SÉRGIO
BUARQUE DE HOLANDA
ROMA,
janeiro (Via Panair do Brasil) A fundação,
há quatrocentos anos, de um povoado de portugueses apartado
doze leguas do litoral atlantico, em sertão quase invio só
acessivel através de asperas veredas, que até ao seculo
passado seriam o tormento ou o espantalho dos viajantes sugere
problemas que transcendem o alcance de uma simples historia regional.
Em parte alguma das suas conquistas, certamente em lugar algum do
Brasil, tinham os lusitanos formado um assento urbano tão
longe da costa maritima ou dos rios navegaveis. O principio que,
expresso ou não, governa por essa epoca toda a sua expansão
ultramarina, manda que as regiões de terra a dentro não
se povoem antes de assegurado o povoamento, a defesa e a posse da
marinha. O contrario seria desampararem-se, com funesto efeito,
as mesmas conquistas, sobretudo se em sitios infestados de inimigos
e corsarios.
Precisamente no Brasil, aquele principio, ditado pelas condições
especiais de sua metropole européia, que não dispunha
de gente numerosa e nem, por isso mesmo, de poderosa milicia, para
ensaiar em seu longo imperio uma empresa de molde aparatoso, comparavel
à que se vinha realizando nas Indias de Castela, é
manifesto já nas cartas de doação das capitanias,
onde se estipula que aos donatarios será licito erigirem
tantas vilas quantas queiram junto ao mar ou aos rios navegaveis,
porem que pela terra a dentro as não poderão fazer,
salvo se entre uma e outra corra espaço minimo de seis leguas.
A idéia era, claramente, conterem-se os povoadores nas imediações
dos portos de embarque e pontos vulneraveis da costa, pois não
seriam os colonos em tamanho numero que pudessem ser encaminhados
ao sertão sem se despovoarem aqueles sitios. Em resultado
de uma tal providencia, o Brasil quinhentista não abriria
exceção à regra então dominante no mundo
português, que um historiador dos nossos dias definiu sugestivamente
dizendo que constava de "uma linha de fortalezas e feitorias
de dez mil milhas de comprido" (1)
Mas a exceção existe. Existe, paradoxalmente, no ponto
exato onde a barreira das montanhas, que no Brasil acompanham a
orla costeira, parece oferecer maior estorvo ao acesso e penetração
do territorio. Ainda mais: "O empenho de triunfar sobre esse
natural obstaculo e de se instalar serra acima parece perseguir
os colonizadores logo depois de familiarizados com o litoral vicentino".
Nada, ou quase nada, sabemos das entradas daqueles portugueses reinóis
ou mazombos, brancos e mestiços da terra que, antes
de chegar a armada de Martim Afonso de Sousa, tinham na ilha de
São Vicente um povoado estavel, onde se dedicavam ao trafico
de escravos indigenas. Mas não foi certamente por acaso que
o capitão português, tendo corrido toda a costa conhecida
dos demonios portugueses na America, elegeu aquele ponto para penetrar
o sertão e ali levantar pelourinho nos campos de Piratininga.
Como, por falta de comodidade, logo se dispersasse essa primeira
vila, nem assim esmorece o empenho de povoar o planalto. Passados
quase vinte anos, em 1550, o padre jesuita Leonardo Nunes escala,
por sua vez, a serra fragosa, encontra ali derramados os cristãos
pertencentes ao nucleo disperso, que não tinham tornado ao
litoral, e trata de juntá-los novamente. Como não
pudessem ter vida civil ou religiosa, por falta de quem curasse
disso, fez com que se reunissem todos, desta vez à borda
do campo, em torno da pequena igreja que fizera construir. Com razões
provaveis supõe Serafim Leite que se tratasse da ermida e
povoação, mais tarde vila, de Santo André,
o celebre reduto de João Ramalho e de seus filhos mamelucos
(2).
