Da Redação
A seguir trechos inéditos da prova escrita realizada por
Sérgio Buarque de Holanda em 10 de novembro de 1958 no concurso
para catedrático de história da civilização
brasileira na Universidade de São Paulo. O tema foi "Conquista
da Paz Interna e Conciliação Política".
Sérgio
Buarque de Holanda
O golpe de Estado que d. Pedro não hesitara em dar, apesar
daquela "timidez" que lhe atribuirá Feijó,
é o motivo ou o pretexto para as sublevações
e para toda a agitação política do Primeiro
Reinado, a começar pela Revolução Pernambucana
de 1824, cujos partidários, e não só estes,
como o próprio chefe, Pais de Andrade, hão de invocar
aparentemente sem grande sinceridade, já que de início,
e apesar de algumas restrições formais, não
lhe tinham oposto fortes embargos.
Mas nessa própria divisão política ia entrosar-se
a divisão que, esta bem anterior à Independência,
pois data das primeiras lutas nativistas, já nos séculos
17 e 18, separava os filhos da terra dos reinóis. O dissídio
político confunde-se, não raro, com o dissídio
nacional: o liberalismo tornava-se, por assim dizer, inseparável
do nativismo eurófobo. Um português que em sua própria
terra se distinguisse por atitudes revolucionárias converte-se
no Brasil, invariavelmente, em corcunda.
(...) Não faltará entre os mais vivamente acusados
de simpatias pela idéia da volta de d. Pedro I quem se filie
aos poucos ao grupo liberal e é o caso de um Antônio
Carlos, por exemplo, ou de seu irmão Martim Francisco. O
próprio Paranaguá que tivera papel tão notável
na dissolução da Constituinte de 23 alia-se por sua
vez aos "liberais" no movimento da maioridade. Esse, contudo,
mantém-se como, de certo modo, Aureliano Coutinho, o futuro
Sepetiba, fora das filiações partidárias: faz
"rancho à parte", como então se dirá.
Por outro lado, entretanto, o próprio desaparecimento da
ameaça "caramuru", que desanuvia os horizontes,
faz com que alguns elementos liberais tendam a inscrever-se entre
os adeptos do "regresso". É a situação
de Bernardo de Vasconcelos, por exemplo: o autor do projeto do Ato
Adicional e mais tarde o paladino da chamada Lei Interpretativa.
Que não só abandona, agora, a facção
que ajudara a formar e ainda seus antigos companheiros de lutas,
Feijó em particular, como se alia aos que pretendem fazer
com que "pare o carro revolucionário". É
com ele que tem início verdadeiramente o Partido Conservador.
É também a posição de Honório
Hermeto Carneiro Leão, que iniciara sua carreira política
entre os "moderados", como Evaristo da Veiga e o próprio
Bernardo de Vasconcelos. Eleito deputado pela primeira vez em 1830,
quando ainda não tinha completado 30 anos de idade, torna-se
desde cedo um líder acatado e não menos temido, não
só entre seus adversários, como entre os mesmos adeptos.
Em contraste, porém, com Bernardo de Vasconcelos, mineiro
como ele, o futuro marquês de Paraná é desde
cedo adverso às soluções violentas. Se o primeiro,
achacado e quase inválido, não treme em agir contra
a lei, em caso de necessidade, e assim o dirá, o segundo
mostra constantemente um respeito fiel à Constituição.
Bernardo, aludindo, depois da Maioridade, ao seu próprio
braço entrevado pela invasão de um moléstia
que o deixa desfigurado no físico, mas de espírito
sempre alerta e ânimo combativo, dirá que sua mão
não tremerá diante da necessidade de subscrever um
ato que, ilegal embora, sirva para consolidar o regime. Pode-se
pensar, por contraste, no passo de Montesquieu, um dos nomes da
Revolução, onde escrevia que em certos casos se faz
mister contrariarem-se a lei escrita e os costumes estabelecidos,
mas acrescentando, porém, que o legislador não o deve
fazer "que d'une main tremblante".
