KAFKIANA III

Publicado na Folha da Manhã, terça-feira, 30 de setembro de 1952

Neste texto foi mantida a grafia original

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

Não é licito ou se quer possivel fixar em palavras claras a moral de um moralista que só pôde exprimir-se de modo alusivo e enigmatico. Quem se recusou constantemente a aceitar para si os remedios faceis, as soluções simplificadoras e "salvadoras", quem, em contraste com seus amigos sionistas, não se agarrou "às bordas do taleth de Israel, batido pelos ventos" mal poderia arvorar-se em propedeuta.
Nada diz, nada dizia a Franz Kafka, que devesse ser bem sucedida essa atroz demanda dos que, ante a falta de raizes, o desaparecimento de todos os vinculos, o descredito de todas as convenções, se empenham, nos nossos dias, em criar artificialmente novas raizes, novos vinculos e convenções novas. Pode-se mesmo, segundo todas as probabilidades, garantir de antemão que ela será esteril, como esteril foi o esforço de Joseph K. do Processo para defender-se do crime que lhe imputavam ou o de K., o agrimensor, para alcançar as portas do inacessivel Castelo.
Só os mais empedermidos otimistas tratarão de ver nestas narrativas algum significado apologetico. Kafka não pertence, porem aos otimistas, de modo que não terá, para esses, a menor serventia. Não é um caminho o que ele indica, é antes um impasse.
Não faltará contudo, entre os menos trefegos, quem ache algum sentido em suas palavras, onde ele escreve, por exemplo: "Existe um fim, mas não existe o caminho; aquilo que costumamos chamar caminho é apenas perplexidade". Ou então: "Aquele que procura, não encontrará, mas o que não procura, esse será achado". Se alguma idéia moral se pode tirar dessas meditações estará com certeza no polo oposto aquelas outras idéias vislumbradas pelos que rotularam Kafka de escritor pré-fascista. E se há nessa obra algum claro requisitorio, ele o dirige, sem duvida, contra os que, por vão orgulho, buscam impor a todo transe sua vontade de poder e dominio.
Em um dos livros de Martim Buber, esse novo profeta de Israel que ele notoriamente frequentou, lê-se que "nenhum homem, posto que se ofereçam a ele todos os céus e embora todos os mundos lhe sejam abertos, pode fazer-se soberbo enquanto repouse sobre si mesmo; enfuna-se porem, o que se sente acima dos demais, o que usa de peso e medida, o que profere sentenças (Buber, Von Geist des Judentums, Leipzig, 1916, pag. 176,s.).
Embora a aproximação, creio eu, ainda não tenha sido tentada neste caso, julgo ouvir um eco nitido de palavras tais como essas ao longo de toda aquela extensa "carta ao pai", tão decisiva para a boa inteligencia da obra de Kafka. "De tua poltrona governas o mundo", lê-se nesse documento. "Tua opinião era a justa, todas as outras idiotas, excessivas, anormais. (...)
Tinhas adquirido, para mim, aquela misteriosa qualidade que têm todos os tiranos, cujos direitos se fundam sobre a propria pessoa, não sobre o entendimento".
O mundo ideal, que servia de tela de fundo para essas reflexões e, em verdade, para toda a obra de Kafka, reflete talvez uma secreta nostalgia daquelas pequeninas comunidades da estepe da Ucrania onde os judeus, ao oposto de seus irmãos ocidentais, ainda viviam presos à terra, numa vida de verdadeiros lavradores e camponios. O mundo que Buber especialmente ressuscita ao reviver a seita mistica dos Chassidim e as historias de seu Baal Chem. Ou ao menos a nostalgia daquela "route commune", que Flaubert descobriu melancolicamente no proprio circulo de familia dos seus sobrinhos, após ter sacrificado a vida inteira à "literatura". "Ils sont dans le vrai", foram então suas palavras, preservadas por Caroline Commanviele, que Kafka citaria constantemente a seu amigo Max Brod.
Os homens de nosso tempo já perderam de vista aquele mundo e esta rota. Sua mobilidade irrefreavel, sua dispersão, sua desorientação, não deixam mais pressentir a cidade humana cada vez mais remota, onde a palavra da lei seria humildemente escutada. Assim, para a interrogação capital dos que buscam afanosamente uma vida em comum digna de viver-se, Kafka não tem resposta, ao menos uma resposta inteligivel nos dias atuais. "Existe um fim, mas o caminho não existe, aquilo que costumamos chamar caminho é apenas perplexidade".