O nucleo originario da atual São Paulo é notorio que
não foi ali, mas em lugar distante duas leguas para o sertão,
à margem do rio que então se chamava Piratininga e,
de fato, "onde Martim Afonso de Sousa primeiro povoou"
(3). Sabe-se hoje que a fundação dessa nova aldeia,
por iniciativa e esforço de Nobrega, ocorreu no dia 29 de
agosto de 1553. Quando, a 25 de janeiro do ano seguinte, se inaugurou
a casa nova, de taipa, destinada aos irmãos, ainda se conservava
no local a velha cabana em que ficara situada a "escola de
meninos" do irmão Afonso Rodrigues, diferente da "escola
de gramatica", ou de latim, do irmão José de
Anchieta. O adjetivo "velhissimo", expressamente aplicado
ao edifício ("pauperrimo et vetustissimo... tuguriolum")
no texto jesuitico onde vêm consignados estes fatos, não
combina facilmente com a suspeita de que datasse apenas do estabelecimento
preliminar dos inacianos anterior de cinco meses à fundação
oficial e ao batismo do povoado. É perfeitamente natural,
por outro lado, a suposição de que subsistisse ainda
em 1554, no local, alguma das taperas da vila de Martim Afonso de
Sousa. Nesse caso não é audacioso dizer que o povoado
de Nobrega se enlaça perfeitamente ao de Martim Afonso e,
assim, que as comemorações atuais se hão de
referir, não tanto à fundação inicial,
como a uma segunda e definitiva fundação. A primeira
dataria, em realidade, de 1532.
Nada disso diminui o papel que coube ao Provincial dos jesuitas
nas origens da atual São Paulo. Melhor do que outros, melhor
do que o primeiro Governador-Geral, soubera ele ver as vantagens,
ao menos para o mister da catequese, de uma entrada e fixação
nas areas de serra-acima. E ainda que essas vantagens parecessem
resumir-se, de inicio, no seu desejo de conservar o gentio da terra
livre de contacto assiduo com os colonos, o interesse que depois
mostrou na mudança para o novo local dos moradores de Santo
André da Borda do Campo mudança que se fará
em 1560 por determinação de Mem de Sá
indica que tal razão não seria preponderante em seu
pensamento. E em carta de março de 53, escrita a seu mandado
e só agora divulgada por Serafim Leite, diz-se que já
era intenção do Provincial ir pela terra dentro e
fazer entre os gentios "uma cidade" (4).
Contra esse pensamento, as razões opostas por Tomé
de Sóusa, que tratou obstinadamente de embargar o plano de
um novo estabelecimento na boca do sertão, obedecem ainda
à concepção portuguesa tradicional, que só
via em uma tal iniciativa o risco de ficar inteiramente desamparado
o litoral maritimo. Esse risco era particularmente sensível
no momento em que surgia noticia ou esperança de haver ouro
e prata por aquele sertão. À mesma razão alude
Nobrega quando tenta discriminar as causas da resistencia do governador.
"Porque", observa em carta daquele ano de 53, "fôra
abrir as portas a grandes males e a se despovoar esta capitania".
Adiante, na mesma carta, justifica-se mais pormenorizadamente aquela
noticia, ou esperança, com a alegação de se
terem encontrado minas de prata, embora, por falta de quem as fundisse,
não se soubesse ao certo o que fosse, "as quais minas",
diz-se textualmente, "acharam e descobriram os castelhanos
do Paraguai, que estarão daqui desta Capitania (de São
Vicente) 100 leguas e está averiguado estarem na Conquista
de El Rei de Portugal".