(...) A ascensão dos liberais que se segue à queda
do partido a que se filiara Honório e que se prolongará
até 1848 não interrompe a obra de reação
monárquica. Esta se faz independentemente das idéias
que os mesmo liberais tinham esposado quando na oposição.
Nenhuma das medidas que parecera impopular ao partido, como a lei
interpretativa ou a criação posterior, melhor, o restabelecimento,
do Conselho de Estado extinto como Ato Adicional, merece sua oposição
efetiva. Essa atitude dos liberais, que, diga-se de passagem, não
merece sempre a aprovação dos que dele não
participam, corresponde bem à observação célebre
de Holanda Cavalcanti, de que nada mais parecido com um saquarema
do que um luzia no poder.
Seria injusto afirmar-se que fossem irrelevantes as diferenças
partidárias no tempo do Império e que a preeminência
dos homens, do personalismo, prevalecesse constantemente sobre a
das idéias. Embora a camada dos homens que participavam da
vida política, eleitos e eleitores, fosse muito tênue
comparada ao grosso da população, ou por causa dessa
mesma teneridade, que restringia a ação política
a uma elite naturalmente mais afeita ao jogo das idéias e
dos interesses conscientes, e ao menos na aparência, do que
ao juízo das paixões populares, é inegável
que de um modo geral havia certa indistinção no círculo
de idéias caras aos grupos divergentes. Não é
certamente sem motivo que as transformações sociais
mais importantes no tempo da monarquia foram, mal ou bem, realizações
dos conservadores. O caso é frisante em 1850 com a supressão
do tráfico de negros, sob a gestão de Eusébio
de Queiroz, e não o é menos com a Lei do Ventre Livre,
de 1871, obra mais contemporizadora, é certo, do que revolucionária,
mas que figura entre as etapas da Abolição. A própria
Lei dos Sexagenários, preparada pelos liberais, será
promulgada por um gabinete conservador. E é ainda num governo
conservador, o do conselheiro João Alfredo, que se promulgará
a Lei Áurea. E ninguém dirá sem injustiça
que o 13° de Maio foi apenas um ato contemporizador.
(...) De alguns estadistas cabe dizer que depois dessa fase em que,
ao menos nas aparências, se ensarrilharam as armas, encontraram
finalmente sua vocação. Um Wanderley, por exemplo,
que quase apartidário nos seus inícios, mas de inclinações
principalmente liberais, passará em seguida para as fileiras
conservadoras, onde se manterá até ao ocaso do Império.
(...)
A paz interna, a que visava principalmente a iniciativa encarnada
por Honório Hermeto, é alcançada eficazmente
e prepara o país para as lutas externas, sobretudo a Guerra
do Paraguai, ao mesmo tempo em que torna menos ásperos os
atritos políticos resultantes das reformas sociais e administrativas.
Sob Caxias, que sucede Paraná na presidência do gabinete,
prossegue, ao menos nominalmente, a Conciliação. Até
quando? O problema que os contemporâneos hesitavam em resolver
não se pode ainda hoje definir com precisão. Essa
conciliação, o divisor das águas da política
imperial, inaugura, com a transação, a síntese
entre correntes díspares, não só o fortalecimento
do regime para poder enfrentar novos embates, como uma nova divisão
entre os grupos contrários. Nasce a Liga, depois Partido
Progressista, que depois de 1868 se funde definitivamente com o
Liberal. Deste, uma ala mais extremada se converterá dois
anos mais tarde no Partido Republicano. A massa amorfa em que se
teriam diluído os agrupamentos contrários, cuja contrariedade
é condição necessária para o exercício
da verdadeira democracia. Longe de preparar uma dissolução
das forças divergentes, ajuda a fortalecer, terminada, as
mesmas divergências, e aponta, de algum modo, o caminho do
futuro.
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