SÉRGIO
BUARQUE DE HOLANDA
Quem
pretenda estudar os mais recentes desenvolvimentos da literatura
de ficção no Brasil, não poderá restringir-se
à consideração das obras diretamente escritas
em português. Há traduções que, em virtude
do esforço de adaptação e assimilação
exigido, e ainda as suas possíveis repercussões na
vida espiritual de um país, não reclamam menos do
que elas a dedicação da critica.
O tradutor é o prisioneiro de uma forma que não seria
naturalmente a sua, que não ajudou a constituir e que resiste,
quase sempre, a toda tentativa para uma transposição
literal em outra lingua. Na medida, porem, em que ele pôde
assimilar a emoção originaria do autor, apropriar-se
com feliz exito dos recursos, soluções e dicções,
não raro insolitos, que aquela forma inclui, é licito
dizer que participou a seu modo do ato de criação.
E que seu sacrificio, por severo que seja, representa o preço
de liberdades novas e novos descobrimentos. Pois uma obra que forneceu
valiosos elementos de expressão a certo idioma não
deixará, traduzida, de produzir resultados semelhantes no
idioma do tradutor.
O caso, por exemplo, da versão brasileira, ainda em curso,
da obra mestra de Proust, poderá vir a ser singularmente
importante desse ponto de vista. Ainda é cedo para se tentar
predizer até onde esse empreendimento editorial há
de significar exito de primeira grandeza na historia de nossa literatura,
em particular de nossa literatura de ficção. Baste-nos
observar, por ora, que ele já acarretou um interesse raramente
provocando, até hoje, por autores nacionais. Interesse que
se espelha bem na recente publicação, por uma revista
de moços, da coletanea intitulada Proustiana Brasileira.
E que permitiu a um critico ilustre o sr. Alvaro Lins
dedicar, sem maior escandalo, a "tecnica do romance em Marcel
Proust", à tese com que se apresentará a concurso
para uma das cadeiras de Literatura no Ginasio Pedro II. Os regulamentos
de concurso impedem-me de apreciar de publico essa contribuição,
mas sua simples presença já é suficientemente
impressiva para que se deva registrá-la de passagem.
Proust foi um dos dois grandes inovadores da tecnica do romance
em nosso seculo. O outro inovador, mais radical, certamente, e em
alguns aspectos, mais fertilizante, não conseguiu alcançar
entre nós as mesmas honras. Sem duvida por que a obra verdadeiramente
revolucionária de Joyce o Ulisses (já
não me refiro a Finnegans Wake, publicada mais tarde e a
bem dizer intraduzível) aguarda até hoje o editor
energico ou melhor o tradutor heróico e bem dotado que se
disponha a apresentá-la ao publico da lingua portuguesa.
Na Exposição Joyceana, organizada em Paris pela livraria
La Hune, de St. Germain-des-Prês e que me foi dado percorrer
há poucos meses, destacava-se num mostruario, pelas cores
gritantes da capa, a conhecida versão brasileira de outro
livro de Joyce: Retrato do Artista quando jovem. E era o unico sinal
manifesto de que o renome do grande irlandês já alcançara
nossas terras. De Ulisses apresentavam-se as versões francesas,
alemã, tcheca, sueça, uma das japonesas (há
nada menos de três, ao que parece) e prometiam-se para breve
uma italiana e outra dinamarquesa. Os elaboradores do catalogo impresso
lamentavam não ter sido possível exibir-se a russa,
a espanhola e a portuguesa, que diziam não possuir, embora
admitindo de modo expresso que "existem sem duvida".
Houve aparentemente engano com relação à suposta
versão portuguesa; o primeiro volume de James Joyce Yearbook,
impresso às vesperas de inaugurar-se a exposição,
e que não deixa de mencionar a tradução espanhola
publicada em Buenos Aires há dois anos, diz apenas que há
contrato assinado para um edição portuguesa em preparo,
sem esclarecer, todavia, se em preparo no Brasil ou em Portugal.
As dificuldades que oferece o problema de traduzir-se uma obra como
Ulisses, de leitura aspera, mesmo para quem conheça bem a
lingua do original, existem certamente e são notorias. Não
acredito porem, que sejam insuperaveis. Para tanto, a solução
mais plausivel seria, talvez, um bom trabalho de equipe, incumbindo-se
cada tradutor de três ou quatro episodios. Os inconvenientes
que apresenta em geral este sistema não seriam graves no
caso, uma vez que o proprio Joyce, com sua lamentavel virtuosidade,
deu deliberadamente a cada um dos dezoito episodios, que compõem
seu livro, um estilo e um ritmo diferentes.