É de todo interesse aproximar-se a essa informação
o constante de um documento aparentemente ainda inedito existente
no "Archivo General de Indias de Sevilha", onde o espião
castelhano Martin de Orue relata os resultados da missão
secreta que lhe fora confiada em cedula de sua majestade Catolica,
de obter pessoalmente, com a melhor diligencia, em Lisboa, varias
informações relativas à expedição
de Luís de Melo. Nesse papel, a que tive oportunidade de
aludir em outra ocasião (5), declara Orue que, no mês
de setembro de 1553, "veio um homem da mesma capitania de São
Vicente e vizinho dela, chamado Adão Gonçalves, por
parte do capitão daquela terra, o qual trouxe certos metais
que houvera da gente do Rio (da Prata), que lhe haviam dado os espanhóis
que tinham pousado em sua casa e o que lhes tomou o capitão
da terra e parte desses metais diz que eram da Assunção
e parte do Piquiri". Acrescenta que, chegando a Lisboa, Gonçalves
dera parte do caso a Martins Afonso de Sousa e, feitos dos metais
certos ensaios, acharam que era prata e de boa qualidade (6).
A noticia logo se divulgaria em Lisboa e os mesmos Martim Afonso
e Adão Gonçalves, juntamente com dois mercadores que
tinham seus negocios de açucar em São Vicente, a saber
o flamengo João Benyste (isto é Jan Van Hielst, agente
dos Schetz de Antuerpia) e o genovês Felipe de Adorno, pleitearam
de sua alteza que por nenhum modo permitisse passagem pelo caminho
entre São Vicente e Assunção, caminho este
que Tomé de Sousa mandaria cegar, por assim convir melhor
à real fazenda. Ao mesmo tempo solicitavam lhes fosse autorizado
entrar pela terra a dentro em busca de minas e metais, e que onde
os achassem e povoassem, pagariam os quintos e direitos pertencentes
à Coroa. Outrossim, onde quer que encontrassem os ditos metais,
e por espaço de vinte leguas em torno, nenhuma outra pessoa
poderia entrar a buscá-los ou descobrí-los.
Segundo o mesmo documento, deferiu El Rei ao pedido, dando aos requerentes
o alvará necessario. E seu fim comenta Martin de Orue
"era ir às minas do Piquiri, porque dizem que aquela
terra e ainda a Assunção entram na demarcação
do rei de Portugal". Com esse despacho, já em março
do ano seguinte saiam de Lisboa, com destino a São Vicente,
os ditos Gonçalves e Adorno, decididos a pôr o plano
em execução.
Seja qual for a parte de fantasia que possa entrar na relação
de Ourue, entregue ao "Conselho de Sua Majestade o Imperador
em Valadolid" a 5 de setembro de 1554, suas informações
completam e ampliam em partes o que sabemos através das palavras
de Nobrega e de Tomé de Sousa. A noticia da existencia de
prata no Piquiri resultaria sem fundamento após exames mais
acurados do que os que se teriam ensaiado em 1553 no metal ali encontrado.
E quando Felipe de Adorno e Adão Gonçalves partiram
de Lisboa, em março de 1554 já estava fundada, e com
seu nome definitivo, a povoação nova do campo de Piratininga.
Os pretensos achados de minas só indiretamente poderiam ter
influido no bom exito do estabelecimento. E no entanto é
de todo provavel que de algum modo estimulassem a penetração
do territorio. É de crer que a mesma causa tivesse agido
vinte e dois anos antes sobre o animo de Martim Afonso quando decidira
criar um vila no planalto: por isso ficou dito acima que não
seria casual sua decisão de escolher este e não outro
ponto dos dominios portugueses para fundar um primeiro nucleo fixo
de moradores fora da orla maritima. E tambem não terá
sido por acaso acrescente-se que, tendo percorrido toda
a costa brasileira, foi em São Vicente que obteve seu quinhão
ao instituir-se o regime das capitanias.