Entretanto, a voz que não chega a articular-se em predica bem pode transfigurar-se em oração. Quer dizer em criação artistica. Essa alternativa, talvez inepta, e cuja pobre eficacia deveu patentear-se claramente a quem recomendaria a destruição de todos os seus manuscritos, ele a perseguiu incessantemente. Ao contrario, porem, de Flaubert, não sacrificou tudo à "literatura", que serve para isolar-nos da comunidade. Sobretudo nos ultimos tempos, essa palavra -literatura - teve constantemente em seus escritos um significado negativo. Preferia-lhe antes a palavra alemã Dichtung, que nos dicionarios aparece com o sentido de "Poesia", mas que tambem quer dizer "condenação"". "Dichtung", observa ele, "é condensação": uma essencia. Literatura, ao contrario, é dissolução: uma especiaria, destinada a tornar mais suportavel nossa vida inconsciente; um narcotico". A verdadeira criação artistica não serve para adormecer-nos: ao contrario, serve para despertar-nos.
Nas Conversações, essa distinção preside às observações, extraordinariamente sugestivas, que lhe inspiram certos autores contemporaneos. De Maximo Gorki, por exemplo, diz que vê e sente tudo por intermedio da pena; provam-no as notas que redigiu sobre Tolstoi. "Ora, a pena não é um instrumento, é um orgão do escritor". E tratando de um livro de Johannes R. Becher em sua fase expressionista, faz o seguinte comentario: "Não compreendo estes poemas. Dominam aqui, de tal modo, a bulha e o tumulto verbal, que não chegamos a sair de nós mesmos. As palavras não se transformam em pontes, mas em muralhas; muralhas altas, intransponiveis. Esbarramos incessantemente nas palavras, a tal ponto que não conseguimos penetrar o conteudo. As palavras não chegam a condensar-se, aqui, em linguagem. É tudo, uma grita e mais nada". O mesmo ponto de vista encontra-se à base de sua opinião sobre os desenhos de George Grosz, cujo prestigio efemero, ainda não se afirmara, ao seu tempo. "A força de expressão" —dizia— "procede neles de uma fraqueza bem sensivel. Esta a causa verdadeira do desespero e tambem da veemencia que distingue estes desenhos". E acrescentava: "É literatura desenhada".
Há nesse modo de ver uma explicação possivel para a nitidez cristalina , quase ascetica, da linguagem de Kafka e ainda para a forma narrativa que, depois de Martin Buber, lhe parece traço distintivo de sua raça, em contraste com os europeus. Nós judeus, diz "não podemos representar as coisas de maneira estatica. Elas se apresentam para nós em seu constante fluxo, em movimento, em transformação. Somos narradores". Refletindo a mobilidade das coisas a narrativa não se recusa, porem, a dar-lhes sua moldura propria e com isso uma armadura, um limite, uma lei. E neste ponto, especialmente, ela se distancia das terras do sem fim do lirismo e da musica.
De Henry James, que deu tamanho espaço, em seus romances, às artes e aos artistas plasticos —posto que suas opiniões, especialmente sobre pintura, fossem animadas sempre por um estreito convencionalismo— tambem se conta que era insensivel à musica (e tambem à poesia lirica). Não entraria nessa recusa comum a expressão de uma intima hostilidade dos dois autores a tudo quanto, em arte se mostrasse insubmisso e informe?
No caso de Kafka, entretanto não se pode falar, a rigor, em insensibilidade à musica. Esta é "um pouco como o mar" —disse certa vez, a Janouch. Deixa-me subjugado, enfeitiçado, arrebatado e, no entanto amedrontado, tremendamente amedrontado pela sua imensidão, pelo seu indefinido". E em outra ocasião, comparando-a, digamos assim, às artes literarias (Dichtung), ainda observa: "A musica gera excitações novas, mais requintadas, mais complicadas, por isso mais perigosas. A criação literaria, porem, visa lançar claridade sobre a desordem nascida das excitações, procura expurgar delas a consciencia, e assim humanizar. A musica multiplica a vida dos sentidos. A criação literaria domina-a, sublimando-a".
Depois disso, como poderão sustentar-se tantos mal-entendidos que continuam, e cada vez mais, a perseguir-lhe a memoria? Na realidade vemos hoje seu publico mais constante entre os que deveriam andar mais longe de compreendê-lo e seus mais rancorosos negadores entre alguns dos que, com melhores razões, poderiam receber seu estimulo. Em quem consumiu toda a vida na demanda de uma luz redentora e indestrutivel colou-se complacentemente a etiqueta de poeta noturno. E, com a mesma complacencia, viu-se um sinal de alheamento às coisas do tempo, em beneficio de qualquer vaga, e sutil transcendencia, no proprio fervor com que viveu a vida de nosso tempo, em seus aspectos problematicos e tragicos.

Para imprimir este texto clique o botão direito do seu mouse.

 


© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.