SÉRGIO
BUARQUE DE HOLANDA
Não
é licito ou se quer possivel fixar em palavras claras a moral
de um moralista que só pôde exprimir-se de modo alusivo
e enigmatico. Quem se recusou constantemente a aceitar para si os
remedios faceis, as soluções simplificadoras e "salvadoras",
quem, em contraste com seus amigos sionistas, não se agarrou
"às bordas do taleth de Israel, batido pelos ventos"
mal poderia arvorar-se em propedeuta.
Nada diz, nada dizia a Franz Kafka, que devesse ser bem sucedida
essa atroz demanda dos que, ante a falta de raizes, o desaparecimento
de todos os vinculos, o descredito de todas as convenções,
se empenham, nos nossos dias, em criar artificialmente novas raizes,
novos vinculos e convenções novas. Pode-se mesmo,
segundo todas as probabilidades, garantir de antemão que
ela será esteril, como esteril foi o esforço de Joseph
K. do Processo para defender-se do crime que lhe imputavam ou o
de K., o agrimensor, para alcançar as portas do inacessivel
Castelo.
Só os mais empedermidos otimistas tratarão de ver
nestas narrativas algum significado apologetico. Kafka não
pertence, porem aos otimistas, de modo que não terá,
para esses, a menor serventia. Não é um caminho o
que ele indica, é antes um impasse.
Não faltará contudo, entre os menos trefegos, quem
ache algum sentido em suas palavras, onde ele escreve, por exemplo:
"Existe um fim, mas não existe o caminho; aquilo que
costumamos chamar caminho é apenas perplexidade". Ou
então: "Aquele que procura, não encontrará,
mas o que não procura, esse será achado". Se
alguma idéia moral se pode tirar dessas meditações
estará com certeza no polo oposto aquelas outras idéias
vislumbradas pelos que rotularam Kafka de escritor pré-fascista.
E se há nessa obra algum claro requisitorio, ele o dirige,
sem duvida, contra os que, por vão orgulho, buscam impor
a todo transe sua vontade de poder e dominio.
Em um dos livros de Martim Buber, esse novo profeta de Israel que
ele notoriamente frequentou, lê-se que "nenhum homem,
posto que se ofereçam a ele todos os céus e embora
todos os mundos lhe sejam abertos, pode fazer-se soberbo enquanto
repouse sobre si mesmo; enfuna-se porem, o que se sente acima dos
demais, o que usa de peso e medida, o que profere sentenças
(Buber, Von Geist des Judentums, Leipzig, 1916, pag. 176,s.).
Embora a aproximação, creio eu, ainda não tenha
sido tentada neste caso, julgo ouvir um eco nitido de palavras tais
como essas ao longo de toda aquela extensa "carta ao pai",
tão decisiva para a boa inteligencia da obra de Kafka. "De
tua poltrona governas o mundo", lê-se nesse documento.
"Tua opinião era a justa, todas as outras idiotas, excessivas,
anormais. (...)
Tinhas adquirido, para mim, aquela misteriosa qualidade que têm
todos os tiranos, cujos direitos se fundam sobre a propria pessoa,
não sobre o entendimento".
O mundo ideal, que servia de tela de fundo para essas reflexões
e, em verdade, para toda a obra de Kafka, reflete talvez uma secreta
nostalgia daquelas pequeninas comunidades da estepe da Ucrania onde
os judeus, ao oposto de seus irmãos ocidentais, ainda viviam
presos à terra, numa vida de verdadeiros lavradores e camponios.
O mundo que Buber especialmente ressuscita ao reviver a seita mistica
dos Chassidim e as historias de seu Baal Chem. Ou ao menos a nostalgia
daquela "route commune", que Flaubert descobriu melancolicamente
no proprio circulo de familia dos seus sobrinhos, após ter
sacrificado a vida inteira à "literatura". "Ils
sont dans le vrai", foram então suas palavras, preservadas
por Caroline Commanviele, que Kafka citaria constantemente a seu
amigo Max Brod.
Os homens de nosso tempo já perderam de vista aquele mundo
e esta rota. Sua mobilidade irrefreavel, sua dispersão, sua
desorientação, não deixam mais pressentir a
cidade humana cada vez mais remota, onde a palavra da lei seria
humildemente escutada. Assim, para a interrogação
capital dos que buscam afanosamente uma vida em comum digna de viver-se,
Kafka não tem resposta, ao menos uma resposta inteligivel
nos dias atuais. "Existe um fim, mas o caminho não existe,
aquilo que costumamos chamar caminho é apenas perplexidade".