Em realidade, das terras que quase certamente cabiam na demarcação
lusitana da America, era esta, geograficamente, a mais chegada às
regiões platinas, já celebres pelas riquezas fantasticas
que lhe atribuiam os primeiros navegantes. Já ao sul de Cananéia
principiava a area que esses marujos tinham batizado com o nome
de "costa do ouro e da prata". Dali os homens da armada
de d. Nuno Manuel tinham levado, a partir de 1514, noticias da existencia
de um misterioso povo serrano que trazia "ouro batido à
maneira de arnez do peito". Ali, segundo se dizia, fora colhido
o fabuloso machado de prata que tanto trabalho deveria dar às
imaginações quinhentistas. Por ali, conforme tinham
apurado marujos castelhanos e lusitanos entre gente da beira-mar,
ganhava-se facil acesso ao país do lendario Rei Branco. Do
Porto dos Patos, em Santa Catarina, saira o português Aleixo
Garcia, um dos naufragos da expedição de Solis para
a magnifica jornada aos contrafortes andinos, de onde pudera recolher
grande copia de metal precioso antes de ser sacrificado, no caminho
de volta, pelos indios carijós. Dessa expedição
provinham as peças de ouro que outro componente da armada
de Solis, Melchior Ramirez, exibira a Caboto em Santa Catarina.
Um companheiro de Ramirez, Henrique de Montes, tambem conservava,
consigo, grande quantidade de ouro.
E segundo depoimento de uma testemunha, dizia este à gente
da expedição que "nunca ombres fueron tan bien
aventurados como los de la dicha armada, que avia tanta plata y
oro en el Rio de Solis, que todos serian ricos..." (7). Desse
mesmo Henrique de Montes sabe-se que Martim Afonso o levaria consigo
como lingua e pratico da terra e não será de admirar
se, conhecedor da aventura de Garcia, foi um dos animadores da entrada
que o futuro donatario mandou sair de Cananéia rumo ao sertão
longinquo, sob o comando de Pero Lobo. Em reconhecimento pelos seus
prestimos, apesar do malogro da jornada, foi ele recompensado com
uma extensa sesmaria, a mesma que, por sua morte, vitima dos indios,
seria dada a um criado do donatario, Brás Cubas.
Se Martim Afonso fixou sua escolha, para a primeira povoação
sertaneja, no interior das terras de São Vicente, não
no da Cananéia ou de Santa Catarina, a razão estaria
em que a adjudicação destas terras à Coroa
lusitana tinha menos probabilidades de ser contestada por parte
dos castelhanos, inclinados naturalmente a ver ampliadas, tanto
quanto possivel as areas de sua demarcação. Os portugueses,
por sua vez, pagavam em moeda identica, e vimos como bem mais tarde
ainda pretendiam negar os direitos de seus vizinhos sobre Assunção.
Contudo uma prudente cautela aconselhava Martim Afonso a não
trocar o certo pelo duvidoso ou discutivel, sob pena de deitar a
perder todo o seu esforço. Se não faltava entre castelhanos
quem reivindicasse para sua coroa a propria São Vicente,
tais pretensões eram mais indecisas: prova estava no fato
de já existir de longa data no litoral vicentino um povoado
de portugueses, e portugueses que mantinham relações
amistosas com o gentio de serra acima. Tudo isso era de perfeito
conhecimento dos marinheiros espanhóis que frequentavam tais
paragens e traficavam com os moradores ou se utilizavam de seus
serviços. A simples presença de um tal nucleo onde
se incluiam, sem duvida, homens longamente habituados à terra
e conhecedores de seus segredos, não era menos, para Martim
Afonso, um motivo de boa esperança. Entre esses homens poderia
ter colhido o capitão informes sobre a possibilidade de comunicações
por terra firme com o Peru ou a Nova Granada. De tal possibilidade
há noticia posterior nos curiosos "apontamentos oferecidos
a d. João III por certo Diogo Nunes acerca das viagens que
realizou em terras peruanas, onde participou da expedição
de Mercadillo ao país dos Omagua.
Nesse texto, que Varnhagen encontrou na Torre de Tombo e foi o primeiro
a divulgar, diz-se como do Peru se poderia chegar ao Brasil pelo
Amazonas, e acrescenta-se: "Tambem poderei ir a São
Vicente atravessando pelas cabeçadas do Brasil..." O
proprio Varnhagen tentou indentificar o redator do papel com certo
Diogo Nuñez de Quesada que em 1544 andou em Lisboa de volta
do Peru. Capistrano de Abreu mostra, no entanto, em nota à
História Geral do Brasil, a improbabilidade de uma tal identificação.
