KAFKIANA II

Publicado na Folha da Manhã, quarta-feira, 24 de setembro de 1952

Neste texto foi mantida a grafia original

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

O pensamento dominante na obra de Franz Kafka foge a qualquer interpretação que procure associar-lhe um sentido coerente e uma formulação sistematica.

É significativo que, ao primeiro relance, essa obra pareça dar razão, indiferentemente, aos mais diversos exegetas quando se empenham em filiá-la aos seus respectivos credos e doutrinas. Não parece menos exato, porem, que a parte de verdade presente em cada uma dessas variadas filiações se dissipa rapidamente, todas as vezes em que seus interpretes buscam traduzir certas alusões fragmentarias de modo a convertê-las em pontos de vista dogmaticos ou facciosos.

Essas tentativas, constantemente frustadas e, apesar disso, continuamente reiteradas, parecem provir, em ultima analise, de uma falsa colocação do problema critico. Franz Kafka não foi, certamente, um simples literato ou, à medida de seu grande contemporaneo James Joyce, um genio inumano e frigido, ocupado em edificar laboriosamente um monumento glorioso. Foi, isto sim, um criador e um poeta, poeta no sentido amplo e, a rigor intraduzivel que encerra o vocabulo alemão Dichter. Tambem foi, exatamente por esse motivo, o oposto de um filosofo, de um teologo, de um apostolo, de um propagandista. Não chegou sequer a fundar sua cosmogonia ou sua mitologia privada, que pudesse suprir, como no caso de Rilke, por exemplo, ou no de Yeats, alguma incompatibilidade essencial com as religiões reveladas e publicas.

Assim, se sua obra se mostra, no todo, irredutivel àqueles pressupostos do calvinismo, do jansenismo ou mesmo da chamada "teologia da crise" a que tantos comentadores, impressionados por algumas aparencias, insistem em assimilá-la, nada sugere que sejam muito mais plausiveis as interpretações judaisantes alvitradas por outros, a começar pelo seu primeiro e principal biografo -Max Brod- , que cuidam especialmente dar um significado decisivo para a boa inteligencia de sua obra às simpatias sionistas que em mais de uma ocasião pôde manifestar.

Não seria preciso grande trabalho, aliás, para achar nos escritos do proprio Kafka elementos capazes de desautorizar este modo de ver. Quem como ele se exprimiu constantemente em formas obliquas não deixou, sobretudo nos seus Diarios agora publicados na integra, de desenganar expressamente aqueles que assim possam pensar. "O que tenho eu de comum com os judeus?" perguntava com efeito, em agosto de 1914. E acrescentava: "Mal poderei dizer que tenha alguma coisa de comum comigo mesmo, e deveria ficar quieto no meu canto, satisfeito de poder respirar".

Se depois disso, em varias oportunidades, procurou superar a atitude que só uma critica desatenta ou simplificadora fará passar por demissionaria, a verdade é que acabou constatando invariavelmente o malogro de tamanha veleidade. Numa das ultimas entradas dos Diarios, a de 23 de janeiro de 1922, ele alinhava as aspirações do sionismo - mas tambem anti-sionismo - entre as que por momentos tentou professar sem, contudo, chegar a qualquer resultado positivo.

Mas neste ponto o problema assume uma complexidade que seria vão querer dissimular. A intensidade com que Kafka chegou a ressentir e exprimir a inconsistencia de sua vinculação a um mundo, a uma sociedade e mesmo a uma familia que lhe eram fundamentalmente estranhos e, por isso, intoleravelmente opressivos podem provir, em parte consideravel - seria absurdo querer contestá-lo -, de uma herança israelita. Contudo, pensava ele, não entraria, por outro lado, um perigoso equivoco no intento dos que procuram uma solução para tais contrariedades desatando-se de todos os vinculos e de qualquer sujeição?

Ao prisioneiro são impostos regulamentos da penitenciaria. Ao jogador as regras do jogo. O dançarino segue os compassos da musica. O homem livre, ou pretensamente livre, este acha-se, no entanto, mais sujeito do que o prisioneiro, o jogador, o dançarino. Apenas terá de obedecer a leis que desconhece, a regras de jogo que ignora, a comandos que inutilmente procurará interpretar. De modo que a liberdade do homem livre é, ao cabo, mais dificil de padecer do que a prisão do prisioneiro. Em verdade ele acabará condenando-se como a toupeira do conto, a fabricar sua propria prisão ou, como o solteirão Blumfeld, a impor-se um roteiro impessoal e mecanico.

Contra a ilimitação e o informe que lhe oferece o gosto da livre iniciativa o homem só poderá encontrar uma alternativa valida na aquiescencia voluntaria a uma lei, a um lar, enfim a um limite no espaço, que lhe permita sentir-se, igual aos seus iguais e partilhar da vida em comum. Esse o principio "positivo", se assim cabe dizer que se insinua através de todos os escritos de Kafka e parece estar à base de sua propria estetica literaria. Principio que, por outro lado, não deixa de explicar aquelas simpatias pelo sionismo de que em dado momento se deixaria empolgar.

