peças saidas de Angola para o Brasil, entre
1575 e 1591, conforme o relatorio de Abreu e Brito, todas, ou quase
todas, se destinavam ao Brasil. Pondera bem que, nessa epoca, a
maior parte iria para as Indias de Castela. Por outro lado, não
parece levar na devida conta que o relatorio fala em negros embarcados,
e que muitos deles não terão chegado nem à
America Espanhola, nem à Peninsula Iberica, nem ao Brasil.
Sobre esse ponto, são acordes todos os depoimentos da epoca:
um deles ousa dizer que, dadas as más condições
de transporte, onde "el mismo olor basta a matar los más",
era maravilha que a vigesima parte dos embarcados pudesse chegar
ao seu destino. "Não ha quatro meses", exclama,
"dois mercadores tiraram para a Nova Espanha, de Cabo Verde,
quinhentas em uma nau, e só em uma noite amanheceram mortas
cento e vinte..." Esse depoimento está na obra de Tomas
del Mercado intitulada Tratos y Contratos de Mercadores, publicada
em 1569 e que pode ser consultada em nossa Biblioteca Nacional.
O sr. Mauricio Goulart, em outra parte de sua obra (à pg.
275), toma conhecimento de noticias semelhantes, mas desconfiado
por principio das cifras muito generosas, associa-as a exageros,
liricos ou interessados, de abolicionistas e de traficantes.
Se em determinadas ocasiões, no Quinhentos, sobretudo, a
America espanhola recebeu sem duvida mais africanos do que o Brasil,
não parece exato que isso tenha ocorrido sempre, como tende
a presumi-lo o autor (às pgs. 51, 101,111, 117 etc.). As
restrições de carater religioso à introdução
de escravos negros, que prevaleceram de inicio em dominios de Castela,
e não em terras de Portugal, teriam contribuido, no primeiro
caso, para certos escrupulos dos reis catolicos com relação
ao seu comercio. E quando esses escrupulos se afrouxaram, não
deixariam os soberanos espanhóis de reservar o privilegio
do trato a particulares e companhias, que para isso pagavam taxas
consideraveis. A proprosito de um dos mais antigos textos conhecidos
de acordo para a introdução de negros no Novo Mundo
- o acordo de 1542 entre Fernão Cortes e o marquês
del Valle, só ultimamente publicado - consta que o intermediario
genovês pagava então a soma de sete ducados para cada
um dos novecentos africanos que negociasse. E em meados do seculo
seguinte, segundo mostra o historiador Clarence Haring, os contratadores
deveriam pagar à Coroa de trinta a quarenta ducados por cabeça,
alem de uma taxa suplementar de três a trinta reais.
Observa o sr. Mauricio Goulart, para mostrar a maior importancia
do trafico com as possessões espanholas, que os assentistas
tinham muito mais empenho "em amealhar proveitos com a venda
de negros para as Indias de Castela" do que para o Brasil.
Mas isto é claro, pois que desfrutavam no primeiro caso de
um monopolio exclusivo, que não lhes era dado no segundo,
e monopolio que lhes custara avultadas somas. E quanto às
constantes queixas dos nossos lavradores sobre a escassez de negros
disponiveis, creio que essa escassez deva ser interpretada, não
em sentido absoluto, mas apenas em relação com as
grandes exigencias da lavoura.
Tudo isso nos leva a hesitar um pouco diante de alguns argumentos
usados pelo autor em beneficio da tese defendida. Mas as objeções
que seu estudo possa merecer só atingem aspetos parciais
do problema e não modificarão sensivelmente os seus
resultados. No conjunto, trata-se de contribuição
exemplar e já hoje de consulta obrigatoria para quem se disponha
a estudar o mesmo problema.
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