E, por sua vez, associa Diogo Nunes ao mameluco levado do Brasil
por Tomé de Sousa, mencionado em uma carta que o embaixador
Luís Sarmiento de Mendoza escreveu de Lisboa no ano de 1553.
Esse mameluco, filho de um português, tambem fora do Peru
ao Brasil levando noticias de ouro e prata. Como argumento em favor
de seu alvitre, observava Capistrano de Abreu que "é
mais facil existir no mesmo tempo, no mesmo lugar, com os mesmos
planos, um só homem do que dois". E ainda acrescenta:
"Se Diogo Nunes descendia de pai português e mãe
india, é provavel que fosse natural da capitania de São
Vicente".
Não obstante tamanhas probabilidades, as conjeturas do grande
historiador são prejudicadas pelo seguinte trecho que se
lê na relação acima citada de Martin de Orue:
"Del peru vyno por el año pasado un pasajero natural
português que se dize domyngo nunez natural de moron ques
Junto ala Raya de Castilla el qual trajo de veynte a treynta myll
ducados este andando persuadiendo al Rey por una conquysta por el
(Brasil) para por ally entrar a las espaldas de cuzco". Essa
passagem deixa poucas duvidas sobre o assunto. A dificuldade principal
para a identificação entre o Nunez natural de Mourão
e o dos "Apontamentos", ou seja a diferença nos
prenomes, torna-se de pouca monta quando ponderamos que "Domingo"
e Diego" são palavras que se podem eventualmente confundir
e que, abreviadas, segundo o uso generalizado na epoca, não
apresentam diferença alguma.
É certo que as comunicações diretas entre São
Vicente e o Paraguai, caminho do Peru, não teriam sido utilizados
entre europeus, muito antes da fundação de São
Paulo. Do contrario explica-se mal a informação escrita
depois de 1554 por d. Mencia Calderon, viuva de Juan de Sanabria,
e publicada pelo historiador chileno Morla Vicuña, de que
se podia ir a Assunção, de São Vicente "por
cierto camiño nuevo que se habia descubierto". Justamente
por esse caminho tinham querido alcançar o Paraguai alguns
dos naufragos da armada de Sanabria. Nos dois anos anteriores tinha
sido ele trilhado por numerosos castelhanos e portugueses que, segundo
parece, iniciaram atraves dele um rendoso comercio. Para os castelhanos
especialmente, era de grande proveito, depois do abandono da primeira
Buenos Aires, por fornecer ocasião de negocios lucrativos
com os moradores. Tanto que Tomé de Sousa, em carta de junho
de 1553, observava como, em resultado das comunicações
frequentes entre as duas cidades, a alfandega de São Vicente
rendera, no ano anterior, cem cruzados de coisas que traziam a vender
os castelhanos. Já me ocorreu, em outro escrito, apontar
alguns nomes de viajantes que nos são conhecidos através
de documentos da epoca. Pode-se dizer que essas comunicações
constituem, propriamente, uma pré-historia das bandeiras
paulistas, ainda que fossem feitas nos dois sentidos e mais ativamente,
talvez, por parte dos castelhanos do que dos lusitanos. Contudo,
inquieto com as consequencias possivelmente funestas que podiam
resultar de tais contatos, principalmente depois das noticias das
supostas minas de prata do Piquiri e do Paraguai, o primeiro governador
geral ordenou que cessasse de todo o transito. E a partir de então,
apesar da viagem clandestina, pelo Tietê, de João de
Salazar e seus companheiros entre eles os dois filhos de Luís
de Gois e, mais tarde, das lutas de Jeronimo Leitão
contra os carijós do sul, cessam quase de todo, por longo
tempo, os contatos por terra firme com o sul. A propria atração
do metal precioso que por essa epoca seria menos forte entre os
moradores da capitania do que a caça ao gentio da terra,
deveria incliná-los para outras direções. Era
esse o resultado das pesquisas de Luís Martins e Brás
Cubas como o seriam tambem os dois achados dos dois Sardinhas, pai
e filho.