Mas a mesma explicação será incompleta e insatisfatoria sempre que se faça exclusiva, permitindo que o sentido humano dessa obra venha a esmorecer em favor de algum significado programatico. Frisar, no caso, sobretudo certos motivos naturalmente recorrentes, a fim de dar-lhes o alcance de uma verdadeira predica é querer tornar a parte maior do que o todo. O apelo hoje universal dos escritos de Kafka esta relacionado, convem repeti-lo, à intensidade com que neles se exprime uma experiencia singular. Mas é tambem graças a essa intensidade que ela pôde ganhar valor simbolico. A falta de raizes e de vinculos sociais que, na qualidade de judeu, ele se achava particularmente apto a ressentir já não é em nosso dias, uma peculiaridade de sua raça, mas uma crescente exigencia da era da tecnica e uma inelutavel imposição da vida nesses desertos de pedra que são as nossas grandes aglomerações urbanas.

Não é pois de admirar que justamente os mais aptos a ressentir semelhante condição sejam, por sua vez, os mais indicados para representá-la. Que nas obras de ficção modernas personagens de sangue israelita - um Swam em Proust, um Bloom em Joyce, José do Egito em Tomas Mann - ocupem constantemente certas posições-chaves, é apenas uma decorrencia natural desse fato.

Por outro lado, quem se viu constantemente renegado pela sociedade e segregado dela, é compreensivel que, em epoca de inconformismo se coloque na primeira linha dos negadores. O inconformismo, tão frequente entre judeus, é, em suma, fruto de uma conformidade com o seu fado, conduzida até às extremas consequencias. De onde a parte excessiva, desproporcionada que lhes cabe, em nossos dias, nos movimentos chamados "progressistas".

Kafka não é certamente um progressista; ainda menos um radical. Tendo assumido, embora, todo o individualismo de seu tempo, ele que, ao contrario de Kierkegaard, não tivera a guiá-lo a mão já fragil do cristianismo e que "não se agarrou, como os sionistas, à cauda do mando talar de Israel, tangido pelo vento", tratou de encontrar alem e através das trevas, senão uma luz salvadora, ao menos seu reflexo e seu rescaldo: "assim - escreve - quando chegamos a certa altitude e o ar se rarefaz, invade-nos, de subito, o brilho do sol".

E assim como não cabe resumir sua obra numa simples predica ou "mensagem" filosofica, menos licito será defini-la em termos puramente esteticos. Ou melhor: a criação artistica não se concebia, para ele, sob a forma de atividade autonoma, dotada de leis proprias e governada segundo essas leis. Aqui, como em tudo, impõe-se, ao contrario, uma intima aquiescencia a algum comando exterior, imperscrutavel, embora, nos seus mais profundos designos. Por, pareceu-lhe sempre insatisfatorio o famoso dilema kierkegaardiano: ou o estetico, ou o etico. "Em realidade - diz - só se pode alcançar a plena fruição estetica através de uma humilde experiencia moral".

A ambição de justificar intelectualmente, para melhor obedecê-lo, esse comando exterior tantas vezes caprichoso na aparencia, não é, em si, ilegitima ou condenavel; é apenas improficua na generalidade dos casos, pois a bondade de comando só há de ser reconhecida por meio dos seus frutos. De onde o paradoxo inevitavel de nossa mortal condição ou ao menos da condição a que nos vemos condenados na era da tecnica: os arcanos da lei tornaram-se indevassaveis e contudo a lei é necessaria e deve ser cumprida.

Entendida, ao pé da letra, num sentido por assim dizer propedeutico, a conclusão é desoladora, e dá plena razão a um dos interpretes mais inteligentes de sua obra quando observa que, encarada desse angulo, a moda kafkiana não é precisamente digna de aplausos. "Sua mensagem moral - observa ainda Günther Andres - quer dizer sacrificium intellectus, assim como sua mensagem politica se traduz por humilhação deliberada". Outro critico, mais amigo de simplificações chega a falar, neste caso, em pré-fascismo. Diagnostico este, plausivel à primeira vista e que as Conversações de 1920 com Gustav Janouch, só ultimamente publicadas, pareceriam fortalecer na parte onde se apresenta a carencia de qualquer lei intimamente consentida e vivida pelos homens como responsavel pela atual dispeersão das massas. Gastando inutilmente as suas forças caminham estes sem rumo certo e agitam-se no vazio. "Os homens perderam suas raizes", dizia Kafka. E como lhe opusesse seu interiocutor o surto moderno dos nacionalismos, respondeu: "Mas isso se mostra precisamente a justeza do que afirmo. Procura-se sempre o que não se tem. O progresso tecnico, comum, hoje, a todos os povos, tende a privá-los cada vez mais de suas caracteristicas. Por isso fazem-se nacionalistas. O nacionalismo de nossos dias é um movimento de resistencia, contra a garra dura da civilização".

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