Por outro lado o enriquecimento que semelhante iniciativa poderia
proporcionar à expressão literaria e particularmente
à arte e tecnica da novela entre nós pagaria bem as
dificuldades. Parece certo que muito da novidade estilistica e tecnica
do moderno romance norte-americano (com o monologo dramatico, por
exemplo, ou estrutura de contraponto, que Dos Passos iria empregar
e desenvolver) teria sido impossivel sem o previo exemplo de Joyce,
acomodando a lingua inglesa à manifestação
de novas e valiosas experiencias.
A mesma causa, ou quase pode-se dizer que tem ocorrido em terras
onde a importancia de tal exemplo só se tornou plenamente
acessivel graças a boas e oportunas traduções
de Ulisses. Numa das paredes da sala de exposição
de La Hune, exibia-se a imagem de uma arvore vasta e generosa, onde
os galhos figurava as obras das modernas literaturas que se conceberiam
mal sem o contacto fecundante da paisagem joyciana. Nela apareciam,
naturalmente em primeiro plano, nomes de livros e autores anglo-axões
e franceses (Faulkner Heminhway, Wolfe, Virginia Woolf, Henry Miller,
Larbaud, Celme, Sartre...)., mas não faltavam contribuições
de outros paises, da Alemanha principalmente, onde os romances de
um Alfred Oblin (Berlin Alexanderplatz) ou de um Hermann Brech (a
trilogia dos Sonanbulos) pe/rtencem francamente à mesma paisagem.
Descontado o que possa entrar de caprichoso ou excessivo em algumas
dessas filiações, parece inevitável pensar-se
que tudo isso incluiu uma parcela apreciavel de verdade. E não
é certamente demasiado dizer-se da influencia joyciana que
tem sido quase tão decisiva na formação da
moderna prosa de ficção quanto a de Rimbaud o foi
na moderna poesia.
De outra obra ilustre ouso dizer que tanto Ulisses poderia ser traduzida,
sem grave inconveniente, através de um trabalho de equipe,
se essa mesma obra não tivesse aparentemente encontrado,
ao menos para os primeiros volumes, tradutor quase exemplar. Refiro-me
a José e seus Irmãos, de Tomas Mann, que vem saindo
em tradução portuguesa do sr. Agenor Soares de Moura,
editada pela Livraria do Globo.
O romancista alemão é algumas vezes lembrado ao lado
de Proust e Joyce, como um dos inovadores do romance contemporaneo.
Ele proprio declarou, em certa ocasião, a proposito das historias
de José, (nos Neuen Studien, Estocolmo, 1948, 9. 163) que
pretendera expressamente renovar a refrescar a narrativa biblica,
servindo-se para isso "de todos os meios modernos, tanto espirituais
como tecnicos". E se é certo que apresenta, com aqueles
seus emulos diferenças notaveis, não parece facil
se dissimularem os pontos de contacto.
Um deles está justamente em uma extrema virtuosidade nos
dominios da linguagem, que o leva, quando necessario a matizá-la
conforme as circunstancias da narrativa. Em Proust, o gosto de pasticho
teria, segundo sua propria confissão, a função
de libertá-lo de influencias alheias que julgava opressivas.
Mas um critico atento não deixaria de notar como essa mesma
habilidade lhe serviria para reproduzir, com nitidez convincente
não apenas os habitos linguisticos como a propria modulação
da voz dos personagens. Em Joyce, a parodia chega a incorporar-se
deliberadamente à arquitetura da propria obra. E de tal modo
que uma das cenas mais carateristicas a do hospital que compõe
o decimo quarto episodio de Ulises (Oxen of the Sun) não
passa, em realidade de uma antologia de parodias, envolvendo desde
o anglo-saxão até o moderno slang.
Já em Mann, a capacidade imitativa responde a um tipo de
sensibilidade onde não há lugar para a impersonalização
deliberada do autor um dos dogmas, ao contrario, da estetica
joyciana ou para sua aparente passividade em face dos acontecimentos
ou das impressões, como em Proust. O esforço que empreende
para apropriar-se de um mundo que não é naturalmente
o seu a tentativa entre outras, de absorção
da "atmosfera" goethiana, no romance Carlota em Weimar
não significa um perder-se nesse mundo e não exclui
uma participação ativa do autor na propria criação.
Mas pode significar e significa, seguramente, na evocação
do ambiente bíblico das historias de José uma
realização artistica e estilistica das mais audaciosas
de nossa epoca. É talvez cedo para se pretender que a realização
está plenamente à altura da intenção
ou das expectativas do autor, o que esta obra pode situar-se com
toda justiça ao nivel de outras, mais arrojadas na aparencia;
no fundo, porem, nascidas de uma ambição mais discreta
e bem mais em harmonia com os modernos idolos da tribo. Mas o esforço
que ela representa e os resultados quer, bem ou mal, já alcançou,
reclamam consideração. A eles, mas sobretudo à
tentativa de apresentá-los a leitores brasileiros, será
dedicado o proximo artigo desta seção.
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