Segundo todas as probabilidades, a um parente do primeiro donatario
e do primeiro governador-geral, a d. Francisco de Sousa, se deverá,
já em principios do seculo seguinte, a intensificação
das entradas em outra direção, que já não
será a do Paraguai e do Prata. A bandeira de André
Leão, que data de 1601, dirigiu-se para a região do
rio São Francisco. E o mesmo rumo tomaria a de Nicolau Barreto,
segundo os estudos de Orville Derby, que já hoje nos parecem
novamente os mais convincentes, não obstante as conclusões
diferentes de historiadores recentes, que resultariam no entanto,
de um equivoco na leitura da ata da Camara de São Paulo onde
se esclarecem certos pormenores da expedição. E contudo
não se perde a lembrança do caminho do sul, revivida,
ao contrario, depois que, em 1505, quatro soldados vindos de Vila
Rica, provincia do Paraguai, chegam inesperadamente à terra
paulista.
Não é improvavel que o projeto inicial de d. Francisco
visasse, a partir de São Paulo, localizar mais facilmente
as mesmas minas que expedições anteriores tinham procurado
a partir das capitanias do centro. É interessante notar-se
que, justamente durante seu governo, segundo se apura de documentos
existentes no Arquivo Mediceo, de Florença, e ainda mal conhecidos,
o então grão-duque de Toscana, Fernando I, pretendeu
seriamente criar um estabelecimento no litoral do Espirito Santo,
o outro caminho natural para as minas do sertão remoto. E
é significativo o interesse que o mesmo grão-duque,
mostrou pelas coisas do Brasil, na correspondencia mantida com Baccio
de Filicaja, seu sudito, e companheiro de d. Francisco, que o levara
a São Paulo como engenheiro das minas. Quando e se forem
encontradas a descrição e a relação
das suas viagens no Brasil que Baccio escreveu para o grão-duque,
é provavel que venham à luz muitos fatos ainda desconhecidos
ou mal explicados acerca desse periodo (8). É inegavel, contudo,
que a partir de d. Francisco de Sousa, São Paulo estava maduro
para a vocação pioneira dos seus moradores. Vocação
que germinara contudo desde 1532, com a chegada de Martim Afonso,
firmara-se em 1554, quando Manuel da Nobrega, contrariando as opiniões
mais tradicionalistas, fundou a Casa de São Paulo em
sitio onde os indios pudessem ter melhor sustento e se consolida,
definitivamente, a partir de 1560, quando, por ordem de Mem de Sá,
são mudados para o campo os moradores da vila de Santo André.
Notas
1.
- R.H. Tawney, "Religion and the Rise of Capitalism",
Londres, 1936, pg. 72.
2. - Serafim Leite S.J., "Nobrega e a Fundação
de São Paulo" Lisboa, 1953, pg. 30.
3. - "Cartas de Nobrega" (Rio de Janeiro, 1931), pg. 145.
4. - Serafim Leite, S.J., op. cit., pg. 18.
5. - "Expansão Paulista em fins do seculo XVI e principio
do seculo XVII". Publicação do Instituto de Administração
da Faculdade de Ciencias Economicas e Administrativas da Universidade
de São Paulo (São Paulo, 1948), pg. 11.
6. - MS. do Archivo General de Indias: 25 - 1/14 R.o 22.
7. - Cf R. Diputazione Veneta di Storia Patria, Di Giovanni e Sebastiano
Caboto. Raccolte e Documentate da F. Tarducci (Veneza, 1892), pg.
196, ss.
8. - Carta de Baccio ao Cav. Belisario Vinda, secretario de S. A.
Serenissima, de Lisboa, 5 de janeiro de 1609. MS do Archivo di Stato
di Firenze - Arch. Mediceo - f. 945, c. 60.
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