SÉRGIO
BUARQUE DE HOLANDA
O
pensamento dominante na obra de Franz Kafka foge a qualquer interpretação
que procure associar-lhe um sentido coerente e uma formulação
sistematica.
É
significativo que, ao primeiro relance, essa obra pareça
dar razão, indiferentemente, aos mais diversos exegetas quando
se empenham em filiá-la aos seus respectivos credos e doutrinas.
Não parece menos exato, porem, que a parte de verdade presente
em cada uma dessas variadas filiações se dissipa rapidamente,
todas as vezes em que seus interpretes buscam traduzir certas alusões
fragmentarias de modo a convertê-las em pontos de vista dogmaticos
ou facciosos.
Essas
tentativas, constantemente frustadas e, apesar disso, continuamente
reiteradas, parecem provir, em ultima analise, de uma falsa colocação
do problema critico. Franz Kafka não foi, certamente, um
simples literato ou, à medida de seu grande contemporaneo
James Joyce, um genio inumano e frigido, ocupado em edificar laboriosamente
um monumento glorioso. Foi, isto sim, um criador e um poeta, poeta
no sentido amplo e, a rigor intraduzivel que encerra o vocabulo
alemão Dichter. Tambem foi, exatamente por esse motivo, o
oposto de um filosofo, de um teologo, de um apostolo, de um propagandista.
Não chegou sequer a fundar sua cosmogonia ou sua mitologia
privada, que pudesse suprir, como no caso de Rilke, por exemplo,
ou no de Yeats, alguma incompatibilidade essencial com as religiões
reveladas e publicas.
Assim,
se sua obra se mostra, no todo, irredutivel àqueles pressupostos
do calvinismo, do jansenismo ou mesmo da chamada "teologia
da crise" a que tantos comentadores, impressionados por algumas
aparencias, insistem em assimilá-la, nada sugere que sejam
muito mais plausiveis as interpretações judaisantes
alvitradas por outros, a começar pelo seu primeiro e principal
biografo -Max Brod- , que cuidam especialmente dar um significado
decisivo para a boa inteligencia de sua obra às simpatias
sionistas que em mais de uma ocasião pôde manifestar.
Não
seria preciso grande trabalho, aliás, para achar nos escritos
do proprio Kafka elementos capazes de desautorizar este modo de
ver. Quem como ele se exprimiu constantemente em formas obliquas
não deixou, sobretudo nos seus Diarios agora publicados na
integra, de desenganar expressamente aqueles que assim possam pensar.
"O que tenho eu de comum com os judeus?" perguntava com
efeito, em agosto de 1914. E acrescentava: "Mal poderei dizer
que tenha alguma coisa de comum comigo mesmo, e deveria ficar quieto
no meu canto, satisfeito de poder respirar".
Se
depois disso, em varias oportunidades, procurou superar a atitude
que só uma critica desatenta ou simplificadora fará
passar por demissionaria, a verdade é que acabou constatando
invariavelmente o malogro de tamanha veleidade. Numa das ultimas
entradas dos Diarios, a de 23 de janeiro de 1922, ele alinhava as
aspirações do sionismo - mas tambem anti-sionismo
- entre as que por momentos tentou professar sem, contudo, chegar
a qualquer resultado positivo.
Mas
neste ponto o problema assume uma complexidade que seria vão
querer dissimular. A intensidade com que Kafka chegou a ressentir
e exprimir a inconsistencia de sua vinculação a um
mundo, a uma sociedade e mesmo a uma familia que lhe eram fundamentalmente
estranhos e, por isso, intoleravelmente opressivos podem provir,
em parte consideravel - seria absurdo querer contestá-lo
-, de uma herança israelita. Contudo, pensava ele, não
entraria, por outro lado, um perigoso equivoco no intento dos que
procuram uma solução para tais contrariedades desatando-se
de todos os vinculos e de qualquer sujeição?
Ao
prisioneiro são impostos regulamentos da penitenciaria. Ao
jogador as regras do jogo. O dançarino segue os compassos
da musica. O homem livre, ou pretensamente livre, este acha-se,
no entanto, mais sujeito do que o prisioneiro, o jogador, o dançarino.
Apenas terá de obedecer a leis que desconhece, a regras de
jogo que ignora, a comandos que inutilmente procurará interpretar.
De modo que a liberdade do homem livre é, ao cabo, mais dificil
de padecer do que a prisão do prisioneiro. Em verdade ele
acabará condenando-se como a toupeira do conto, a fabricar
sua propria prisão ou, como o solteirão Blumfeld,
a impor-se um roteiro impessoal e mecanico.
Contra
a ilimitação e o informe que lhe oferece o gosto da
livre iniciativa o homem só poderá encontrar uma alternativa
valida na aquiescencia voluntaria a uma lei, a um lar, enfim a um
limite no espaço, que lhe permita sentir-se, igual aos seus
iguais e partilhar da vida em comum. Esse o principio "positivo",
se assim cabe dizer que se insinua através de todos os escritos
de Kafka e parece estar à base de sua propria estetica literaria.
Principio que, por outro lado, não deixa de explicar aquelas
simpatias pelo sionismo de que em dado momento se deixaria empolgar.