Entretanto, a voz que não chega a articular-se em predica
bem pode transfigurar-se em oração. Quer dizer em
criação artistica. Essa alternativa, talvez inepta,
e cuja pobre eficacia deveu patentear-se claramente a quem recomendaria
a destruição de todos os seus manuscritos, ele a perseguiu
incessantemente. Ao contrario, porem, de Flaubert, não sacrificou
tudo à "literatura", que serve para isolar-nos
da comunidade. Sobretudo nos ultimos tempos, essa palavra -literatura
- teve constantemente em seus escritos um significado negativo.
Preferia-lhe antes a palavra alemã Dichtung, que nos dicionarios
aparece com o sentido de "Poesia", mas que tambem quer
dizer "condenação"". "Dichtung",
observa ele, "é condensação": uma
essencia. Literatura, ao contrario, é dissolução:
uma especiaria, destinada a tornar mais suportavel nossa vida inconsciente;
um narcotico". A verdadeira criação artistica
não serve para adormecer-nos: ao contrario, serve para despertar-nos.
Nas Conversações, essa distinção preside
às observações, extraordinariamente sugestivas,
que lhe inspiram certos autores contemporaneos. De Maximo Gorki,
por exemplo, diz que vê e sente tudo por intermedio da pena;
provam-no as notas que redigiu sobre Tolstoi. "Ora, a pena
não é um instrumento, é um orgão do
escritor". E tratando de um livro de Johannes R. Becher em
sua fase expressionista, faz o seguinte comentario: "Não
compreendo estes poemas. Dominam aqui, de tal modo, a bulha e o
tumulto verbal, que não chegamos a sair de nós mesmos.
As palavras não se transformam em pontes, mas em muralhas;
muralhas altas, intransponiveis. Esbarramos incessantemente nas
palavras, a tal ponto que não conseguimos penetrar o conteudo.
As palavras não chegam a condensar-se, aqui, em linguagem.
É tudo, uma grita e mais nada". O mesmo ponto de vista
encontra-se à base de sua opinião sobre os desenhos
de George Grosz, cujo prestigio efemero, ainda não se afirmara,
ao seu tempo. "A força de expressão" dizia
"procede neles de uma fraqueza bem sensivel. Esta a causa verdadeira
do desespero e tambem da veemencia que distingue estes desenhos".
E acrescentava: "É literatura desenhada".
Há nesse modo de ver uma explicação possivel
para a nitidez cristalina , quase ascetica, da linguagem de Kafka
e ainda para a forma narrativa que, depois de Martin Buber, lhe
parece traço distintivo de sua raça, em contraste
com os europeus. Nós judeus, diz "não podemos
representar as coisas de maneira estatica. Elas se apresentam para
nós em seu constante fluxo, em movimento, em transformação.
Somos narradores". Refletindo a mobilidade das coisas a narrativa
não se recusa, porem, a dar-lhes sua moldura propria e com
isso uma armadura, um limite, uma lei. E neste ponto, especialmente,
ela se distancia das terras do sem fim do lirismo e da musica.
De Henry James, que deu tamanho espaço, em seus romances,
às artes e aos artistas plasticos posto que suas opiniões,
especialmente sobre pintura, fossem animadas sempre por um estreito
convencionalismo tambem se conta que era insensivel à
musica (e tambem à poesia lirica). Não entraria nessa
recusa comum a expressão de uma intima hostilidade dos dois
autores a tudo quanto, em arte se mostrasse insubmisso e informe?
No caso de Kafka, entretanto não se pode falar, a rigor,
em insensibilidade à musica. Esta é "um pouco
como o mar" disse certa vez, a Janouch. Deixa-me subjugado,
enfeitiçado, arrebatado e, no entanto amedrontado, tremendamente
amedrontado pela sua imensidão, pelo seu indefinido".
E em outra ocasião, comparando-a, digamos assim, às
artes literarias (Dichtung), ainda observa: "A musica gera
excitações novas, mais requintadas, mais complicadas,
por isso mais perigosas. A criação literaria, porem,
visa lançar claridade sobre a desordem nascida das excitações,
procura expurgar delas a consciencia, e assim humanizar. A musica
multiplica a vida dos sentidos. A criação literaria
domina-a, sublimando-a".
Depois disso, como poderão sustentar-se tantos mal-entendidos
que continuam, e cada vez mais, a perseguir-lhe a memoria? Na realidade
vemos hoje seu publico mais constante entre os que deveriam andar
mais longe de compreendê-lo e seus mais rancorosos negadores
entre alguns dos que, com melhores razões, poderiam receber
seu estimulo. Em quem consumiu toda a vida na demanda de uma luz
redentora e indestrutivel colou-se complacentemente a etiqueta de
poeta noturno. E, com a mesma complacencia, viu-se um sinal de alheamento
às coisas do tempo, em beneficio de qualquer vaga, e sutil
transcendencia, no proprio fervor com que viveu a vida de nosso
tempo, em seus aspectos problematicos e tragicos.
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