Mas
a mesma explicação será incompleta e insatisfatoria
sempre que se faça exclusiva, permitindo que o sentido humano
dessa obra venha a esmorecer em favor de algum significado programatico.
Frisar, no caso, sobretudo certos motivos naturalmente recorrentes,
a fim de dar-lhes o alcance de uma verdadeira predica é querer
tornar a parte maior do que o todo. O apelo hoje universal dos escritos
de Kafka esta relacionado, convem repeti-lo, à intensidade
com que neles se exprime uma experiencia singular. Mas é
tambem graças a essa intensidade que ela pôde ganhar
valor simbolico. A falta de raizes e de vinculos sociais que, na
qualidade de judeu, ele se achava particularmente apto a ressentir
já não é em nosso dias, uma peculiaridade de
sua raça, mas uma crescente exigencia da era da tecnica e
uma inelutavel imposição da vida nesses desertos de
pedra que são as nossas grandes aglomerações
urbanas.
Não
é pois de admirar que justamente os mais aptos a ressentir
semelhante condição sejam, por sua vez, os mais indicados
para representá-la. Que nas obras de ficção
modernas personagens de sangue israelita - um Swam em Proust, um
Bloom em Joyce, José do Egito em Tomas Mann - ocupem constantemente
certas posições-chaves, é apenas uma decorrencia
natural desse fato.
Por
outro lado, quem se viu constantemente renegado pela sociedade e
segregado dela, é compreensivel que, em epoca de inconformismo
se coloque na primeira linha dos negadores. O inconformismo, tão
frequente entre judeus, é, em suma, fruto de uma conformidade
com o seu fado, conduzida até às extremas consequencias.
De onde a parte excessiva, desproporcionada que lhes cabe, em nossos
dias, nos movimentos chamados "progressistas".
Kafka
não é certamente um progressista; ainda menos um radical.
Tendo assumido, embora, todo o individualismo de seu tempo, ele
que, ao contrario de Kierkegaard, não tivera a guiá-lo
a mão já fragil do cristianismo e que "não
se agarrou, como os sionistas, à cauda do mando talar de
Israel, tangido pelo vento", tratou de encontrar alem e através
das trevas, senão uma luz salvadora, ao menos seu reflexo
e seu rescaldo: "assim - escreve - quando chegamos a certa
altitude e o ar se rarefaz, invade-nos, de subito, o brilho do sol".
E assim
como não cabe resumir sua obra numa simples predica ou "mensagem"
filosofica, menos licito será defini-la em termos puramente
esteticos. Ou melhor: a criação artistica não
se concebia, para ele, sob a forma de atividade autonoma, dotada
de leis proprias e governada segundo essas leis. Aqui, como em tudo,
impõe-se, ao contrario, uma intima aquiescencia a algum comando
exterior, imperscrutavel, embora, nos seus mais profundos designos.
Por, pareceu-lhe sempre insatisfatorio o famoso dilema kierkegaardiano:
ou o estetico, ou o etico. "Em realidade - diz - só
se pode alcançar a plena fruição estetica através
de uma humilde experiencia moral".
A ambição
de justificar intelectualmente, para melhor obedecê-lo, esse
comando exterior tantas vezes caprichoso na aparencia, não
é, em si, ilegitima ou condenavel; é apenas improficua
na generalidade dos casos, pois a bondade de comando só há
de ser reconhecida por meio dos seus frutos. De onde o paradoxo
inevitavel de nossa mortal condição ou ao menos da
condição a que nos vemos condenados na era da tecnica:
os arcanos da lei tornaram-se indevassaveis e contudo a lei é
necessaria e deve ser cumprida.
Entendida,
ao pé da letra, num sentido por assim dizer propedeutico,
a conclusão é desoladora, e dá plena razão
a um dos interpretes mais inteligentes de sua obra quando observa
que, encarada desse angulo, a moda kafkiana não é
precisamente digna de aplausos. "Sua mensagem moral - observa
ainda Günther Andres - quer dizer sacrificium intellectus,
assim como sua mensagem politica se traduz por humilhação
deliberada". Outro critico, mais amigo de simplificações
chega a falar, neste caso, em pré-fascismo. Diagnostico este,
plausivel à primeira vista e que as Conversações
de 1920 com Gustav Janouch, só ultimamente publicadas, pareceriam
fortalecer na parte onde se apresenta a carencia de qualquer lei
intimamente consentida e vivida pelos homens como responsavel pela
atual dispeersão das massas. Gastando inutilmente as suas
forças caminham estes sem rumo certo e agitam-se no vazio.
"Os homens perderam suas raizes", dizia Kafka. E como
lhe opusesse seu interiocutor o surto moderno dos nacionalismos,
respondeu: "Mas isso se mostra precisamente a justeza do que
afirmo. Procura-se sempre o que não se tem. O progresso tecnico,
comum, hoje, a todos os povos, tende a privá-los cada vez
mais de suas caracteristicas. Por isso fazem-se nacionalistas. O
nacionalismo de nossos dias é um movimento de resistencia,
contra a garra dura da civilização".
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